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4 PÁGINAS DE OUTRORA

4.7 Olhares múltiplos

Para muitos autores, o marco definidor da expansão da grande reportagem no Brasil teve início nos anos 1950, na revista O Cruzeiro, e se consolidou no período áureo da revista Realidade, nos anos 1960, e com o trabalho do Jornal da Tarde, que se estendeu pelos anos 1970. Em 1960, segundo aponta Sandra Reimão (1996, p. 40), foram publicados no Brasil 36.322.827 exemplares de livros, estimando-se 0,55 livros por habitante ao ano, com uma população de 65,7 milhões. “O mercado editorial brasileiro se mantém nesses níveis extremamente baixos durante toda a década de 1960, registrando índices que não ultrapassam a barreira de um livro por habitante ao ano.”

Lima (2009, p. 237) considera que o sucesso de revistas e jornais que apostavam no “aprofundamento de abordagem quanto mais refinado na proposta estética”, ajudaram a audiência a se acostumar com produções jornalísticas nessa linha, “fazendo uma parcela se interessar em consumir livros-reportagem que ofereçam uma modalidade de informação mais densa”. Ele compara a revolução da Realidade à de revistas como

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Esquire e The New Yorker, que abrigaram grandes nomes do que seria o new journalism

norte-americano, como Tom Wolfe, Gay Talese e Norman Mailer.

Além de José Hamilton Ribeiro (1935), que publicou, em 1969, O gosto da

guerra, sobre a sua experiência dramática na cobertura do Vietnã, tendo perdido uma

perna ao pisar em uma mina terrestre, curiosamente as reportagens da Realidade foram pouco transpostas para o formato do livro-reportagem. Um dos fundadores da revista, o jornalista Luís Fernando Mercadante (1936-2012), que foi do Jornal do Brasil, O

Estado de S. Paulo e Tribuna da Imprensa, publicou, em 1994, a coletânea 20 perfis e uma entrevista. O livro trazia a primeira entrevista feita para a seção Páginas Amarelas,

da revista Veja, com o escritor Nelson Rodrigues, acompanhada de perfis de personalidades como Paulo Autran. Escreveu, ainda, em parceria com Marília Balbi,

Victor Civita, uma biografia.

Mas um dos repórteres da Realidade, João Antônio (1937-1996), é um caso interessante de hibridismo radical entre jornalismo e literatura, chegando a emular a antiga obsessão dos modernistas de construir um glossário da linguagem das ruas, dos bêbados, trapaceiros e jogadores de sinuca. A partir do seu terceiro livro, Malhação de

Judas carioca (1975), “o elemento jornalístico-documental é assumido explicitamente”,

como lembra Bulhões (2007, p. 182), já que o repórter-escritor chama o seu texto “Cais” de conto-reportagem. “Sinuca”, do mesmo livro, nasceu como reportagem da revista Realidade. Mais uma vez a literatura abraça o que se convenciona ser real.

Em texto inédito publicado em João Antônio, contos reunidos, que estava planejado inicialmente para abrir o livro Abraçado ao meu rancor (1986), João Antônio (2012, p. 574) explica sua postura de repórter escritor em busca de personagens párias e esquecidos: “São vidas de trânsito comovido. Impossível percorrê-las sem me sensibilizar. Quase tudo gente aparentemente sem grandeza, pouco percebida pelo registro oficial”. O autor acrescenta que os personagens apresentados, tanto em suas reportagens como em seus contos literários, não são “quase nunca notícia em lugar nenhum da rádio, da tevê ou dos jornais do país de hoje. Mas são gentes que eu tropeço aí pelas ruas”. Guardadas as múltiplas diferenças, João Antônio recupera a tradição de narrar os desvalidos em livro, que remonta a João do Rio, Sylvio Floreal e Benjamim Costallat e ecoa nos livros-reportagem de Caco Barcellos, por exemplo.

Os anos 1970, justamente os do auge da ditadura militar, na primeira metade, e de uma distensão “lenta e gradual”, para não dizer fictícia, na segunda, representaram o

114 marco inicial do que podemos considerar um mercado editorial profícuo para livros escritos por jornalistas. Precisamente no ano de 1972, conforme calcula Reimão (1996, p. 57-58), com base em dados do IBGE, o Brasil consegue superar a barreira de um livro por habitante em termos de produção editorial. “A população nesse ano é de 98 milhões de habitantes e produzem-se 136 milhões de livros. Em 1972 editou-se 1,3 livro por habitante, contra 0,8 do ano anterior. Essa proporção se manterá crescente durante a década, atingindo o índice de 1,8 em 1979”.

Reimão (1996, p. 61) lembra que entre os anos 1970 e 1980 houve uma significativa queda da taxa de analfabetismo, de 39% para 29%, e um salto espantoso no número de estudantes universitários, de 100 mil para quase um milhão. A pesquisadora aponta ainda que, entre 1978 e 1979, “o surgimento de um sindicalismo forte e o processo de abertura consolidado na Lei da Anistia, em agosto de 1979, tiveram os seus reflexos no mercado editorial, mais no setor de não ficção do que no segmento literatura ficcional” (REIMÃO, 1996, p. 70).

Maués (2013, p. 10) percebe um “grande incremento” da indústria editorial brasileira a partir de meados dos anos 1970 e frisa o que ele chama de livros de oposição ao regime militar como um dos segmentos que mais se destacaram. Estão classificados nesse critério não só os livros-reportagem e romances-reportagem, mas também depoimentos de exilados e ex-presos políticos. “Ocorreu, então, um movimento cultural e editorial marcado pela revitalização de editoras com perfil nitidamente político.” O pesquisador destaca que, entre as já estabelecidas, engajaram-se nessa tendência a Civilização Brasileira, a Brasiliense, a Vozes e a Paz e Terra. Ao mesmo tempo, surgiram novas editoras com “propósito de publicar livros com claro caráter político”, entre os quais Maués elenca a Alfa-Omega e a Global.

Como característica principal, as editoras de oposição ou políticas, como classifica Maués (2013, p. 15), sobretudo as novas e pequenas, como a Alfa-Omega, não tinham como fins “a sua organização como empresa e o lucro que elas buscavam obter”. O objetivo principal seria, portanto, “a atuação política por meio da divulgação de ideias e opiniões cujos veículos eram os livros”. Comparando com o cenário de suposta abertura política que marcou a época, Maués (2013, p. 31) vê um movimento de mão dupla em todo o processo: “Ao mesmo tempo em que esses livros promovem e estimulam o debate de ideias, eles são frutos de uma situação em que já se tornava

115 possível, novamente, trazer à tona tais debates. São, portanto, frutos da abertura política e colaboraram para ampliá-la”.

Uma das formas mais notáveis de interpretação do “real” em livros e que mereceu, na academia, estudos sistemáticos, foi o chamado romance-reportagem. A editora Civilização Brasileira criou, em 1975, uma série com esse nome para abrigar narrativas híbridas entre ficção e jornalismo, tendo como livro de estreia O caso Lou

(assim é se lhe parece), do jornalista Carlos Heitor Cony (1926-2018). Na orelha da

obra, os editores explicam, frisando certas palavras, que a série Romance-reportagem se propõe a “dar sentido à realidade”, convocando escritores e jornalistas de renome que “nos darão aqui, depois de serena pesquisa, as múltiplas verdades que explicam episódios controvertidos da crônica policial, da atividade política, da vida econômica”.

Outro propósito ali relatado é o de apresentar “os dramas e as comédias do cotidiano” em “livros escritos, a um só tempo, em linguagem literária e jornalística”. Os autores da série não são chamados a “julgar quem ou que quer que seja, mas a ordenar eventos e revelar motivações, permitindo aos leitores viver – ou reviver – episódios ora patéticos, ora grotescos”. A intenção declarada é que a leitura dos romances-reportagem da série enriqueça a “capacidade humana” dos leitores e “muito poderão ajudá-lo no difícil exercício de viver”, já que a “realidade é composta de incongruências, de paradoxos e de eventos inesperados que, muitas vezes, somente são explicáveis à custa de múltiplas re-invenções”.

Curioso perceber como, ao vender um produto marcado declaradamente pelo hibridismo entre literatura e jornalismo, a Civilização Brasileira desafia uma postura positivista da verdade sem contestações ou revelada a partir de certos métodos infalíveis. As chamadas re-invenções, frisadas com itálico, na verdade estão presentes até mesmo no cotidiano de uma cobertura diária do jornalismo. Mas o romance- reportagem parece embaralhar fronteiras, sem medo, e conquistou um público que não cobrava destas obras “verdades” definitivas.

O maranhense José Louzeiro (1932-2017) é o mais citado representante do gênero. Tomando por base casos verídicos, principalmente no território do jornalismo policial, mas ficcionalizando a narrativa, Louzeiro é autor de livros de sucesso editorial, como Lúcio Flávio, passageiro da agonia (1975), a respeito do famoso criminoso,

Aracelli, meu amor (1976), sobre uma menina seviciada e morta por membros da elite

116 inspirou o filme Pixote, a lei do mais fraco, de Hector Babenco. Explicando o seu propósito no prefácio pioneiro, Louzeiro (1975, p. 6) esclarece que quis “aplicar no texto literário tudo o que o jornalismo havia me ensinado”. Assim, “procurava revalorizar a fabulação, recorria à forma simples de dizer”.

Em entrevista ao caderno Folhetim, do jornal Folha de S. Paulo, publicada em 13 de janeiro de 1980, José Louzeiro pondera, a princípio, que “na literatura, como em qualquer outra atividade artística, predomina sempre o fator invenção”. Na sua visão, ao recolher material para uma reportagem, o repórter vai “reinventar, dar uma ordem ao que viu, ao que coletou”, sendo que o mesmo aconteceria na sua literatura, tomando por base fatos pulsantes da “realidade”. Louzeiro conclui que “hoje a sociedade está fornecendo uma gama de elementos de tal ordem” que, se ele tivesse condições, escreveria “um livro de 400 páginas por semana”.

Estudioso do fenômeno dos romances-reportagem, Cosson (2007, p. 246) reforça que o embate contra a ditadura fez da literatura “uma das válvulas de escape das manifestações culturais do período”. O pesquisador acredita (2007, p. 253) que o romance-reportagem é habitante “das fronteiras do jornalismo com a literatura”, chamando para si “a condição de gênero e um estatuto próprio”. Para ele, o romance- reportagem é ambíguo, porque não permite uma definição que se “incline indubitavelmente para um ou para outro dos discursos” (COSSON, 2007, p. 252). Seja qual for o seu enquadramento na fronteira muitas vezes confluente entre o jornalismo e a literatura no caso da reportagem em livro, o romance-reportagem, que continuou revelando novos autores não só nos anos 1970, foi um movimento importante para consolidar um mercado editorial brasileiro para o livro-reportagem.