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4 PÁGINAS DE OUTRORA

4.1 Origens remotas e os sertões de Euclides

No fim do século XIX a imprensa brasileira era ocupada por políticos, intelectuais e literatos. Certos escritores com passagem em jornais, que antecederam Euclides da Cunha, também deixaram suas heranças híbridas para a narração de um Brasil desconhecido. Suas obras podem ser classificadas como misto de historiografia, antropologia e sociologia, pois ainda não estavam delimitadas as supostas fronteiras do jornalismo. Mas destoavam do tom acadêmico formal justamente pelo olhar mais atento ao ser humano, seus ambientes e particularidades e pelos textos diretos e descritivos.

O mineiro de Diamantina José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), como muitos intelectuais brasileiros de sua época, foi político, militar, escritor, folclorista e até presidente de províncias. Seu título de poliglota incluía dialetos indígenas, tendo inclusive escrito um tratado sobre o assunto em O selvagem (1876). Porém, sua obra mais marcante a ser citada nessa linha histórica menos ortodoxa do livro-reportagem é o livro Viagem ao Araguaia (1863). Resultado de uma expedição exploratória ao longo do rio, no qual descreveu, em forma de diário, além de aspectos geográficos, as figuras indígenas da região, como os canoeiros.

Magalhães (1902, p. 35) conta que originalmente publicou seus relatos no jornal

O Federalista, responsável pela primeira edição, logo esgotada. Para ele, o livro traz

“recordações do interior, ou sertões de nossa terra”, agregando o relato de “costumes e cousas que tendem a desaparecer e que por isso mesmo convém descrever”. O autor faz uma reflexão sobre a postura dos leitores: “Até a algum tempo, o leitor brasileiro interessava-se mais pelas notícias de fora, do que pelas da nossa terra. Hoje, possuímos já considerável número de leitores para as cousas que nos dizem respeito”.

Já o carioca Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899), historiador, sociólogo, político e militar, mais conhecido como Visconde de Taunay, participou da Guerra do Paraguai entre 1864 e 1870 na condição de engenheiro militar. Em 1871 publicou, originalmente em francês, o relato histórico La retraite de Laguna, depois traduzido no Brasil para A retirada da Laguna. Diferente de Euclides da Cunha, que iria a Canudos

98 na condição de repórter, Taunay viveu as situações que relata, no caso uma derrota do Exército brasileiro. Ao tentar ocupar a fazenda Laguna, no Paraguai, propriedade do ditador Solano López, uma tropa foi encurralada pelos soldados paraguaios e teve que recuar com sobreviventes maltrapilhos e deixando mais da metade dos homens mortos. O relato vívido pode ser aqui enquadrado como um exemplo de observação de personagens em ação e narrativa ágil, que marcariam obras futuras, mais jornalísticas.

Em prefácio assinado em outubro de 1868, Taunay (1874, p. 5) já pedia aos seus leitores brasileiros uma “indulgência para uma narração que não almeja a outro mérito além do que contêm os fatos narrados”. Alegando ter buscado, em sua narrativa, ser fiel ao seu diário de campanha, o escritor alerta que deixou, de propósito, “muita incorreção, demasia, repetições”, supondo ter sido melhor não editá-las como “sinais de presença da verdade”. O narrador dá pistas de que o leitor da época valorizava bastante esses traços de suposta aproximação com a chamada “realidade”, mesmo na literatura.

No entanto, pela ótica das influências entrelaçadas que o jornalismo brasileiro mantém com a literatura e a história, a obra Os sertões (1901), de Euclides da Cunha (1866-1909), é marco para o livro-reportagem no Brasil, embora seja um ensaio literário. Nem tanto pela linguagem, preciosista, complexa, diferente das estratégias de sedução e clareza narrativa que outros jornalistas lançariam mão ao escrever livros, mas sim pela paciência em deixar decantar a experiência de ter acompanhado um front de guerra, em Canudos, no sertão da Bahia, como repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Euclides transforma aquele noticiário telegráfico em observação social mais aguda, embora questionada pela sociologia atual pelo seu tom determinista, tendo o ser humano e os seus conflitos como centro.

A matéria-prima de Os sertões nasceu da missão assumida pelo engenheiro, escritor e repórter do jornal O Estado (então A Província) de S. Paulo de acompanhar a última das quatro expedições do governo republicano, que resultou no massacre do arraial de Canudos. Na condição dupla de adido do Estado Maior do Ministro da Guerra, conforme lembra Galvão (2010, p. 10), ele enviou uma série de reportagens ao jornal, nas quais se “leem o entusiasmo republicano e o fervor sacrificial de que todos estavam possuídos”.

De fato, Euclides da Cunha partiu a campo com uma visão favorável ao governo e contra os revoltosos. Mas a experiência visceral de massacre daqueles sertanejos pobres e de um Brasil desconhecido, complexo e remoto com a qual se deparou

99 transformou seu imaginário de repórter. Embora tenha chegado a Canudos nos últimos momentos da batalha e permanecido alojado com os oficiais, ele ensejou um olhar de jornalista o menos maniqueísta possível, como analisou Vidal e Souza (2010, p. 104): “Circulando pelo acampamento dos soldados, o repórter acompanhou a conversa dos prisioneiros com os militares, de quem registrou trechos de suas falas. A linguagem dos sertanejos foi reproduzida”.

Filtrando a experiência e cotejando diversos outros saberes, Euclides da Cunha elaborou, com tempo, seu livro Os sertões, diferente do material fugaz publicado originalmente no jornal. No prefácio original, o autor descreve seu propósito: “Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil” (CUNHA, 2010, p. 19). O autor acreditava que os sertanejos estavam próximos ao “desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra”. Em seguida, reafirma que o que aconteceu em Canudos foi, “na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo” (CUNHA, 2010, p. 20).

Alcançando êxito de público, Os sertões serviu, na análise de Galvão (2010, p. 12), como um “vasto mea culpa” para a opinião pública brasileira, que se viu “abalada por ter incorrido num equívoco, escancarando sua sanha sanguinária contra um punhado de pobres que não ameaçava ninguém”. Como um poderoso elemento reconfigurador dos sentidos de real, o livro deixou patente, ainda segundo Galvão, a manipulação dos jornais e das autoridades. “As manifestações de desagravo aos canudenses espalharam- se pelo país e pelos setores sociais, mesmo os que, no início, eram os mais vociferantes. O exército envergonhou-se e os brasileiros envergonharam-se do exército” (GALVÃO, 2010, p. 13).

Pelos padrões do mercado editorial brasileiro do início do século, Os sertões foi um sucesso de vendas, como constatou Hallewell (2005, p. 273). Sua primeira edição, publicada pela editora Laemmert&Cia em 1902, com mil exemplares, esgotou-se em dois meses. A segunda, de junho de 1903, e a terceira, de 1905, somaram mais 10 mil exemplares. No entanto, a obra não foi tão lucrativa para o seu próprio autor. “Euclides, que teve que pagar a metade da impressão da primeira edição, recebeu 700$000, e suas dificuldades financeiras obrigaram-no a vender seus direitos à Laemmert

100 definitivamente, em 1905, por 1:800$000.” Era só o início de uma relação financeira instável entre os jornalistas e o mundo editorial.

Mais do que tentar enquadrar Os sertões como um produto jornalístico, ou um livro-reportagem, o que realmente essa obra, em sua forma não é, as atitudes do jornalista que aprofunda suas experiências como escritor e seu olhar sobre o “real” ficam como lição para o desenvolvimento da reportagem no Brasil. Essa postura de total imersão naquele ambiente de conflagração e o legado de como Euclides procurou narrá- lo estão arraigados na fala dos jornalistas entrevistados para esta tese.