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4 PÁGINAS DE OUTRORA

4.8 Desafiando o sistema

Nos anos 1970, além de ter traduzido obras de Marx e Engels, a pequena editora Alfa-Omega apostou em iniciativas ousadas no campo do jornalismo, como encampar a publicação de A ilha, de Fernando Morais, em 1976. Em 1978, lançou em bancas de revistas uma série de cinco livros em formato de revista que abordavam temas tabus e silenciados pela grande imprensa, intitulada História Imediata. O primeiro número, que em uma semana quase esgotou sua tiragem inicial de 25 mil exemplares, demonstrando um ávido interesse dos leitores, foi justamente A guerrilha do Araguaia (1978),

117 resultado do trabalho coletivo de Palmério Dória (1948), Sérgio Buarque, Vicent Carelli (1953) e Jaime Sautchuk (1953).

Sem contar com a colaboração de fontes oficiais e aproveitando-se do fato de já não estarem pressionados pela censura prévia, os autores promoveram uma investigação de cinco anos. Ouviram bispos, padres, camponeses, fazendeiros, bate-paus, alguns militares e até mesmo indígenas da região, elaborando, na narrativa, um mosaico de versões, iluminado por escasso material documental, como o raro jornal clandestino

Araguaia, que foi porta-voz dos guerrilheiros. No texto de abertura dos autores, afirma-

se o compromisso assumido, como repórteres, de resgatar do “nada da censura o tudo da História”. “Transformaram-se em correspondentes de guerra – sem convite nem credenciais – para resgatar do silêncio, que acoberta, mas não redime, os detalhes do acontecimento que nos afetou a todos” (DORIA et. al., 1978, p. 6).

Empolgados com o sucesso da primeira edição, os editores criaram, na contracapa do livro-revista número 2, A greve na voz dos trabalhadores: da Scania a Itu (1979), um curioso anúncio, ilustrado pelo desenho de uma moeda em pé, projetando uma sombra, equilibrada, emoldurando um texto que anunciava: “Agora você pode saber, com todos os detalhes, como é que aconteceram todos aqueles fatos que a censura escondeu dos brasileiros durante tanto tempo”. E assumem o compromisso com os leitores de, mensalmente, mostrar “como é o outro lado da moeda – o lado que o mundo oficial proibiu e a grande imprensa silenciou”.

Fechando a proposta, como quem sela realmente um contrato, o anúncio garante: “História Imediata analisa a história recente do país, dando a palavra aos repórteres que têm um compromisso com a democracia e com a liberdade de imprensa”. No número 3 a coleção traria uma reportagem contundente do jornalista Carlos Luppi (1957), Araceli,

corrupção em sociedade (1979), abordando o mesmo assassinato que José Louzeiro

explorara. No número 4, um perfil biográfico escrito pela dupla de jornalistas Getúlio Bittencourt (1951-2009) e Paulo Sérgio Markun (1952), cujo tema foi a vida de D.

Paulo Evaristo Arns: o cardeal do povo (1979). E no quinto e último volume, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, Luiz Henrique Ramagnoli (1959) e Tânia Gonçalves

relataram toda a história atribulada dessa entidade estudantil.

Na lista de obras de oposição mais vendidas organizada por Maués (2013, 49- 50) compreendendo o período entre 1978 e 1984, aparecem livros-reportagem que tiveram entre seus escritores nomes então já consagrados na imprensa diária. Ricardo

118 Kotscho (1948) publica, em 1982, O massacre dos posseiros pela editora Brasiliense. A Global emplacou boas vendagens com Tortura: a história da repressão política no

Brasil, de Antonio Carlos Fon (1945), e Guerra de guerrilhas no Brasil, de Fernando

Portela, ambos em 1979. E, em 1980, Lamarca, o capitão da guerrilha, de Emiliano José (1946) e Oldack Miranda (1945), já antecipando a vertente das biografias políticas. Destaque para 113 dias de angústia: impedimento e morte de um presidente, de Carlos Chagas (1937-2017), em 1979. No mesmo final de década a Alfa-Omega chamou atenção com o desempenho comercial de A ilha: um repórter brasileiro no país de Fidel

Castro, de Fernando Morais, além de A sangue-quente: a morte do jornalista Vladimir Herzog, de Hamilton Almeida Filho (1954), e Cuba hoje: 20 anos de revolução, de

Jorge Escosteguy (1946-1996).

De fato, desde o ano de 1977 a censura já vinha fechando os olhos para livros de membros do MDB, com fortes tintas políticas, como Os militares no poder, do político e jornalista Carlos Castello Branco (1920-1993), publicado em quatro volumes até 1981. Mas, segundo Hallewell (2005, p. 181-182), a “abertura” referente aos livros começou mesmo com a posse do último presidente militar, João Baptista Figueiredo, em 1979. A Global pôde publicar um título como Dossiê Herzog: tortura e morte no

Brasil, do jornalista Fernando Jordão (1937). Destaque nesse período também para os

romances-reportagem do jornalista Valério Meinel (1940-1997): Por que Cláudia

Lessin vai morrer (1978), O sequestro (1980) e Aézio: um operário brasileiro (1981).

Também reflexo do fim da censura prévia sobre os jornais, em meados dos anos 1970, a liberação da publicação de A ilha representa, para Hallewell (2005, p. 653) uma das primeiras manifestações da “distensão” promovida pelo governo militar. Publicado numa tiragem inicial de três mil exemplares, o livro “quase imediatamente entrou na relação dos best-sellers e ali permaneceu por quase um ano, tendo, em 1980, chegado à cifra de 146 mil exemplares em dezesseis edições”. Além de ser um marco na história do livro-reportagem brasileiro, A ilha abriu a perspectiva de todo um mercado editorial. Foi um sucesso comercial, com 30 edições esgotadas, o marco de 60 semanas nas listas de livros mais vendidos e traduções na Europa, Estados Unidos e América Latina.

O jornalista Fernando Morais abraçou um tema tabu, em pleno governo militar, viajando clandestinamente para Cuba. O prefácio da primeira edição é do escritor Antonio Callado. Ele começa afirmando que A ilha é uma reportagem no “exato sentido da palavra”, para acrescentar, em seguida: “Ela só admitiria um qualitativo, o de

119 reportagem escolhida, já que o autor não foi imperativamente incumbido por nenhum jornal ou revista de ir a Cuba. Escolheu, como jornalista, seu tema, quis conhecer pessoalmente o país” (CALLADO, 1978, p. 17).

O fato de jornais de referência, como o Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo, terem aumentado os seus investimentos nas grandes reportagens, em geral publicadas em séries, gerou uma nova leva de jornalistas escritores. Ancorados pelas editoras citadas, passaram a publicar seus trabalhos na forma de livro-reportagem no final dos anos 1970. O mais produtivo foi Percival de Souza (1943), que ganhou quatro prêmios Esso em sua carreira e escreveu 14 obras, sendo algumas das mais importantes A prisão (1979), trazendo as histórias humanas dos presos da Casa de Detenção de São Paulo; O

crime da rua Cuba (1989), repercutindo seu trabalho de repórter policial; Eu, Cabo Anselmo (1999), no qual conseguiu depoimentos-chave desse nome controverso da

história; Autópsia do medo (2000), sobre o também polêmico delegado Sérgio Fleury; e

Narcoditadura (2002), a respeito das circunstâncias do assassinato do repórter

investigativo Tim Lopes nas mãos de narcotraficantes.

Em depoimento à Cleofe Sequeira (2005, p. 40), Percival de Souza explicita que o livro-reportagem “dá à obra do profissional de jornalismo uma nova dimensão”. Ele explica que coleta sem preocupação um grande volume de material durante o seu processo de investigação, já visando publicar um livro posteriormente. A reportagem sai no jornal, conforme foi combinado com a chefia de redação. “Mas como nem tudo que se apura pode, por limitação de espaço do jornalismo diário, ser publicado, costumo construir uma outra história, que nada tem a ver com a reportagem”, esclarece Percival de Souza.

Convém destacar, ainda, entre os profissionais do Jornal da Tarde, a obra de Cláudio Bojunga (1939) e Fernando Portela, Fronteiras – viagem ao Brasil

desconhecido, também publicada pela editora Alfa-Omega, em 1978. A introdução,

intitulada “15.719 quilômetros de assunto”, informa que os dois repórteres partiram de Brasília, sendo que Fernando Portela percorreu as fronteiras do Amazonas, Amapá e Rondônia, enquanto Claudio Bojunga desbravou de automóvel a fronteira sul e centro- oeste. “Ambos descobriram um Brasil em formação, além Tordesilhas. E viram como esse país praticamente desconhecido está preocupado com os seus pontos extremos, onde toca os seus vizinhos” (BOJUNGA et al., 1978, p. 15).

120 Na tradição da reportagem brasileira de desbravar os lugares desconhecidos do país, os repórteres deixaram um documento contundente para a posteridade. Cláudio Bojunga também mergulhou no campo da biografia em JK, artista do impossível (2001), elogiado perfil do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Fernando Portela continuou explorando temas variados, ligados à geopolítica, em Guerra de guerrilhas

no Brasil (1979), China, viagem pela geografia (1988) e Estados Unidos (1999).

O gaúcho Marcos Faerman (1943-1999) foi outro repórter e editor de olhar arguto que trabalhou no Jornal da Tarde, onde escreveu mais de 800 reportagens durante 24 anos, como informa site oficial feito em sua homenagem, além de ter militado na imprensa alternativa dos anos 1970 nos jornais Ex- e Versus. Publicou alguns dos seus trabalhos em livros individuais, como Com as mãos sujas de sangue (1979). Nessa obra estão seus textos sobre os índios Guarani, em “Os últimos tupiniquins”, e “Madeira Mamoré”, sobre a polêmica e fracassada ferrovia.

Tratando de sua formação como jornalista e seu estilo, em longo texto para o livro Repórteres (1997), organizado por Audálio Dantas, com matérias de 10 jornalistas brasileiros, Faerman (1997, p. 162) classifica a reportagem como um “método de investigação da realidade”, com suas diferenças com relação à historiografia, sociologia ou antropologia, e que tem “como centro a arte de investigar os fatos e saber como escrevê-los”. Ele constata que a melhor ou pior qualidade de um texto depende da “formação cultural de quem escreve”. Criticando os manuais de redação, conclui: “Só ganha espaço, mesmo nas piores redações, quem tem o mínimo de inventividade e não escreve como se estivesse lidando com uma bula de remédios”.

No campo do jornalismo policial, o mítico repórter Pena Branca, ou Otávio Ribeiro (1932-1986), reuniu suas antológicas reportagens em Barra pesada (1977), que traz a entrevista exclusiva com o bandido Mineirinho, as origens do Esquadrão da Morte e o assalto ao trem pagador. Com um estilo todo próprio de gírias e neologismos, é ele mesmo quem explica sua trajetória no jornalismo policial, que começou nos anos 1960: “Enfrentei os eruditos dos crimes, mergulhei nas calamidades públicas e prefaciei outras comédias da vida” (RIBEIRO, 1977, p. 58).

Ressaltando o aspecto de uma verdadeira cena de repórteres que se afirmou principalmente a partir dos anos 1970, o mercado editorial também passou a abrigar coletâneas de reportagens em forma de livro. É o caso de Violência e repressão (1978), com trabalhos de Fernando Portela, Marcos Faerman e Percival de Souza. Mais tarde

121 esse time de repórteres também foi lembrado em coletâneas como A arte da reportagem (1995), antologia de 150 anos organizada pelo jornalista Igor Fuser. Esses livros- coletânea ganham especial importância devido ao fato de muitas das grandes reportagens correrem o risco de perderem-se no tempo, nas páginas amareladas dos jornais antigos. Reunidas em livro, garantem mais status para a perenidade.

Fernando Morais, Percival de Souza, Fernando Portela, Cláudio Bojunga e Marcos Faerman vivenciaram a transição de atitude dos jornalistas com relação aos livros-reportagem. Em uma primeira fase, até agora descrita, as investigações jornalísticas publicadas na imprensa eram transpostas para os livros, em geral com pouca alteração dos textos originais. A partir de meados dos anos 1980, o livro passa a ser encarado, tanto pelas editoras quanto pelos repórteres, como um espaço mais aprofundado para o exercício da reportagem. Aos poucos, as editoras passam a investir em repórteres que apresentam projetos exclusivos, principalmente biografias, tornando ainda mais variada e consistente a produção de livros-reportagem no Brasil a partir do final daquela década.