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3 REVISANDO PARADIGMAS

3.2 Território de liberdades?

Lima (2009, p. 62) pondera que, na elaboração do livro-reportagem, os vários elementos da prática jornalística “atingem um patamar próprio, diferenciado de operação”. Assim, em sua opinião e na de outros autores, trata-se de “um dos gêneros da prática jornalística, dadas as suas especificidades, a função aparente que exerce, os elementos operativos que se utiliza e com o modo como combina as regras que determinam as relações desses elementos”.

O autor frisa os benefícios da dilatação no tempo para uma maior precisão na captação das informações, fazer e refazer entrevistas e consultar documentos, e mesmo para escrever o texto de um livro-reportagem. A ausência aparente da periodicidade nesse gênero seria uma vantagem para os jornalistas que adentram nesse ritmo de produção. Ao escolher seus temas e as formas de abordá-los, em tese sem tantas pressões, os autores fariam uma opção pelo contemporâneo, ou um passado iluminado para se entender o presente, em vez do relato puramente factual.

Ao analisar a narrativa jornalística, Motta (2013, p. 95) menciona um tipo de reportagem que é ampliada no caso do livro, mas que também é praticada em algumas redações e experiências na web, “cuja estrutura fechada se assemelha à do conto”, adquirindo maior dramaticidade. Ele reconhece que, para produzi-la, “o jornal e seus editores concedem ao repórter uma liberdade maior para criar, relatar e contar em uma linguagem quase literária ou quase ficcional”. As vantagens, asseguradas no caso do livro, permitem que o repórter se desvencilhe dos “rigores da linguagem enxuta e objetivada, do compromisso de se manter próximo ao referente empírico” e ganhe liberdade para “imaginar, criar e sugerir no texto efeitos estéticos de sentido”, o que incluiria até mesmo a narração em primeira pessoa.

Assim, segundo Motta (2013, p. 95), esse tipo de reportagem ou livro- reportagem apresenta questões estéticas próximas da análise literária e pode ser “estudado conforme qualquer outra narrativa de ficção, porque sua intenção é menos

69 produzir efeitos de veracidade que efeitos estéticos próximos da ficção”. No entanto, o método detalhado de análise pragmática dos acontecimentos noticiosos sistematizado por Motta, que ele direciona mais para o noticiário fragmentado do dia a dia, aponta questões que também ajudam a entender as formas mais aprofundadas da reportagem e da sua ampliação no livro-reportagem. Pode-se dizer até que o jornalista que se debruça sobre os fatos algo distantes e dispersos na cobertura midiática para construir um todo coeso no livro-reportagem está agindo também como o pesquisador das narrativas jornalísticas deveria se portar, por exemplo, ao tentar entender uma cobertura midiática estendida.

Senão, vejamos. Para Motta (2009, p. 99), ao analisar uma cobertura que se estende ao longo de vários dias e múltiplos desdobramentos interpretativos, o pesquisador deve, primeiramente, “reorganizar cronologicamente os eventos noticiosos dispersos e recompor os fragmentos difusos das notícias em uma história serializada”, buscando, de forma mais profunda, uma linha de força, um “acontecimento dramático (ou ainda acontecimento-intriga), um “produto cultural novo e diferente”. Assim, esse pesquisador conseguiria compreender a “mimese jornalística”, que, para Motta, trata-se não apenas de “uma atividade de representação realista difusa do real fático, mas uma atividade produtora de sentidos culturais, uma mimese histórica instituidora da realidade formadora e constituidora do pensamento contemporâneo”.

Em sua proposta metodológica, Motta (2009, p. 98) considera que o pesquisador das narrativas jornalísticas contemporâneas deve integrar elementos das análises narrativas histórica e literária, a fim de “reordenar a selvagem cronologia jornalística, encontrar os antecedentes, identificar e reposicionar as personagens, seus papéis e

funções no desenrolar dos episódios”. Pondera, ainda, que a “recorrente presença de

personagens, conflitos e cenários de um assunto nas páginas e telas confere a eles certa unidade e continuidade, e nos autoriza a unir as partes, recompor o acontecimento-

intriga temático, como o leitor faz”.

A partir do momento em que o pesquisador promover uma “retessitura da intriga” central de uma cobertura jornalística, que pode levar em conta vários meios de comunicação, aparecerão “o significado orgânico de cada episódio, os conflitos estruturantes, os papéis dos agentes, heróis, vilões, adjuvantes”, além de uma “moral da história”, que residiria nas “metanarrativas de fundo”. Motta (2009, p. 98) detalha em minúcias esse método, concluindo que os “acontecimento-intriga, oriundos do duro

70 jornalismo do dia a dia caracterizam a narrativa noticiosa por excelência, apagando a dura referencialidade e revelando uma poética jornalística”.

Esta tese sustenta que o jornalista especial, ainda presente em algumas redações, o profissional que experimenta a reportagem alongada com elementos de texto, vídeo e áudio na web e, principalmente, o jornalista escritor de livros-reportagem exclusivos lançam mão de todos esses procedimentos, mesmo que de forma empírica, quando tentam dar conta da narrativa de um real-histórico complexo, difuso e diluído no tempo. Mas o seu trabalho de interpretação é sempre complementado pela figura dos leitores e seus respectivos mapas de significado, o que desautoriza a impressão de um jornalista “autor” de uma obra original, aquele que apresenta uma verdade incontestável e um estilo próprio.

Motta (2009, p. 110) frisa que os sujeitos receptores realizam uma “apropriação cognitiva” das “estórias pretensamente objetivas narradas nas notícias”, que se configura pela experiência de realidade e de catarse que as notícias costumam ativar, pelas “visões de mundo implicitamente transferidas”, pela interpretação “ética, política e ideológica das informações subjetivas pela audiência nos atos de leitura e pela recorrência que os leitores fazem das memórias de curto e longo prazos no processo interpretativo”. É preciso tomar cuidado com a ideia de que os jornalistas, ao distanciarem-se do calor das redações para produzir um livro, estariam naturalmente investidos de uma “autoria”. Essa impressão surge da crença segundo a qual eles não ocupariam, nesse caso, um lugar de fala difuso e diluído que se confunde com a própria ideologia de um veículo jornalístico. Na verdade, o leitor comunga com o escritor responsabilidades nessa interpretação sistemática do real-jornalístico, reunido em uma ilusão de totalidade no formato de um livro-reportagem.

A partir da diferenciação que estabelece entre a prática do livro-reportagem e a produção regular de notícias, Lima (2009) passa a apontar o que conceitua como “liberdades” que o autor teria em relação às rotinas tradicionais. A primeira delas é a liberdade temática. Como não precisam se encaixar nas lógicas do jornalismo factual, os autores de livros-reportagem podem superar as abordagens superficiais. No texto de apresentação do livro Olga, Fernando Morais deixa claras aos leitores suas dificuldades para recuperar essa figura histórica, que parecia viver, até então, à “sombra” de Luís Carlos Prestes, para além do mero relato de efeméride na imprensa diária.

71 Além de não haver praticamente nada sobre a personagem nos arquivos brasileiros, o autor surpreendeu-se ao descobrir que “até mesmo a historiografia oficial do movimento operário brasileiro, produzida por partidos ou pesquisadores marxistas, relegara invariavelmente a ela o papel subalterno de ‘mulher de Prestes’ – e nada mais do que isto” (MORAIS, 1993, p. 10). Outro grande obstáculo era a disponibilidade de fontes orais vivas, as testemunhas da história. “Se estivesse viva, Olga teria hoje 77 anos – e como sua militância política se deu muito precocemente, a maioria dos personagens que conviveram com ela estavam mortos” (MORAIS, 1993, p. 11).

Contando com o tempo como aliado, algo raro no jornalismo, Morais encontrou um tesouro na então ainda não reunificada República Democrática Alemã: “Heroína nacional cujo nome batiza dezenas de escolas e fábricas, Olga teve sua memória carinhosamente preservada pelos comunistas de sua terra” (MORAIS, 1993, p. 11). Em Milão, na Itália, o jornalista descobriu que boa parte da memória do movimento operário e comunista brasileiro estava preservada em um arquivo local.

Em Washington, Estados Unidos, outra surpresa: “Para meu espanto, pude ver depositados documentos internos do PC brasileiro desconhecidos aqui e que tinham sido misteriosamente baldeados para os Estados Unidos” (MORAIS, 1993, p. 10). O jornalista somou todo esse material documental a entrevistas fundamentais com o ex- marido de Olga, Luís Carlos Prestes, e com fontes septuagenárias que encontrou em outros países: “Como sua passagem pelo Brasil se tornara, para mim, a parte mais obscura da investigação, pressionei os amigos de Olga em Berlim até a irritação com perguntas sobre cada momento de seus 17 meses no Rio de Janeiro” (MORAIS, 1993, p. 12). Esse testemunho atesta o esforço de um jornalista para superar as perspectivas muitas vezes míopes de um jornalismo factual e apresentar uma leitura da contemporaneidade.

Outra liberdade, segundo Lima (2009, p. 83), é a da angulação, ou seja, o “livro- reportagem é uma obra de autor”. O escritor está “desvinculado, ao menos em tese”, de comprometimentos com o “nível grupal” e de “massa” e seu “único compromisso é com a sua própria cosmovisão e com o esforço de estabelecer uma ligação estimuladora com seu leitor” (LIMA, 2009, p. 84). Esta tese relativiza a figura já tantas vezes contestada pela teoria literária do “autor” original, que, no caso do jornalismo, atingiria o nirvana do entendimento pelo simples fato de estar trabalhando de forma mais solitária do que os seus colegas de redação. É possível afirmar que estamos tratando de uma situação de

72 certa autonomia jornalística no campo do livro-reportagem. Mesmo assim, ela também pode estar presente de maneira marcante no trabalho do jornalista especial e até no repórter de hard news mais consciente de possíveis dribles às políticas editoriais. A noção de autoria costuma ser relativizada atualmente por autores da Teoria Literária e precisa ser reinterpretada como um sinal de autonomia no caso do jornalista escritor.

Este pesquisador acredita ser temerosa, sem uma pesquisa mais aprofundada, a afirmação de que estes estariam livres de pressões ou mesmo compromissos comerciais. Em um mercado editorial competitivo como o brasileiro, o jornalista, investido na condição de “autor solitário”, precisa até mesmo enfrentar questões judiciais. Foi o caso da necessidade de autorização prévia das biografias por parte dos biografados ou seus herdeiros, prevista no Código Civil e só derrubada recentemente, em decisão histórica, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Isso sem mencionar as pressões psicológicas pessoais, internas, que podem ser enfrentadas diante da logística aparentemente interminável de organizar, com sedução, na lógica mais coesa do livro, tantos depoimentos e documentos.

No caso daqueles que lidam com temas polêmicos é preciso se precaver com pesquisas documentais e orais que sejam suficientemente consistentes para evitar questionamentos judiciais, mesmo assim, sempre imprevisíveis. O primeiro livro de Rubens Valente, Operação banqueiro (2013), trata da história de um dos donos do banco Opportunity, Daniel Dantas, libertado da cadeia e inocentado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com articulação do então ministro e presidente Gilmar Mendes, mesmo depois de vários indícios de atividades financeiras criminosas. Rubens Valente (2013, p. 11) detalha para o leitor, no texto de abertura, seu método de investigação e as precauções que teve de tomar. “Construí um acervo com cerca de 62 mil arquivos virtuais, armazenados em 1.114 pastas, num total superior a 30 gigabytes. Consultei processos em papel e copiei mais de 3.500 páginas que encheram sete caixas de tamanho médio”.

Completando a pesquisa documental com entrevistas, Rubens Valente (2013, p. 11) conversou com cerca de 40 pessoas, sendo que várias fontes pediram anonimato: “São quase todos servidores públicos que, corajosamente se arriscaram e arriscam suas carreiras para proporcionar aos leitores, por meio dos jornalistas, acesso a informações de interesse público”. O jornalista critica, no prefácio, a catalogação de sigiloso que envolvia boa parte dos documentos sobre os quais se debruçou: “Casos de alto interesse

73 público, como companhias telefônicas sob concessão pública, são hoje escondidos dos contribuintes por um carimbo da burocracia”. Outro grande desafio é que o caso envolvendo o banqueiro Daniel Dantas e outros acusados sempre conteve um “volume de informações incorretas, incompletas ou deliberadamente mentirosas publicado desde 2008 em diversos meios sobre o assunto”.

Mesmo se escudando em tantas fontes, Rubens Valente (2013, p. 12) informa ao seu leitor que não nutre a intenção de dar por encerrada a interpretação de um assunto tão complexo: “A narrativa a seguir não é, nem poderia ser, o registro absoluto dos fatos. Ela é apenas o resultado do que pude compreender com base na análise dos documentos oficiais, provas e testemunhos, e o mais perto do que cheguei do que entendo ter ocorrido”. Mesmo se precavendo durante todo o processo, após a publicação do livro Rubens passou a enfrentar dois processos judiciais, que serão mencionados no capítulo 8. Esses são alguns exemplos do tipo de pressão que um jornalista escritor, ainda que estreante, como Rubens Valente, pode enfrentar ao ingressar no universo do livro-reportagem.

Quanto à liberdade de fontes, Lima (2009, p. 84) diz que o escritor “pode fugir do estreito círculo das fontes legitimadas e abrir o leque para um coral de vozes variadas”. A esta se articula a liberdade temporal. O jornalista escritor estaria “livre do rancor limitador da presentificação restrita” e poderia avançar, com mais paciência, “para o relato da contemporaneidade, resgatando informações do tempo algo mais distante do de hoje, mas que, todavia segue causando efeitos neste” (LIMA, 2009, p. 85).

Esta tese concorda com os benefícios óbvios do prazo mais dilatado para a pesquisa jornalística documental e oral, mas não sustenta que seja necessariamente determinante para quem se aventura nessa seara não incorra em uma visão estereotipada do real. Mais espaço para discorrer suas interpretações e longo tempo para coletá-las e organizá-las não significa que o autor de determinada biografia, por exemplo, entenderá ou explicará com precisão e de forma multiangular, determinados aspectos contraditórios de uma personalidade ou fato histórico. Uma biografia pode contribuir, por exemplo, para detratar de maneira injusta a personalidade de determinada pessoa, apoiada em um discurso de meticulosa objetividade jornalística.

Em um raro caso de resenha crítica de um livro-reportagem na imprensa brasileira, o jornalista Mario Sérgio Conti demoliu o livro Dirceu – a biografia, do

74 então editor da revista Veja, Otávio Cabral, em um ensaio para a revista Piauí. Conti começa criticando justamente o subtítulo, já que o político José Dirceu ainda está vivo e não quis dar entrevista, sugerindo que o melhor seria, em vez de “a”, “uma”. Em seguida, passa a dissecar 30 erros factuais, vários já nas primeiras páginas, que envolvem tanto o biografado quanto o pano de fundo histórico. Conti conclui que “Otávio Cabral envolve José Dirceu numa névoa de insinuações para melhor denegri- lo”, abusando de adjetivos nos títulos, como “camaleão”, “bedel de luxo”, ou “o maior vilão do Brasil” e acusa o colega de, “em vez de trabalhar”, ou seja, apurar com afinco, preferir a “invencionice delirante”. “Como Dirceu foi condenado e aguarda a prisão, o que Cabral faz é chutar um homem caído no chão. Mas comete tantos erros que acaba chutando sua própria reputação profissional” (CONTI, 2013. In: Piauí n. 83, p. 36).

Em artigo de resposta escrito para a Folha de S. Paulo e publicado em 23 de agosto de 2013, o editor da Record e da biografia, Carlos Andreazza, pondera que todo trabalho biográfico está sujeito a erros, que seriam corrigidos em uma próxima edição. Mas considera as críticas de Mario Sérgio Conti um “inventário ressentido de miudezas” que comporia “um momento em que parece haver, em diversas frentes, uma ofensiva por desqualificar tudo o que possa ser inconveniente para os condenados”. O editor complementa que nenhum dos erros apontados seria “estrutural” ou representaria “falha grave, de peso” e provoca: “Ninguém precisa reconhecer a relevância de se produzir e publicar uma biografia não autorizada como essa num país acovardado como o Brasil, em que os espaços para o exercício do contraditório mínguam progressivamente”. E assinala como valor incontestável os “37 mil livros vendidos em menos de três meses”. Mario Sérgio Conti respondeu apontando mais 30 desacertos e vaticinando que “qualquer biografia com cinco dúzias de disparates é imprestável para entender uma vida”. Conclui que livros como Dirceu e A privataria tucana, de Amaury Ribeiro Jr., se equivalem em “incompetência, leviandade e má-fé”.

Como não necessita girar em torno do factual, da busca obsessiva pelo acontecimento presente, o autor de livros-reportagem também gozaria, retornando ao quadro conceitual de Lima (2009, p. 85), de uma “liberdade do eixo de abordagem”. Em suas palavras, esse profissional pode “vislumbrar um horizonte mais elevado penetrando na situação ou nas questões mais duradouras que compõem um terreno de linhas de força que determinam o acontecimento”. Por fim, surge a liberdade de propósito, que,

75 nas palavras de Lima, “permite que o livro ascenda aspirações para um alvo mais elevado do que a reportagem comum em geral apresenta”.

Como será visto mais adiante, entretanto, alguns entrevistados que gozam atualmente do status de repórter especial em publicações impressas, como Daniela Arbex, Leonencio Nossa e Adriana Carranca, acreditam que também conseguem, no seu trabalho na mídia tradicional, abordar assuntos com profundidade, apesar de certos limites. Principalmente em forma de cadernos especiais ou séries de reportagens – hoje, a bem da verdade, mais raros do que nos anos 1970. Mesmo a visada sobre a trajetória histórica do livro-reportagem, organizada no capítulo 4 desta tese, permite perceber como em muitos momentos a imprensa brasileira privilegiou não só narrativas de fôlego, mas também subjetivas e mais interpretativas, muitas delas organizadas em livros na forma de coletânea de reportagens. Ou seja, abordagens diferenciadas no jornalismo não são privilégio dos escritores de livros-reportagem, embora estes, indubitavelmente, tenham mais condições de engendrá-las.

Sustenta-se na presente tese a hipótese de que o tempo para recolher tanto material documental e oral também é “opressor” nesse campo e que a luta individual para ingressar e, mais, se manter no mercado editorial pode ser tão ferrenha quanto os sentimentos de “pressão” e “aprisionamento” das rotinas produtivas de uma redação. As entrevistas com os escritores e editores, relatadas e debatidas nas partes 6 e 7 e 8 dessa tese, além dos comentários da conclusão, deixam esses aspectos mais evidentes.