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3 REVISANDO PARADIGMAS

3.5 Observador participante

Wittgenstein (apud SILVA, 2011b, p. 136) apresenta a perspectiva do observador participante como aquele que procura compreender uma comunidade “a partir do seu interior ou à luz do seu próprio contexto prático e cultural”. Ela é colocada em oposição à definição do observador desinteressado, que nutre a pretensão de entender os agrupamentos humanos de um ponto de vista externo. O trabalho da jornalista Eliane Brum pode ser enquadrado na primeira categoria. No livro O olho da

rua (2008) é essa postura que ela adota em reportagem com parteiras do Amapá.

Muitas vezes o profissional jornalista pode encontrar um abismo cultural entre a sua visão de mundo e as realidades com as quais ele se depara. Wittgenstein, segundo aponta Silva, acredita que as diferenças ao nível das culturas e das práticas comunitárias podem “comprometer a compreensão e a comunicação”. Mas, como sempre existem aspectos “do comportamento humano partilhados permite-se estabelecer, em princípio, a possibilidade da comunicação” (SILVA, 2011b, p. 137). Para Wittgenstein, a linguagem só é “inteligível num contexto prático que remete para um cenário comunitário mais amplo” e a compreensão só é possível “na base de algum consenso pragmático ou de afinidades entre formas de vida” (SILVA, 2011b, p. 138).

Na obra mencionada, Eliane Brum (2008) escreveu prólogos para acompanhar cada uma das reportagens, justamente para explicar seu processo de comunicação com os personagens. Sobre a experiência que resultou no texto “A floresta das parteiras”, a jornalista reflete a respeito da importância da escuta. Escutar, para a repórter, é “não interromper as pessoas quando elas não falam na velocidade que a gente gostaria ou com a clareza que a gente desejaria e, principalmente, quando elas não dizem o que a gente pensava que diriam” (BRUM, 2008, p. 38).

88 Durante o contato com as parteiras da floresta amazônica, a repórter percebeu que a forma como elas elaboravam suas representações da realidade no discurso era tão bela que era como se as palavras também nascessem “dessas mulheres extraordinárias de parto natural, emergiam como literatura da vida real” (BRUM, 2008, p. 38). A autora explica que as suas personagens falavam “tão bonito e com uma variedade e uma fundura tão impressionantes”, que o seu trabalho foi mínimo. “Bastava escutar e anotar cada suspiro para não perder nada. Nem que eu estivesse fazendo ficção e pudesse inventar, eu chegaria perto da beleza com que elas se expressavam.” A profissional chama esse método de “psicografia de gente viva” (BRUM, 2008, p. 39).

Entretanto, essa não é uma postura de observadora desinteressada, pois trabalha com o mergulho na compreensão do outro. E há por parte de Eliane Brum uma clara noção da transformação que o seu contato com as fontes causa na sua forma de ver o mundo. “Só tem graça ser repórter quando nos entregamos à reportagem e deixamos que ela nos transforme. Se um dia eu voltar a mesma de uma viagem para o Amapá ou para a periferia de São Paulo, abandono a profissão” (BRUM, 2008, p. 39). O curioso é que todas as reportagens que compõem o livro foram escritas para a revista Época. Ou seja, mesmo atada aos processos produtivos e prazos de fechamento, foi possível adotar uma postura mais aberta com relação às suas fontes.

Ao tratar das formas de produção do livro-reportagem, Lima (2009, p .9) ressalta a humanização como uma maneira de evitar estereótipos, “visando retratar os seres humanos na sua inteireza complexa, com virtudes e defeitos”. Para tanto, o princípio chamado de imersão é essencial. “O autor precisa ir a campo, ver, sentir, cheirar, apalpar, ouvir os ambientes por onde circulam os seus personagens. Deve vivenciar parte das experiências de vida que eles vivem” (LIMA, 2009, p. 373).

As reflexões de Habermas (1989, p. 82) sobre o que ele chama de “agir orientado para o entendimento mútuo” são valiosas para compreender tanto a relação dos jornalistas com as suas fontes quanto do escritor com os seus leitores. Ele chama de comunicativas “as interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez”. Estas seriam compreendidas como pretensões de verdade, correção e sinceridade. Podem se referir a algo no mundo objetivo, “enquanto totalidade dos estados de coisas existentes”, ao mundo social comum, no caso as “relações interpessoais legitimamente reguladas de um grupo”, ou

89 também ao mundo subjetivo próprio, entendido como “totalidade das vivências a que têm acesso privilegiado”.

Em uma situação complexa, para Habermas (1989, p. 111) o discurso argumentativo deve procurar se imunizar “contra a repressão e a desigualdade”, aproximando-se da chamada “situação de fala ideal”. “Os participantes de uma comunicação” – repórteres e fontes; escritores e leitores – não podem deixar de pressupor que a estrutura do seu intercâmbio linguístico “exclui toda coerção atuando do exterior sobre o processo de entendimento mútuo ou procedendo dele próprio, com exceção da coerção do argumento melhor”. A ambição sempre monitorada eticamente, aproximativa e muitas vezes falível nos casos em questão deve ser a de “neutralizar todos os motivos”, com exceção “da busca cooperativa da verdade” (HABERMAS, 1989, p. 112).

Portanto, no diálogo entre o jornalista e suas fontes, e também seus leitores, deixar claro os papéis de “validação, explicação e justificação”, tornando transparentes as regras do debate, sem que haja um sentimento de superioridade de qualquer um dos lados, é condição essencial para emancipar o discurso jornalístico do seu ranço ideológico. Este é, em muito, gerado pelas suas condições específicas dentro do modo de produção capitalista. A postura de constante reflexão por parte do jornalista deve fundamentar todo seu trabalho, seja em qual suporte estiver trabalhando. Os exemplos das posições éticas com relação aos personagens por parte de Caco Barcellos, Klester Cavalcanti e Eliane Brum são patentes para indicar que é possível desenvolver um trabalho jornalístico fundamentado na ideia de reciprocidade e intercâmbio de papéis.

Não são poucos os momentos em que os jornalistas aqui mencionados entraram em um sério processo de autocrítica e dúvidas a respeito dos seus rumos, pois estavam lidando com comunidades díspares do seu cotidiano e mesmo com outras lógicas e sentidos de interpretação. Nutrir o pensamento crítico de sempre considerar visões de mundo e formas de visão alternativas é papel ético de qualquer repórter ou instituição jornalística. Mas as chamadas distorções na situação ideal de fala, apontadas por Habermas, devem reforçar a postura de atenção do jornalista com relação à constante assimetria na distribuição de papéis sociais e tentativas de controle do discurso que a própria mídia, como instituição, costuma engendrar.

Medina (2007, p. 23) pondera que nos estudos das relações entre jornalismo e literatura leva-se mais em conta a questão do estilo do que a “prática relacional (signo

90 de relação)”. Ao refletir sobre o trabalho dos jornalistas com as histórias de vida dos protagonistas sociais, Medina alerta: se o repórter, por decisão “técnica ou atrofia afetiva, descartar a viagem à subjetividade do outro”, vai resolver apenas “de forma tosca a trama da história de vida. Na maior parte das vezes, apelando para a frieza linguística da entrevista pergunta-resposta” (MEDINA, 2007, p. 24). Para narrar as experiências cotidianas, sobretudo dos anônimos, ela sugere “o signo de relação se mova no horizonte do desconhecido, do misterioso, do imprevisível”.

Contribui para esta reflexão o pensamento de Simmel (1983, p. 173), para quem a sociabilidade demanda “o mais puro, o mais transparente, o mais eventualmente atraente tipo de interação, a interação entre iguais”. Explicando melhor, o teórico considera a comunicação como a arte ou um jogo, no qual os seres humanos renunciam a seus “conteúdos objetivos”, modificam sua “importância externa e interna” e só obtêm valores de sociabilidade para si mesmos “apenas se os outros com quem interage também os obtêm”.

Simmel (1983, p. 174) detalha que a sociabilidade é o jogo no qual “se faz de conta que todos são iguais, e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular”. Não se trata de uma mentira, pois senão a arte estaria mentindo no seu desvio da realidade. Dessa forma, o jogo só se transforma em mentira no momento em que a “ação e a conversa sociável se tornam meros instrumentos das intenções e dos eventos da realidade prática, assim como uma pintura se transforma numa mentira quando tenta, num efeito panorâmico, simular a realidade”. Simmel (1983, p. 179) também acredita que a arte, para não parecer “vazia e falsa”, mesmo sendo a “mais livre e mais fantástica, não importa quão longe esteja de qualquer cópia da realidade, alimenta-se de uma relação profunda e leal com esta realidade”.

Habermas (2004), por sua vez, pondera que a objetividade humanizada ou desmistificada significa apenas a validação pelo consenso da comunidade de comunicação. Dessa forma, é equivocada a ideia de que a deliberação possa ser conferida a priori no processo de interpretação hermenêutica de um sujeito fora do mundo e da história. Esse processo deve envolver, como pensa o filósofo, o diálogo com as alteridades dos demais juriconsortes, que seriam os membros de uma comunidade jurídica de direitos e deveres iguais afetados pelo assunto. Todos teriam direito a dizer sim ou não em qualquer situação, tema ou caso.

91 Mesmo lidando com criminosos, Caco Barcellos e Klester Cavalcanti evitaram se colocar em uma postura de superioridade. Abriram suas sensibilidades para as formas de vida particulares das normatizações internas rígidas do mundo do tráfico de drogas, no caso do primeiro, e às razões explicitadas por um matador juramentado no segundo. Estabeleceram “contratos” com regras claras e justificadas na relação com suas fontes, respeitando-as como seres humanos. Procuraram deixar claro para os seus personagens as consequências do relato daquelas realidades sistematizadas na força de um livro, meio de comunicação perene e que exige do leitor um esforço bem maior de interação crítica e reflexão. Foram além de um olhar distanciado e factual e procuraram entender a contemporaneidade com postura crítica.

Ao escrever um livro-reportagem, o jornalista ingressa em um território de busca de significações das interações sociais da realidade a serem interpretadas que apresenta aspectos diferenciados das rotinas produtivas com as quais está afeiçoado nos meios de comunicação tradicionais. Bem mais liberto das amarras da cobertura diária rotinizada, com limites de tempo e espaço, em tese, o contato com o mundo da vida dos personagens, essencial para o seu trabalho, pode se dar como um processo dialógico crítico e transformador, com regras claras para o interpretante e o intérprete e marcada pelo potencial emancipatório.