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4 PÁGINAS DE OUTRORA

4.6 Reportagem e sacerdócio

Pesquisadores da história da imprensa brasileira apontam os anos 1950 como um período marcado por uma busca de autonomia do jornalismo em relação à literatura, justamente quando a reportagem, carregada de impressões pessoais dos jornalistas, passa a ser evitada. Bulhões (2007, p. 138) defende que essa separação entre o jornal e as letras não foi tão absoluta. A crônica continuou como um bastião de resistência e sucesso nas páginas de jornais e revistas de circulação nacional, como O Cruzeiro. Publicações como essa passaram a acolher repórteres desafiadores dos padrões que estava tentando se impor para narrar os fatos.

Para Lima (2009, p. 222), a efervescência cultural e o “intervalo de liberdades democráticas” que se estendeu de 1945 a 1964 representou um solo fértil para criar um “ambiente estimulador para a experimentação e a renovação”. Não é à toa que repórteres que marcaram a década de 1950, David Nasser (1917-1980) e Edmar Morel (1912-1988), assim como Joel Silveira, preocuparam-se em transpor suas reportagens para o formato de livro, com a ajuda da criação da editora de livros O Cruzeiro, em 1943. Dessa forma, talvez procurassem a perenidade, para análise dos leitores do futuro, das suas respectivas marcas de contestação ao modelo vigente.

O mais polêmico entre os jornalistas que se aventuraram no campo do livro nesse período com certeza é David Nasser. Quase sempre acompanhado do mítico fotógrafo Jean Manzon (1915-1990), o repórter protagonizou episódios controversos, como o contato aéreo com os índios Xavantes e uma reportagem fictícia sobre a suposta morte de Manzon, além de disfarçarem-se de estrangeiros para tentar enganar Chico Xavier, então iniciante na sua vida de médium espírita.

No livro Mergulho na aventura (1945), hoje uma raridade, estão reunidas as principais reportagens da dupla. Inclusive com um prefácio de Assis Chateaubriand louvando o livro como uma possibilidade de conferir longevidade a certas reportagens que merecem ter um status mais duradouro. Nasser deixou para a posteridade livros polêmicos, como Falta alguém em Nuremberg: torturas da polícia de Filinto Strubing

109 Cruzeiro de publicar obras com revelações “bombásticas” da política nacional após o final da ditadura de Getúlio Vargas, o Estado Novo, em 1945.

Em prefácio de sua autoria para A revolução dos covardes (1947), libelo jornalístico contra os integralistas, Nasser (1966, p. 6) pondera que “os repórteres preocupam-se, quase sempre, com a hora que passa, embora façam a História dia a dia, nas frentes de luta e nos corredores parlamentares”. Diz que o seu livro não se destina a “reconstituir fatos históricos para que os velhos arquivistas do século que vem o folheiem”, e sim “à geração que surge, aos moços de hoje”, já que seria uma “uma pedra jogada à cara dos tiranos”.

Invocando a força da construção da realidade que o jornalismo é capaz de engendrar e referindo-se à recente queda de Getúlio, Nasser (1966, p. 7) conclui: “Dirão que uma pedra, saída das mãos de um simples repórter, é uma pedrinha. Mas foram essas pedrinhas que derrubaram um simpático e sorridente ditador-mirim, não faz muito tempo”. Analisando o perfil de David Nasser, Vidal e Souza (2010, p. 72) afirma que o repórter é o personagem “da galeria de jornalistas que sintetiza de forma emblemática o dilema entre literatura e jornalismo, suas misturas, seus confrontos, suas oposições”.

Nome consolidado na imprensa desde os anos 1930 e tendo se formado nas redações de O Globo, A Tarde, Diário da Noite, mas, principalmente, em O Cruzeiro, entre 1938 e 1947, Edmar Morel deixou um legado de reportagens publicadas em forma de livro, como Moscou ida e volta (1952), A revolta da chibata (1959) e A marcha da

liberdade (1987). De origem humilde e formação autodidata, caracterizou-se por

reportagens intrépidas, como uma volta pelas fronteiras do Brasil em 12 dias, percorrendo 20 mil quilômetros em 200 horas de voo. Desbravou Mato Grosso, em 1943, em busca do coronel Fawcet, cuja expedição fora eliminada pelos indígenas Kalapalo, e transformou a história no livro E Fawcet não voltou (1944).

Na apresentação do livro Histórias de um repórter, Edmar Morel (1999, p. 10), em texto de 1988, brinca com a ausência de lucros em sua carreira de autor de livros- reportagem: “Contemplo meus 15 livros, num total de 23 edições. Todos os direitos autorais não dão para comprar um Fusca zero quilômetro”. Em prefácio do mesmo livro, intitulado “Morel, o repórter”, Nelson Werneck Sodré (1999, p. 12) elogia as características do jornalista, que reunia, em sua opinião, “qualidades excepcionais de coragem, audácia, faro para o acontecimento insólito, capaz de atrair as atenções e prendê-las a ponto de absorver o interesse do público por dias e dias”.

110 Morel faz uma observação sobre os direitos autorais envolvendo o seu livro

Dragão do mar, o jangadeiro da abolição (1949). Conta que assinou um contrato com a

BBC de Londres para uma adaptação radiofônica do seu livro, que foi ao ar entre 25 e 27 de março de 1951, transmitida em língua portuguesa. “Recebi quatrocentas libras esterlinas – moeda forte – e, com todos os impostos pagos, ainda embolsei o suficiente para comprar um aparelho de televisão, uma geladeira e mandar esposa e filho para o verão em São Lourenço”. No entanto, quando o Ministério da Educação e da Saúde brasileiro fez uma radiofonização do mesmo livro, o autor nada recebeu. “Os direitos autorais em nosso país sempre foram burlados, inclusive pelo governo. Usar o texto dos escritores sem a devida autorização é coisa do cotidiano. Hoje em dia [anos 1980] o negócio está um pouco melhor, mas os abusos continuam” (MOREL, 1999, p. 180).

Convém lembrar que temas históricos sempre fizeram parte do interesse dos jornalistas brasileiros que se dedicaram a pesquisar e escrever livros. O repórter cearense Glauco Carneiro (1938) trabalhou em O Cruzeiro, O Globo, O Jornal e

Manchete e escreveu livros-reportagem e biografias como História das revoluções brasileiras (1965), O revolucionário Siqueira Campos (1966) e A face final de Vargas

(com Lourival Fontes, 1966).

Já os jornalistas nordestinos ajudaram a trazer para o campo do livro assuntos ligados ao Nordeste mais profundo. O repórter e colecionador de arte pernambucano radicado na Bahia Odorico Tavares (1912-1980) reuniu suas reportagens para a revista

O Cruzeiro em Bahia, imagens da terra e do povo (1951), com ilustrações do artista

plástico Carybé. Antes, pela mesma revista, havia viajado pela região de Canudos acompanhado do fotógrafo Pierre Verger (1902-1996), cujo relato transformou no livro

Canudos: cinquenta anos depois (1947).

Cearense do Crato, Nertan Macêdo (1929) foi redator do Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio, biografou o Capitão Virgulino Ferreira Lampião (1962) e

Antônio Conselheiro (1969), além de ter publicado diversos outros livros sobre o

cangaço e o universo nordestino, como Sinhô Pereira: o comandante de Lampião (1975) e O clã de Santa Quitéria (1967). O jornalista e escritor Rui Facó (1913-1963), nascido em Beberibe, Ceará, deixou a obra póstuma de referência, publicada no ano de sua morte, Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas.

Destaca-se, ainda, a importância de se pesquisar a obra de autores naturais de outras regiões do Brasil, como o norte. Em um cruzamento de obra jornalística e de

111 historiador, o paraense Leandro Tocantins (1919-2004) escreveu O rio comanda a vida:

uma interpretação da Amazônia (1952), sendo até hoje referência para se entender a

geografia e os seres humanos da região. Leandro testemunha que o livro reúne “impressões pessoais, pesquisas histórias e geopolíticas, trajetórias humanas, ideias e fatos, a que procurei dar forma e vibração, sem me afastar do real, da verdade” (TOCANTINS, 1952, p. xxi).

Outro exemplo é o jornalista e escritor Edilson Martins (1939), nascido no seringal Esperança, no Acre, militante e preso político, com passagens pelo Jornal do

Brasil, Tribuna da Imprensa, Diário Carioca e revista Manchete. Sua experiência com

os indígenas da Amazônia resultou em livros de referência, como Nossos índios, nossos

mortos (1978), Nós, do Araguaia (1979), Amazônia: a última fronteira (1981) e Chico Mendes: um povo da floresta (1998).

Mas os anos 1950 e 1960 ainda fornecem exemplos de escritores de ficção que, devido ao seu trabalho na imprensa, produziram livros exclusivamente de reportagens, sendo Antonio Callado o caso mais expressivo. Seus livros Esqueleto na Lagoa Verde (1953), sobre o coronel Fawcett, Retrato de Portinari (1957), Os industriais da seca (1960) e Tempo de Arraes (1965) são exemplos valiosos de como um escritor pode moldar a experiência jornalística de interpretação do real, conduzindo-a para os campos da subjetividade e do olhar humano.

Tanto na cobertura do Vietnã no Jornal do Brasil quanto no seu livro a respeito do assunto, Vietnã do Norte (1969), Antonio Callado (1977, p. 15) deixa patente como entendia o seu trabalho jornalístico, que partiu da pergunta inicial: Como os vietnamitas conseguiram vencer a França em 1954 e os Estados Unidos em 1968? Callado (1977, p. 1) explica aos leitores que procurou descobrir no Vietnã, como repórter profissional, “falando a todo mundo, perguntando diretamente aos dirigentes de Hanói, a heróis de guerra, questionando indiretamente gente do povo, camponeses em arrozais e roças de mandioca, pilotos americanos no cárcere”, as respostas para essa complexa questão central. Para tanto, mergulhado no calor da guerra, Callado diz ter presenciado cenas “severas, doces, divertidas”. Reler a obra de Antonio Callado jornalista é um aprendizado para quem interpreta os acontecimentos com mais audácia.

Como se percebe, a presença do livro de reportagens começa a se tornar um pouco mais comum a partir do pós-guerra, no Brasil, ainda que não se possa falar de um mercado sequer em consolidação para o gênero. Os jornalistas escritores encaravam o

112 produto livro como uma possibilidade de reunir o que consideravam de melhor em sua produção publicada nos jornais e revistas. Já se afirmava, pelo menos, o caráter de maior perenidade do livro dentro das significações simbólicas da instituição jornalística. Mas nenhum desses nomes se lançou ao desafio de preparar material exclusivo para livro, o que só vai se tornar constante a partir de meados dos anos 1980.

É notável que essa produção pioneira, que abrangeu mais da primeira metade do século XX, tenha em comum a figura do repórter-narrador intrépido, que tudo observa e analisa com uma narrativa coloquial e outras estratégias de proximidade com o leitor. Heranças que vão perseverar, em certo sentido, na obra de vários jornalistas escritores que surgirão a partir dos anos 1960. Outra possível conclusão é que cada vez mais os autores vão assumindo a postura de repórteres que escrevem livros e não de escritores com interesses literários que tomam a massa do real-histórico como uma curiosidade, principalmente transformando-a em crônica. O cenário estava sendo preparado para o surgimento de um tipo jornalista, a partir dos anos 1970, que se assume como tal no campo do livro, não negando sua influência literária, mas estabelecendo fronteiras e limites na sua produção livresca.