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2 ARQUEÓLOGOS DO CONTEMPORÂNEO

2.5 Contrato de longa data

Tomando por base que o ato da linguagem é intersubjetivo ou marcado por uma cointencionalidade, Charaudeau (2015, p. 72) frisa que a comunicação midiática envolve instâncias de produção e de recepção. Em um “contrato de comunicação” com o público, o papel de um jornal seria o de “fazer saber” e propulsionar o “desejo de consumir as informações”. Mas não se trata de uma simples transmissão de saberes, e sim de “confrontar com os acontecimentos que se produzem no mundo ou inteirar-se de sua existência, e de construir, a esse respeito, um certo saber” que, ainda assim, tem que se encaixar nas representações imaginadas sobre o seu público. Muitas vezes os leitores não coincidem com tais mapas de significado, “não se deixando atrair nem seduzir com facilidade, seguindo o seu próprio movimento de ideias”.

Tuchman (1983, p. 14) ilumina, nesse sentido, o que chama de marco problemático do jornalismo. Lembra que, ao buscar disseminar a informação que as pessoas querem, necessitam e deveriam conhecer, “as organizações informativas fazem circular e, ao mesmo tempo, dão forma ao conhecimento”, e acrescenta que os meios de comunicação “têm o poder de dar forma às opiniões dos consumidores de notícias sobre aqueles tópicos acerca dos quais eles ignoram”. Mas não podemos esquecer, segundo frisa Tuchman (1983, p. 16), que a notícia, e mesmo a reportagem de fôlego, é “inevitavelmente, um produto dos informadores que atuam dentro de processos institucionais e de conformidade com práticas institucionais”.

Para conservar sua credibilidade e legitimidade em um cenário democrático e diante de uma aguda crise de sentidos, os produtores da mídia, segundo Charaudeau (2015, p. 276) deveriam se esforçar por ter por base os princípios da modéstia e da coragem. Os agentes poderiam assumir que lançam mão de uma linguagem fragmentária e que não podem pretender a transparência. Não se posicionar como transmissores de notícias “que se apagam diante do mundo percebido”, ou “simples escrivães que registram”, ou um “espelho fiel dos fatos”, assumindo a construção de uma “realidade do mundo social” como “representação imaginada”, mas ter coragem de propor uma “inventividade”, ou seja, “encontrar fórmulas de tratamento da informação

que não satisfaçam nem à ilusão de autenticidade dos fatos, nem à pretensão de querer revelar tudo, nem a corrida à emoção”.

De sua parte, o cidadão leitor e também coparticipante do jogo de interpretação da contemporaneidade deveria nutrir, segundo a ótica de Charaudeau (2015, p. 275), um direito à monitoração, à crítica e à réplica diante do “movimento de desterritorialização das identidades”. Para tanto, precisaria estar sempre atento à “armadilha dos efeitos produzidos pela máquina de informar”, como o exagero, a dramatização, a descontextualiação e a essencialização. Também não aceitar o discurso comum por parte da mídia, segundo o qual a informação se fabrica tão depressa que certas escolhas são inevitáveis ou de que se mostra “a realidade do jeito que ela é”.

Mas que tipo de contrato se estabelece entre os jornalistas e os seus leitores no caso do livro-reportagem? Embora em tese esteja realizando uma obra em uma condição mais solitária, fora das regras de produção de uma redação, esse jornalista está inserido em lógicas editoriais que estão marcadas pelo lucro da vendagem dos seus produtos. Para que sua obra circule, terá que contar com um esquema de marketing que pode ser enorme, como no caso de Laurentino Gomes, ou praticamente nulo, dependendo da sua valorização no mercado. São preferenciais as lógicas do tema ou personagem escolhido, as boas vendagens anteriores e fama adquirida no jornalismo.

Mesmo assim, no livro-reportagem o jornalista exercita as técnicas da entrevista em profundidade (contextualização estendida de determinado fato histórico ou personagem) e minimiza, em tese, a visão estereotipada dos fatos. Experiências que, se executadas com uma perspectiva humanística e ética, é bom ponderar, podem resultar em obras de interpretação mais consistente das problemáticas da contemporaneidade. O jornalismo é praticado em condições de plenitude de seus métodos, com paciência e complexidade, mas consciente de sua falibilidade. O jornalista escritor convive longo tempo com o material em produção e tem de lidar muitas vezes sozinho com decisões editoriais. Os leitores também são difíceis de serem definidos, mas, a partir dos depoimentos dos jornalistas e editores entrevistados, parecem constituir um público culto e crítico, reivindicador de uma interpretação menos fragmentada e aberta ao debate plural.

Para Schudson (2016, p. 379), as notícias em qualquer mídia têm uma relação com o “mundo real” no “modo como o mundo é incorporado em convenções narrativas inquestionáveis e despercebidas, sendo então transfigurado, deixando de ser um tema de discussão para se tornar uma premissa de qualquer possível conversa”. Dessa forma, as

notícias, segundo o autor, “não são ficcionais, mas sim convencionais”, já que as “convenções ajudam a tornar as imagens legíveis” e o fazem de uma maneira que “se adapta ao mundo social dos leitores e escritores”. Algumas dessas convenções já naturalizadas seriam, por exemplo, a hierarquização do lead, o privilégio às fontes notórias e a centralização em “um acontecimento único mais do que num acontecimento contínuo e repetido”. Schudson (2016, p. 387) conclui que, ao longo de sua trajetória, os jornalistas foram evoluindo seu status a ponto de não serem mais apenas “retransmissores de documentos ou mensagens”, e sim “intérpretes das notícias”: “Este novo papel permite ao repórter escrever sobre o que ouve e vê, e sobre o que não é visto e nem ouvido ou é intencionalmente omitido”.

Nos anos 1890, como pesquisou Schudson (2010, p. 89), os repórteres “enxergavam-se a si mesmos, em parte, como cientistas desvelando fatos políticos e econômicos da vida industrial, de forma mais corajosa, clara e ‘realista’ de que ninguém havia feito antes”. Outra observação: o ideal desses escritores, tanto de literatura quanto do jornalismo, “acentuava a factualidade”. Assim, o termo “observar”, segundo Schudson (2010, p. 91) “era muito importante para os repórteres e romancistas do realismo nos anos de 1890”, sendo comum na época a crença de que “o artigo da revista e o romance poderiam e deveriam ser fotograficamente fiéis à vida”.

No entanto, só após os anos 1930, para Schudson (2010, p. 144) é que o “ideal da objetividade, entendido como declarações consensualmente validadas sobre o mundo, com base numa separação radical entre fatos e valores, passa a se estabelecer”. Esse ideal surge, na ótica do pesquisador, “não tanto como uma extensão do empirismo ingênuo e da crença nos fatos, mas como uma reação contra o ceticismo”. Portanto, a objetividade jornalística passou a se apresentar como “um método projetado para um mundo no qual nem mesmo os fatos poderiam ser confiáveis”. Já nos anos 1960, as tradições submersas do jornalismo (literário e muckraking) ajudam a dar consistência a um novo discurso de crítica à objetividade.

Assim, como aponta Schudson (2010, p. 219), os adeptos do chamado jornalismo literário passaram a apostar em “narrativas elegantes” e, o mais importante, a problematizar o próprio fazer da reportagem, inserindo-se no texto e “sempre escrevendo, de modo implícito, sobre a reportagem em si”. Já o chamado “jornalismo investigativo” ou muckraking, outra tradição antiga, é retomado com força em momentos emblemáticos, como a influente cobertura do caso Watergate pelo jornal

paixão à objetividade ‘fria’, a tradição investigativa distingue sua agressividade da passividade da reportagem objetiva” (SCHUDSON, 2010, p. 220).

A conclusão de Schudson (2010, p. 224) sobre o perfil do repórter que se lança ao jornalismo investigativo e interpretativo se assemelha aos ideais de um jornalista escritor de livros-reportagem em um contrato de comunicação com os seus leitores: “Requer uma subjetividade madura, uma subjetividade temperada por encontros com as opiniões de outros profissionais expressivos na atividade, e uma consideração com eles; e uma subjetividade amadurecida por encontros com os fatos mundiais e um respeito por eles”. Ou ainda repórteres que se recusariam “seja a se render ao relativismo seja a se submeter acriticamente a convenções arbitrárias estabelecidas em nome da objetividade”. Para tanto, eles precisam exercitar “uma tolerância tanto pessoal quanto institucional, da incerteza, e da aceitação do risco e do compromisso de cuidar da verdade” (SCHUDSON, 2010, p. 226).

Pode-se analisar, agora, com mais atenção, os papéis do jornalista nesse contrato. O raciocínio editorial que ele faz quando executa um livro tem mais a ver com uma adequação a uma leitura menos enfadonha e mais prazerosa do que com concentrar os fatos em espaço menor, devido aos limites de um veículo impresso. Mas o relato dramatizador e sugestivo é uma das principais características dos livros-reportagem. É comum o uso de recursos ligados ao jornalismo literário, embora muitos dos entrevistados não gostem do termo, como o aprofundamento psicológico, a narração dos personagens em pleno movimento e a vivacidade da recuperação de diálogos. Como um livro-reportagem pode ter muitas páginas, a maneira de abrir os capítulos e dispor a narrativa para que o leitor não se afaste, na longa relação que terá com aquele objeto, deve ser a mais agradável possível.

Embora possa parecer, esse trabalho não é tão solitário assim. Tomemos por exemplo a produção da biografia em três volumes Getúlio, de Lira Neto. No posfácio da primeira edição, intitulado “Este livro”, o jornalista afirma que “uma biografia como esta é, essencialmente, uma obra coletiva” (NETO, 2012, p. 530). Ele informa, em seguida, que contou com a “cooperação e o trabalho árduo de pesquisadores e colegas jornalistas”, que teriam auxiliado na descoberta de novas fontes e tido “paciência quase beneditina de remexer em papéis empoeirados e nos fundos dos arquivos”. Lira Neto menciona nominalmente seis pessoas que percorreram acervos seminais em Porto Alegre, Rio de Janeiro, Paraná e Washington em busca de informações a respeito do ex-

presidente Getúlio Vargas. O autor reservou a um historiador e a um pesquisador, em separado, também com seus nomes citados, o trabalho de revisão histórica do texto.

Outros elementos do processo de produção citados no posfácio esclarecem como pode se dar a relação do jornalista com uma editora, no caso a Companhia das Letras. Ele já havia publicado, pela editora Globo, a biografia Maysa: só numa multidão de

amores (2007), que foi, inclusive, adaptada para uma série na rede Globo de televisão.

Fechou contrato, então, para ingressar na nova editora com a biografia Padre Cícero:

poder, fé e guerra no sertão (2009). Quando estava entregando os originais para o

editor Luiz Schwarcz, propôs o temeroso trabalho de biografar o ex-presidente Getúlio Vargas, já alvo de outras biografias laudatórias e muitas teses acadêmicas ao longo da história, além de ser um mito contraditório, por si só, no imaginário nacional.

No posfácio, Lira Neto (2012, p. 529) agradece à Companhia das Letras por ter aceitado o desafio de que a obra fosse repartida em três volumes, o que envolve uma logística maior de publicidade para cada edição, e dá pistas sobre como conseguiu aporte financeiro para a empreitada: “A editora cuidou para que eu usufruísse condições objetivas para me dedicar a esse trabalho em regime de dedicação exclusiva”. Ele conta que a produtora RT Features adquiriu previamente os direitos de adaptação para a TV e o cinema de “uma obra que, até aquele momento, existia apenas na minha intenção e no meu compromisso com o projeto anunciado”.

Também é significativa a menção à sua editora, considerada a “principal articuladora” entre o autor e a Companhia das Letras, o que indica o papel essencial desse profissional também no universo do livro-reportagem e dá pistas sobre a relação entre o jornalista escritor e os agentes do campo editorial diferenciado que ele adentra ao produzir esse tipo de publicação. Lira Neto (2012, p. 531) demonstra gratidão, ainda, à atenção de dois “amigos-irmãos” a quem “venho atazanando a paciência, exigindo que leiam cada linha do que escrevo antes de liberar os originais à editora”. Ou seja, sua obra não existiria sem uma série de colaboradores e acordos, como também ficará mais claro no depoimento de outros jornalistas nesta tese.

Os esforços de cinco anos de produção parecem ter sido recompensados com a recepção positiva da crítica e do público, ou seja, o consumo ou reconhecimento nesse contrato. Os dois primeiros volumes somaram 70 mil cópias em vendas e o terceiro saiu em primeira edição com 40 mil. O segundo volume, Getúlio: 1930-1945, do governo

provisório à ditadura do Estado Novo, lançado em 2013, ganhou o prêmio Jabuti de

especializada outras duas vezes anteriores, quando venceu o mesmo prêmio, respectivamente, em 2007 e 2010, com O inimigo do rei: uma biografia de José de

Alencar (2006) e Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão (2009).