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2 ARQUEÓLOGOS DO CONTEMPORÂNEO

2.2 Repórter: agente de múltiplas faces

Na história do jornalismo brasileiro foi marcante, desde o século XIX até meados do século XX, a presença ativa de escritores nas redações, como José de Alencar, Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Graciliano Ramos. O trabalho nos jornais, para esses autores, garantia uma melhora no soldo no fim do mês. Mas, principalmente, era uma forma de dar mais visibilidade ao seu nome em um mercado de letras instável, num país com a marca do analfabetismo. No entanto, a partir dos anos 1950, a influência do jornalismo norte-americano, com as receitas da pirâmide invertida, concisão textual, eliminação dos adjetivos e excessos linguísticos e a implementação do seu maior símbolo, o lead, ajudaram tanto a reconfigurar o estilo dos jornais, quanto a consolidar a imagem de um novo profissional, menos literato e mais repórter.

Tratando do jornalismo norte-americano dos anos 1960, Wolfe (2005, p. 13) menciona que, além dos repórteres de jornal, que competiam pelo furo jornalístico, poderiam ser identificados outros profissionais, como os “escritores de reportagens especiais”, que consideravam “o jornal um motel onde você se hospedava para passar a noite a caminho do triunfo final”. Para esses profissionais, em uma interpretação irônica do pesquisador, o emprego em uma redação ajudava a pagar as contas, eliminar “um pouco de gordura do seu estilo” e mesmo travar contato com as experiências cotidianas. A intenção final, no entanto, era outra: “demitir-se pura e simplesmente, dizer adeus ao jornalismo, se mudar para uma cabana em algum lugar, trabalhar dia e noite durante seis meses, e iluminar o céu com o triunfo final. O triunfo final era conhecido como O Romance”. Wolfe (2005, p. 16) explica que “O Romance não era uma mera forma literária. Era um fenômeno psicológico. Era uma febre cortical”.

Certos jornalistas, como John Reed, Lilian Ross, John Hersey e, posteriormente, Gay Talese e o próprio Tom Wolfe, passaram a experimentar na imprensa técnicas que já haviam sido exploradas na literatura de escritores como George Orwell, Charles Dickens ou Jack London, como o olhar atento para os seres humanos comuns em um mundo pulsante, seus diálogos, ações e personalidades. Wolfe (2005, p. 19) diz que uma “curiosa ideia, nova, quente o bastante para inflamar o ego” começou a se insinuar no início dos anos 1960, “nos estreitos limites da statusfera” das reportagens especiais: “Essa descoberta, de início modesta, na verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que talvez fosse possível escrever jornalismo para ser... lido como romance”.

Analisando as características desses profissionais, Wolfe (2005, p. 37) aponta que “o tipo de reportagem que faziam era mais intenso, mais detalhado e sem dúvida mais exigente em termos de texto do que qualquer coisa que repórteres de jornais e revistas, inclusive repórteres investigativos, estavam acostumados a fazer”. Entre os procedimentos mais diferenciados estava o hábito de conviver semanas inteiras com as pessoas que descreveriam. “Parecia absolutamente importante estar ali quando ocorressem cenas dramáticas, para captar o diálogo, os gestos, as expressões faciais, os detalhes do ambiente.” A intenção principal era oferecer ao leitor, além de uma “descrição objetiva completa”, um painel da “vida subjetiva ou emocional dos personagens”. A conclusão polêmica de Wolfe sobre livros como Dez dias que

abalaram o mundo, de John Reed, A sangue frio, de Truman Capote, ou os pioneiros Filme, de Lilian Hoss, e Hiroshima, de John Hersey, é que eles conseguiram tratar mais

a fundo as problemáticas e convulsões sociais do século XX do que os próprios romancistas, que estavam vivenciando experiências introspectivas.

Como será visto com mais propriedade no capítulo 4, tanto os jornalistas- cronistas brasileiros da primeira metade do século XX, como João do Rio, quanto os repórteres profissionais que produziram textos aprofundados nas décadas seguintes, como Edmar Morel, já observavam o livro como um objeto simbólico importante, a princípio publicando editorialmente suas reportagens em forma de livros-coletânea. Esse processo antecede o fenômeno atual de contratação de jornalistas pelas editoras para produzir livros-reportagem exclusivos, que abriu outro leque de possibilidades expressivas. Entendido como complementar ao trabalho jornalístico, permitindo uma prática extensiva e até transformadora de todos os seus procedimentos, o livro- reportagem sempre significou, ao longo da história do jornalismo brasileiro, mais uma das formas de interpretação complexa das problemáticas contemporâneas.

Vidal e Souza (2010, p. 49) aponta que essa transição do jornalismo aproximado com a literatura para um território mais centrado nas normas utópicas da “imparcialidade” e da “objetividade”, se deu de forma turbulenta e irregular no Brasil dos anos 1950. Porém, a “construção social da profissão de jornalista” seguiu um rumo irreversível. Esse novo adestramento para uma feição mais “moderna (informativa mais que opinativa; jornalística mais que literária)” foi auxiliado pela expansão dos cursos universitários de formação, os manuais de redação e os critérios de seleção dos jornais. Desde então, ser conhecido pelos pares como jornalista passou a envolver, sobretudo, um critério essencial, apontado por Vidal e Souza (2010, p. 28): “A categoria

‘objetividade’ surge como característica da identidade jornalística no que se refere a um modo de narrar distinto da tradição literária em transformação”.

Portanto, ser jornalista de redação cada vez mais se tornou sinônimo de adestramento a uma rotina veloz. Cumprimento de muitas pautas em pouco tempo e espaço limitado para publicação, de olhar atento para os fatos singulares do cotidiano, enquadrados em lógicas específicas de “valores” (proximidade, notoriedade, conflito, entre outros) e de enquadramentos da linguagem em padrões de clareza e objetividade. Ao ingressar no universo dos livros-reportagem, os jornalistas tentam minimizar esses efeitos do campo. Procuram lançar um olhar mais abrangente e menos fragmentado para tentar narrar-costurar os acontecimentos cotidianos não necessariamente factuais, com as linhas narrativas mais consistentes da visão contextualizada. Embora isso seja possível, em certa medida, para alguns raríssimos jornalistas com o status de especializados no cenário da imprensa diária, o livro oferece várias vantagens, com menos negociações.

Tratando do livro-reportagem, Lima (2009, p. 4) acredita que esse produto preenche os “vazios deixados pelo jornal, pela revista, pelas emissoras de rádio, pelos noticiários de televisão, até mesmo pela internet”. Esse gênero contribuiria para o “aprofundamento do conhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efêmero da mensagem da atualidade praticada pelos canais de comunicação jornalísticos”. Assim, o livro-reportagem seria um “subsistema híbrido” (LIMA, 2009, p. 11), ligado aos sistemas de jornalismo e ao de editoração. Em sua tese, a pioneira em termos de estudos a respeito do assunto no Brasil, o autor identifica a postura diferenciada de autoanálise dos jornalistas que com ele se envolvem.

Na definição de Catalão (2010, p. 128), o livro-reportagem seria um gênero de discurso produzido em forma de reportagem e difundido nesse formato, por um “repórter-autor” que assume o “trabalho de planejamento, coleta e elaboração das informações”. Estas, por sua vez, serão transmitidas a um público leitor “potencialmente numeroso, difuso, heterogêneo e não-especializado”. Trata-se, na sua visão, de uma situação particular de comunicação, já que nasce das “ideias, indagações, descobertas, interesses e valores de um autor específico” (CATALÃO, 2010, p. 118). Essa definição também parece se encaixar com a função do “jornalista-intelectual”. Mas não se pode esquecer que, mesmo não estando inserido no processo produtivo coletivo e hierarquizado, o jornalista escritor de livros-reportagem terá que se adequar a outros tantos ditames do universo editorial e mesmo às pressões internas, psicológicas.