• Nenhum resultado encontrado

2 ARQUEÓLOGOS DO CONTEMPORÂNEO

2.6 Uma certa pretensão de verdade

Convém analisar outra característica dos jornalistas escritores no contrato que envolve o livro-reportagem: certa pretensão de relato da verdade. Essa tendência foi apontada pelo pesquisador Sérgio Vilas Boas na sua tese defendida na USP em 2006,

Metabiografia e seis tópicos para aperfeiçoamento do jornalismo biográfico. A partir

das leituras de obras como Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha (1995), de Ruy Castro, Chatô, o rei do Brasil (1994), de Fernando Morais, e JK, o artista do

impossível (2001), de Cláudio Bojunga, critica alguns aspectos recorrentes nas

biografias brasileiras até então publicadas e estimula que os autores deixem mais transparentes seus processos, dúvidas, angústias para os seus leitores, já que estabelecem com eles uma relação diferenciada.

Em um contrato ideal com o leitor, mais transparente, seria recomendável, segundo Vilas Boas (2006, p. 166-167), explicar os contextos em que esses documentos foram gerados e, principalmente, as múltiplas formas como foram encadeados e organizados pelo escritor tantos depoimentos, por vezes contraditórios. “Ou seja, essa massa bruta, fragmentária e lacunar dos documentos (de todos os tipos e formas) é passível de explicitação pelo eu-convincente, rumo à maior transparência.”

Na apresentação de sua biografia do poeta Carlos Drummond de Andrade, Os

sapatos de Orfeu, o jornalista José Maria Cançado faz um relato sincero ao seu leitor

sobre o texto que irá apreciar: “Esta é uma biografia de Carlos Drummond de Andrade. Com isso, o que se quer é fugir da larga tolice de um certo entendimento essencialista da verdade, e assinalar o caráter de construção, de elaboração, e até de artifício, desse relato” (CANÇADO, 1993, p. 13). Logo adiante, ele pondera que não se trata de dizer que está ficcionalizando a narrativa, mas que tem consciência, como autor, de que precisou tomar decisões a respeito da “disposição e organização das informações, dos dados e das situações”, ou seja, da construção da realidade a partir do prisma do jornalismo. E conclui, de forma didática: “Não é preciso dizer que o tempo de uma narrativa, mesmo biográfica, não é o tempo do vivido”.

A questão sobre o “real” e o ficcional no jornalismo também deve passar pela cabeça do jornalista que se dedica a escrever livros. Para Borges (2013, p. 128), o jornalismo institui um “sistema de significação para dar sentido discursivo aos fatos do mundo que narra”. Mas, justamente pelo fato de ser apoiado no discurso, “seria ilógico pensá-lo fora dessa significação, com todas as especificações a ela inerentes”. Entendendo, portanto, o discurso jornalístico como uma “continuidade da realidade, ele fraqueja igualmente nessa concepção, estando também ele inundado de construções múltiplas que retiram sua ideia de ‘verdade absoluta’ e o aproximam do que costuma se designar de ficção”. Ora, se a ficção for considerada uma “realidade possível, mas não verificável”, como conclui o pesquisador, a análise dos discursos proferidos tanto pela história quanto pelo jornalismo apresenta o registro incômodo “de que eles também retratam uma leitura possível da realidade, não ela em essência”. Não está errado, portanto, ponderar que o discurso jornalístico “ficcionaliza” a realidade, com “menos liberdade que a literatura”.

Assim, no que Borges (2013, p. 243) considera jornalismo literário, o autor dispõe de “mais condições e tempo para a apuração das informações” e é capaz, portanto, de fazer “leituras mais aprofundadas e críticas do que ouve dos relatos testemunhais”, que, por si, carregam profundos “valores subjetivos naquilo que narram”. Mais do que apenas coletar e editar declarações das fontes, o jornalista teria condições, também, de ampliar a sua compreensão sobre os personagens com a “observação atenta de comportamentos, gestos, olhares e até a inclusão de pausas e silêncios, aliadas à interpretação desses sinais no entrevistado e em seu contexto”.

O pesquisador problematiza a questão da autoria e do narrador na literatura e no jornalismo. Uma das crenças culturais do jornalismo está centrada, segundo Borges (2013, p. 247), na figura de um repórter que “sabe da verdade, que informa e relata”. Enquanto na imprensa diária o jornalista, como “agente principal da enunciação”, costuma se ocultar, no processo que ele chama de jornalismo literário o autor “não se omite, assumindo o papel de comentador, intérprete e até de partícipe ativo da ação, colocando-se no centro do relato como personagem de destaque”.

Na própria literatura o indivíduo “autor” não costuma se misturar com o indivíduo “narrador”, este último uma “construção estilística, personagem criado a partir da imaginação de quem escreve. Já no jornalismo literário quem narra é “um jornalista de carne e osso, que vive, respira, sente e se coloca na ação não como um

personagem desta e sim como um indivíduo social que está ali para mediar o mundo por meio do seu relato” (BORGES, 2013, p. 248).

Vilas Boas chega a exortar os autores de livros-reportagem no Brasil a assumirem um compromisso com o público. Diante de um mercado que tem potencial de expansão, embora enfrente, inclusive, sanções judiciais, eles deveriam ter coragem, mesmo, de expor-se “no contexto daquilo que se narra, a fim de imprimir franqueza e liberdade de espírito” às suas narrativas. Isso porque, para o pesquisador, não existe nenhuma regra “declarada ou subentendida que impeça o jornalista-biógrafo de dar transparência à sua narrativa”. Isso aconteceria se ele incluísse nos textos “suas escolhas, seus conflitos, seus impasses, suas vivências ao longo da jornada biográfica” (VILAS BOAS, 2006, p. 146).

A provocação desse pesquisador faz mais sentido quando comparamos os livros- reportagem produzidos no Brasil contemporâneo com o seu maior manancial de influência, aquelas obras escritas por autores do new journalism norte-americano durante os anos 1950, 1960 e 1970. Em dois livros publicados em 1968, que relatam conturbadas manifestações públicas nos Estados Unidos (Os Exércitos da noite – os

degraus do Pentágono e Miami e o cerco de Chicago), Norman Mailer descreve com

vivacidade tanto sua inserção nesses movimentos quanto seu medo de ser preso, que chega a levá-lo a não comparecer a um grande protesto. Exemplo mais evidente está presente em Hell’s Angels, de Hunter Thompson, lançado em 1967, já que o jornalista integrou-se totalmente ao grupo de motoqueiros e chegou a tomar uma surra dos seus integrantes, tudo devidamente relatado de forma gonzo pelo autor, ou seja, com forte carga subjetiva, em um texto anárquico.

Outro exemplo de pretensão da verdade está no prefácio de Olga (1985), em que Fernando Morais (1993, p. 6) confessa, sem mencionar exemplos, situações em que, “colocado diante de versões contraditórias sobre determinado episódio, fui levado por investigações e evidências a optar por uma delas”. Por sua vez, tratando do pano de fundo histórico denso que sempre cercou o seu personagem, Getúlio Vargas, Lira Neto (2013, p. 493) alerta seus leitores: “Em nenhum momento ousei reescrever ou reinterpretar tais acontecimentos, empreitada que fugiria aos limites de minha competência e ao escopo original deste livro”. Mas o jornalista deixa claro quais foram seus propósitos como orquestrador de um relato tão extenso, complexo e profundo: “Articular o vasto pano de fundo com os aspectos da vida privada do biografado,

sobrepondo cotidiano e contexto histórico, para tentar compreender de que forma essas duas dimensões interagiram e sofreram influências mútuas” (NETO, 2013, p. 494).

Nutrir essa utopia saudável no campo do jornalismo, consolidado historicamente como narrador e interpretante da realidade, com potencial de construí-la, depende bastante da experiência dos jornalistas escritores. Em seu trabalho mais individual, eles precisariam estar dispostos a transcender a crise narrativa com criatividade, honestidade e transparência na sua relação com o público leitor. As entrevistas com 10 jornalistas nesta tese demonstraram que todos têm plena consciência do papel que exercem na construção social da realidade em seus livros, embora possam não deixar tão patente nas páginas das suas obras, como percebeu Vilas Boas.

Por isso, nesse contrato, é essencial a importância da figura do leitor crítico proposto por Miguel Alsina (2005, p. 293), ou seja, aquele que sabe interpretar a notícia. “Toda narrativa é uma construção retórica que o leitor não tem por que aceitar de cabeça baixa.” Ele acrescenta que a interpretação desse leitor crítico deve ser acompanhada por uma mudança de mentalidade dos produtores da informação. Para ele, o leitor crítico é quem sabe “por que os meios de comunicação afirmam o que afirmam e compreende, também, que essas afirmações não são verdades absolutas” (ALSINA, 2005, p. 294).

Diversos teóricos, em múltiplos campos, entendem que a sociedade contemporânea enfrenta uma crise de sentido praticamente crônica e de superação pouco visível nos próximos anos. Fica patente, nas óticas dos autores expostas neste capítulo, que o jornalismo, apesar da propalada “ameaça” das redes sociais, ainda mantém o seu papel de representação, interpretação e mesmo construção da realidade. Profissionais ou organizações produtoras de informação que se encastelam na visão cartesiana de que apresentam a única versão possível dos acontecimentos não contribuem efetivamente para a construção coletiva de uma realidade democrática.

Da mesma forma, os autores de livro-reportagem, por lidarem com uma ampliação do foco de compreensão contemporâneo, como quer Lima (2009), tampouco podem cair nas armadilhas de fornecer uma verdade pronta e acabada sobre um biografado ou fato social interpretado em suas obras. Pelo contrário, precisam aproveitar a condição, de certa forma privilegiada, de não estar atrelados a uma rotina produtiva hierarquizada e institucionalizada, vivenciar as vantagens de poder ter mais tempo para apurar informações, conversar com os seus entrevistados e recontextualizar os fatos dispersos, sempre deixando claro para o leitor as suas próprias dúvidas,

convocando-os, acima de tudo, para reconstruírem juntos esse passado contemporâneo tornado presente que ambos comungam como seres humanos.