• Nenhum resultado encontrado

3 REVISANDO PARADIGMAS

3.1 Outras palavras

Discutir o papel desse tipo de escritor na construção social da realidade passa, necessariamente, pelo desarme dos conceitos de objetividade e imparcialidade, arraigados como visgo histórico na profissão. O filósofo e professor Paulo Serra (1998, p. 78) pondera que “não há uma verdade objetiva, única e absoluta, mas uma verdade intersubjetiva, múltipla e relativa, resultante do confronto das diversas verdades e dos diversos saberes”. Como o jornalismo trabalha com a organização e hierarquização dos discursos para interpretar aspectos singulares da realidade, precisa abandonar as ilusões de realidade objetiva e absoluta. “Resta-nos uma realidade caleidoscópica e fragmentada a que só pode corresponder um saber também caleidoscópico e fragmentado.”

Esta tese defende que o trabalho mais individualizado e menos hierarquizado no livro-reportagem contribui para que o jornalista reflita com paciência sobre as suas

62 relações com a organização do quebra-cabeça dos fatos que dispõe em capítulos e, principalmente, sobre suas formas de aproximação dos personagens entrevistados. Os conceitos de relevância, atualidade e singularidade, essenciais ao jornalismo como instituição de representação, se apresentam remodelados, assim como se ensaia, em raros casos atuais em redações, nas reportagens especiais, ou nas propostas de grandes reportagens multimídia digitais.

Relevante não é mais o que aconteceu no plano do imediato, há poucos minutos, horas ou dias. O sentido de instantâneo entra em colapso no livro-reportagem, pois o seu presente é dilatado, estendido. Assim, a cilada do “furo” jornalístico deixa de representar uma ameaça à qualidade do texto. Ao mesmo tempo, o olhar do jornalista passa a abarcar, mais do que o atual, o contemporâneo. Ao reconstituir os discursos e atos de personagens que muitas vezes já morreram e redesenhar os panos de fundo históricos, os cenários onde se desenrolaram os fatos, a intenção é tornar presente para o leitor um passado não muito distante, muitas vezes procurando, pelos caminhos da reportagem, pistas dos acontecimentos contextualizados de outrora para refletir sobre aquelas problemáticas que persistem na atualidade.

Nos agradecimentos do livro Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, o jornalista Mário Magalhães (2012, p. 584) explica que sua intenção era a de “contar uma vida fascinante sem as amarras de tempo e espaço, característica das emergências de uma redação de jornal”. Adiante, menciona a emoção de lidar com outras formas de produção jornalística que raros meios permitem: “Para um repórter, poucos desafios equivalem a descobrir e narrar a epopeia de quem quase sempre se viu obrigado a pelejar nas sombras”. Dá pistas, ainda, sobre o arco de tempo mais estendido, menos factual, com que o escritor de livros-reportagem trabalha: “Marighella me permitiu mergulhar em quatro décadas conturbadas do Brasil e do mundo do século XX”.

O jornalismo trabalha com a organização de discursos e hierarquizações de visões de mundo em processos de objetivação. Berger e Luckmann (2007, p. 60) afirmam que “a linguagem é capaz de tornar presente uma grande variedade de objetos que estão espacial, temporal e socialmente ausentes do aqui e agora”. Ou seja, por meio da linguagem “um mundo inteiro pode ser atualizado a qualquer momento”, definição que se encaixa na descrição do modo de operação do jornalismo. Entre outras instituições que receberam legitimação social histórica para interpretar a realidade, o jornalismo é uma das que apresentam fatores de convencimento mais evidentes.

63 Ainda sobre o poder da linguagem, Berger e Luckmann (2007, p. 67) ponderam que ela é capaz de “tornar o repositório objetivo de acumulações de significados e experiências, que pode então preservar no tempo e transmitir para gerações seguintes”. Pode-se considerar que esse atributo, no campo do jornalismo como instituição, tem mais condições de ser desenvolvido pelo jornalista escritor de livros-reportagem. Esse produto, resultado de anos de pesquisa, está centrado em um arco temático e de tempo mais amplo, assim como apresenta uma visão contextual dos acontecimentos e personagens relatados que vai além do mero registro fugaz do cotidiano. O livro, diferente dos jornais e revistas – em uma vantagem com relação às grandes reportagens experimentadas nestes veículos – ganha um status de relevo nas bibliotecas dos leitores, permitindo consultas constantes. As informações ali organizadas e apresentadas parecem ter um potencial de perenidade bem maior, embora nunca incontestável.

O trabalho do autor de livros-reportagem se aproxima daquele do historiador, guardadas as várias diferenças entre esses olhares profissionais, pois lida com o conceito de contemporaneidade dos acontecimentos. Quando trata de períodos históricos que não viveu, ou mesmo de grupos humanos que compartilham modos de convivência incomuns, ele precisa fazer um esforço de interpretação para compreender como se organizam as visões de mundo naquela época ou comunidade.

Recordista de vendas no Brasil com sua trilogia 1808 (2007), 1822 (2010) e

1899 (2013), que vendeu, em conjunto, mais de dois milhões de livros, o jornalista

Laurentino Gomes (2013, p. 27-28) costuma explicar, nas apresentações de suas obras, o seu trabalho peculiar de interpretação jornalística dos fatos históricos: “Fiel à fórmula das minhas obras anteriores, procuro usar aqui a linguagem e a técnica jornalísticas como recursos que julgo capazes de tornar a história um tema acessível e atraente para um público mais amplo”. O autor complementa o raciocínio argumentando que “escrita em linguagem adequada, a história pode se tornar um tema interessante, irresistível e divertido, sem, contudo, resvalar na banalidade”.

Laurentino Gomes (2013, p. 28) também tem consciência dos limites do olhar jornalístico perante a história ao confessar que o livro “não pretende, nem poderia, oferecer respostas para questões mais profundas envolvendo a história republicana, sobre as quais inúmeros e bons estudos acadêmicos já se debruçaram”. Ciente do papel de resgate da memória do livro-reportagem, o autor conclui que o objetivo de sua trilogia é somente o de relatar “sob a ótica da reportagem alguns dos momentos mais

64 cruciais daquela época, de maneira a retirá-los da relativa obscuridade em que se encontram hoje na memória nacional”. Mas também convoca o leitor para a construção social da realidade, em contrato de comunicação: “Caberá aos leitores refletir se deles é possível retirar lições que sejam úteis na edificação do futuro”.

Para Genro Filho (2012, p. 168), “as informações que circulam entre os indivíduos na comunicação cotidiana apresentam, normalmente, uma cristalização que oscila entre a singularidade e a particularidade”. A singularidade aparece na “atmosfera cultural de uma imediaticidade compartilhada”, algo como uma experiência direta, a base teórica da notícia objetiva. Já a particularidade “se propõe no contexto de uma atmosfera subjetiva mais abstrata no interior da cultura, a partir de pressupostos universais geralmente implícitos”. Comparando a arte com o jornalismo, no primeiro caso estamos falando de uma “singularidade arbitrária, um ponto de partida no caminho da criação estética”. O ponto conclusivo da arte seria a “superação da singularidade pela instauração do típico – o particular estético”. Na ótica de Genro Filho, no jornalismo a singularidade não é arbitrária e se configura como “um ponto de chegada que coincide com a superação do particular e do universal”, mesmo assim sobreviventes no corpo da notícia e “sob a égide do singular”.

Ao teorizar sobre a reportagem e toda a sua configuração de maior contextualização e aprofundamento, Adelmo Genro Filho (2012, p. 208) considera que a

“particularidade (enquanto categoria epistemológica) assume uma relativa autonomia,

ao invés de ser apenas um contexto de significação do singular”. Dessa forma, ela própria procura sua “significação na totalidade da matéria jornalística, concorrendo com a singularidade do fenômeno que aborda e dos fatos que o configuram”. Assim, na reportagem – e, em muitos casos, no livro-reportagem, como se acrescenta nesta tese –, “a singularidade atinge a particularidade sem, no entanto, superar-se ou diluir-se nela”, atingindo algo próximo do que ocorre na arte.

Tratando do caso específico do jornalismo literário, particularmente como foi desenvolvido pelos norte-americanos, Genro Filho (2012, p. 210) considera que a busca do particular-estético ou o típico permitiu a esses jornalistas “a percepção de certos aspectos que o simples relato jornalístico cristalizado na singularidade não comportava”. Mesmo assim, essa categoria não seria preponderante, pois os recursos literários seriam utilizados como “instrumento para a dramatização do acontecimento e

65 a revelação mais explícita – e não apenas insinuada ou pressuposta – do conteúdo universal do fenômeno reproduzido”.

Embora esses recursos deem a ilusão ao leitor de vivenciar os acontecimentos, ele vai continuar na sua postura de certo distanciamento, pois sabe que eles são “reais” e que realmente não os viveu. Na arte, o efeito de catarse é mais eficaz, na ótica de Genro Filho, pois essa realidade não é mais do que um “sonho” do autor que pode ser compartilhado e vivenciado como “verdadeiro” pelo público. O pesquisador admite que em reportagens raras, que consigam sintetizar “aspectos lógicos e emocionais” de forma plena, o jornalista pode realmente fazer com que os espectadores ou leitores, como no caso do livro-reportagem, sintam-se como “testemunhas e participantes dos fatos reais”. Porém, cético, acrescenta que “não vale a pena substituir um bom jornalismo por má literatura”, já que o chamado jornalismo literário só seria mesmo exequível nos casos em que o resultado articule “harmonicamente os efeitos estéticos e jornalísticos, sem que um supere o outro”, algo bastante complexo, trabalhoso e raro.

Entre os jornalistas brasileiros, Elio Gaspari foi um dos que mais experimentaram o sentido do aprofundamento contextual, ou da particularidade, que um livro-reportagem pode proporcionar – mais do que uma grande reportagem, uma série publicada em jornais ou um especial multimídia de internet – para entender acontecimentos contemporâneos, assim como das noções estendidas de tempo para a produção e de espaço para organizar de forma interessante todas as informações apuradas. Escolheu como matéria-prima um passado recente, porém complexo, já que enfrentou e ainda enfrenta várias tentativas de silenciamento e apagamento: o período da ditadura militar brasileira, de 1964 a 1985. O resultado de mais de 30 anos de pesquisas documentais e entrevistas exclusivas é a maior série de livros-reportagem sobre um mesmo assunto já produzida no Brasil até agora, com cinco livros, sendo os dois primeiros incluídos no conjunto As ilusões armadas e os outros três na série O

sacerdote e o feiticeiro.

A ditadura envergonhada (2002a), o primeiro volume, concentra-se no período

que vai da deposição do presidente João Goulart, em 31 de março de 1964, até logo depois do AI-5, de 13 de dezembro de 1968. A ditadura escancarada (2002b) continua a história a partir do ano de 1969, já com os efeitos do Ato e segue até o extermínio da guerrilha do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), no Araguaia, em 1974. Os dois volumes seguintes, A ditadura derrotada (2003) e A ditadura encurralada (2004) têm

66 como foco a vida de do ex-presidente Ernesto Geisel e seu fiel assessor, Golbery do Couto e Silva, detalhando os bastidores sobre a volta de ambos ao Planalto e os quatro primeiros anos de seu governo. Com um intervalo de 12 anos após a penúltima parte, Gaspari lançou, em 2016, A ditadura acabada. O livro trata dos acontecimentos que vão desde 1977, ainda na presidência de Geisel, até os fatos que marcaram a gestão do então presidente João Baptista Figueiredo e o fim do governo militar, como a explosão do Riocentro, em 1981, a crise econômica e a campanha popular das Diretas Já.

Entender os bastidores da elaboração dessa série, um verdadeiro projeto de longo prazo de um jornalista fora das redações, é uma possibilidade de desvendar vários mecanismos de invocação da herança jornalística para a produção de um livro- reportagem. E também oportunidade para compreender quais mecanismos de construção social do real um jornalista com mais tempo para produção pode engendrar. É o próprio Elio Gaspari que explica aos seus leitores, no prefácio do primeiro volume, que tudo começou em 1984, quando ele ganhou uma bolsa de três meses e uma saleta de pesquisa no Wilson Internacional Center for Scholars, em Washington, próximo à Biblioteca do Congresso. Sua ideia inicial era modesta, um ensaio de cerca de 100 páginas, no qual trataria das relações entre Geisel (o Sacerdote) e Golbery (o Feiticeiro), da implantação da ditadura ao início do seu desarme, no final dos anos 1970.

“Já havia escrito umas trinta páginas quando percebi que sua única utilidade era a de me mostrar que ou eu trabalhava muito mais, ou seria melhor esquecer o assunto”, confessa Gaspari (2014, p. 15) sobre aquele momento. Ele ficou encabulado quando sua bolsa expirou e teve que se despedir do diretor do instituto, o professor James Billington, explicando que “não terminara ensaio nenhum e chegara à conclusão de que talvez devesse escrever um livro”. Para sua surpresa, o historiador renomado disse que ficava muito feliz com esta informação, pois o verdadeiro motivo, em sua opinião, da existência do Wilson Center era, segundo relata Gaspari (2014, p. 16) “fazer que uma pessoa saia de suas ocupações rotineiras e descubra que deve escrever um livro”.

Incentivado por esse comentário, o jornalista iniciou um projeto de uma vida. Elio Gaspari (2014, p. 17) tinha dois trunfos inegáveis na mão para construir uma obra com novidades sobre um assunto que vinha sendo estudado por vários historiadores: “Este livro não existiria sem a decisão de Golbery de entregar-me seu arquivo e sem a paciente colaboração de Ernesto Geisel. Convivi com ambos”. Pouco antes de morrer, em 1987, Golbery ainda fazia confissões a Elio Gaspari, mas, segundo o escritor,

67 embora lastimasse que não pudesse viver para ver o livro com o qual contribuíra publicado, nunca pediu para conferir previamente os capítulos já escritos.

Naquele momento, passados quase três anos de pesquisas, já achava que estava escrevendo dois livros, cada um com cerca de 300 páginas. Com Geisel, Elio Gaspari (2014, p. 17) teve “dezenas de demoradas e profícuas conversas a partir de 1979”. Mas só em 1994, depois de quinze anos de insistência, é que o ex-presidente finalmente concordou em gravar um depoimento sobre sua vida em vinte sessões, com duração de 90 minutos cada uma, que tiveram que ser interrompidas com o seu adoecimento, em 1996. Havia um trato de que as fitas ficassem no poder de Geisel, mas após sua morte, para alívio do repórter, a filha do ex-presidente lhe entregou 12 delas.

O jornalista somou esse material a outras 300 horas de gravações e conversas soltas mantidas com Geisel e aos depoimentos de cerca de 200 pessoas entrevistadas em 18 anos, tratando dos temas mais diversos, como as posturas progressistas da Igreja Católica, a Guerrilha do Araguaia, a gestão econômica no período e as ações da guerrilha armada e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O mencionado arquivo de Golbery, chave para a pesquisa documental, estava desorganizado, mas guardava 25 caixas, ameaçadas pelo mofo, contendo cerca de cinco mil valiosos documentos sobre o período. Outra documentação essencial foi a do secretário fiel de Golbery, Heitor Aquino Ferreira, que lhe forneceu cópias do seu diário entre 1964 e 1976. “Naqueles cadernos, parcialmente lidos por Geisel, está o mais minucioso e surpreendente retrato do poder já feito em toda a história do Brasil” (GASPARI, 2014, p. 17).

Mesmo tendo a segurança de todo esse material na mão, organizado, com ajuda de terceiros, em um banco de dados que somou 28 mil fichas, e contando com décadas para trabalhar com paciência na organização e interpretação do seu conteúdo, Gaspari acredita que nunca lhe passou pela cabeça dar conta da história da ditadura brasileira, ainda que tenha escrito cinco livros sobre o assunto. Com modéstia, demonstrando a consciência da falibilidade jornalística e abrindo espaço para que o tema persista como assunto de investigação de outros profissionais, Gaspari (2014, p. 22) conclui: “Falta ao trabalho a abrangência que o assunto exige, e há nele uma preponderância de dois personagens (Geisel e Golbery) que não corresponde ao peso histórico que tiveram os 21 anos de regime militar”. Ou seja, o assunto abordado por um livro-reportagem, mesmo quando explorado de forma exaustiva, nunca pode ser considerado exaurido ou palavra final em termos de interpretações possíveis. Também vale acrescentar que a

68 série sofreu críticas por parte de setores da imprensa brasileira principalmente pelo seu foco mais decisivo nas versões de Golbery e Geisel, o que comprova que, mesmo em um projeto tão extenso, é impossível dar conta de toda multiplicidade de um período histórico tão rico.