• Nenhum resultado encontrado

2 ARQUEÓLOGOS DO CONTEMPORÂNEO

2.3 Sonhos de liberdade

O sonho da autonomia do jornalista em seu campo parece menos utópico quando se estudam as rotinas produtivas do livro-reportagem e o capital simbólico adquirido pelos repórteres que os escrevem. Na filosofia, Dewey (2004, p. 155) já comparava que, “da mesma forma que uma indústria dirigida por engenheiros sobre uma base tecnológica real” seria bastante diferente do que a constituída atualmente, “a construção e informação de notícias” também teria configurações distintas “se se deixasse que atuassem livremente os autênticos interesses dos repórteres”. Ora, esse é justamente um dos principais fatores motivadores para os jornalistas dedicarem-se a investigar temas e personagens e narrá-los de forma ampla e contextualizada em livros.

Na concepção de Tuchman (1983, p. 229), socióloga que mergulhou nas redações norte-americanas para entender o comportamento em grupo dos jornalistas, em um cenário de mídia democrático “os profissionais da informação teriam que questionar as premissas mesmas da rede de notícias e suas próprias práticas de rotina”. Junto ao seu público, deveriam, ainda, “reconhecer as limitações inerentes às formas narrativas que estão associadas com a trama da faticidade”. Entender, portanto, seu trabalho como indicativo e reflexivo, já que os jornalistas estão inseridos no próprio mundo da vida que ajudam a construir simbolicamente.

A autora acabou encontrando possibilidades de flexibilidade, ainda que sutis, o que legitima a teoria da autonomia do jornalista não assujeitado, mesmo pressionado pelo poder das tipificações e estereótipos que contaminam a narrativa da realidade de forma apressada e limitada. Os entrevistados nesta tese demonstram consciência sobre seus papeis reconfigurados na postura de jornalistas escritores de livros-reportagem e engendram reflexões sobre o jornalismo como instituição.

Lima (2009, p. 34) defende que esses profissionais optam pelo gênero livro- reportagem pois querem dizer algo com profundidade e não encontram “espaço para fazê-lo no seu âmbito regular de trabalho, na imprensa cotidiana”. O pesquisador também acredita que esses jornalistas procuram “utilizar todo o seu potencial de construtores de narrativas da realidade” e lançam mão, com esse objetivo, de “numerosas possibilidades de tratamento sensível e inteligente do texto, enriquecendo-o com recursos provenientes não só do jornalismo, mas também da literatura e do cinema”. Deve-se ponderar, no entanto, a partir da perspectiva de certos entrevistados

desta tese, que aqueles jornalistas responsáveis por reportagens especiais e com um status mais liberto dentro das redações (mais tempo, mais espaço e menos ligação com as notícias do dia) não costumam enxergar tantas diferenças entre o desempenho nos jornais e nos livros.

A partir da classificação que criaram para categorizar os tipos de reportagem, Sodré & Ferrari (1986, p. 94) nomeiam os livros de repórteres que consumam o “namoro com a literatura” e cujas histórias se mantêm “no foco do interesse do público”, como “reportagem-novela”, emulando “a mesma fórmula do folhetim que veio a dar no romance”. Nessa época, já poderia ser enquadrado nessa categoria a biografia Olga, de Fernando Morais, não citada na análise desses autores. Mas os principais exemplos disponíveis eram livros de reportagens, com compilação de textos publicados primeiro em jornal. Pode-se dizer que este tipo de coletânea reuniria, na verdade, outros dois tipos de reportagem classificados pelos autores, comuns em toda linha histórica.

Os pesquisadores consideram “reportagem-conto” aquelas em que os jornalistas “particularizam a ação”, escolhendo um personagem para ilustrar um tema que pretendem desenvolver, incorporando seus fluxos de consciência e inserindo dados de forma dissimulada ao longo da narrativa. Já a “reportagem-crônica” comungaria com o gênero literário as características do narrador observador, que apresenta os personagens em suas “atitudes exteriores e flagra seus comportamentos contraditórios, engraçados, mesquinhos ou mesmo trágicos” (SODRÉ & FERRARI, 1986, p. 87). Essas são justamente as principais marcas literárias dos textos produzidos por jornalistas brasileiros ao longo do século XX. Mas as experiências de produção específica de um livro, com uma longa reportagem em todos os seus desdobramentos e características de sedução narrativa, pensada fora de uma redação e mais próxima da definição “reportagem-novela”, só seria consolidada no Brasil, na verdade, nos anos 1990.

Já clássicas, as definições de Sodré & Ferrari (1986, p. 15) para classificar uma reportagem – a “predominância de uma forma narrativa, humanização do relato, o texto de natureza impressionista e a objetividade dos fatos narrados” – foram plenamente experimentadas em textos longos publicados em revistas como O Cruzeiro e Realidade e periódicos como o Jornal da Tarde. Esses e outros veículos garantiram recursos e espaço para repórteres especiais, principalmente nos anos 1950, 1960 e 1970, sendo que várias reportagens foram reunidas depois em livros-coletânea. Entretanto, os modelos mais atuais de contrato de repórteres para produzir especificamente, durante anos,

material contextualizado para biografias e livros de reconstituição histórica, permitem exercitar com mais paciência e menor pressão hierárquica e editorial todos esses atributos da reportagem.

Tratando da reportagem em uma obra mais recente, Sodré (2009, p. 171) compara a notícia a um “retrato três por quatro” de um fato, o instantâneo de um acontecimento em processo. “Movimentando-se o retrato, à maneira de um pequeno filme, chega-se de forma mais característica a um fluxo narrativo que se pode chamar de

reportagem, palavra derivada do latim reportare.” Justamente aqueles relatos que

lançam mão de estilos de retórica e construções linguísticas muitas vezes próximas da literatura com o propósito de levar o leitor novamente à cena de um acontecimento, despertando a sua atenção “por meio do apelo ao conjunto de sentidos perceptivos”.

Outra hipótese aventada por Sodré (2009, p. 67) encaixa-se no tipo de livro- reportagem apresentado nesta tese: um jornalismo “capaz de se densificar reflexivamente como forma de conhecimento”, fazendo com que o “acontecimento se revele como uma apreensão coletiva da factualidade, com grandes possibilidades de aprofundamento do empenho de conhecer o mundo presente”. Para Sodré (2009, p. 70), o exercício jornalístico de uma “tradução intercultural da experiência humana”, que remonta às lições dos antigos relatos de viagem, pode ser mobilizado com mais sucesso como um recurso estilístico “sempre que a produção do texto jornalístico abdica da urgência da publicação ou da utilidade imediata do conhecimento do fato em favor da elaboração mais lenta e reflexiva do relato” e, mais, quando o repórter pode abdicar da “noção quantitativista de informação pública (quanto mais dados e detalhes, maior o conhecimento) em favor daquela dimensão sensível, que possibilita ao leitor uma compreensão do acontecimento mais perceptiva do que intelectiva”.

Em algumas redações de jornais, revistas, televisão e mesmo experiências de internet que estimulavam e ainda incentivam longas reportagens, foi e é possível produzir material próximo desse nível. Mas é preciso levar em conta uma complexa equação que envolve a formação sólida do repórter, menos pressões de tempo e mais espaço, além de recursos financeiros. Nesse sentido, os jornalistas escritores estão aproveitando as vantagens do suporte livro-reportagem e suas condições de produção para exercitar investigações e narrativas plenas – movimento que, convém frisar, é mais de complementação na história da reportagem brasileira do que uma ruptura com cânones do jornalismo basilares desde o século XX.

Esta pesquisa não advoga a tese, um tanto maniqueísta, de que o profissional jornalista tem toda sua criatividade cerceada nas redações de qualquer veículo pelas pressões políticas e editoriais, tornando-se um mero “fantoche”. As pesquisas de Warren Breed (2016, p. 219-222) nas redações norte-americanas já indicavam que, em contraponto às seis razões para entender a postura de conformismo de certos profissionais com as políticas editoriais, podem-se detectar em paralelo, cinco brechas, ou dribles, às formas de imposição e coerção sobre o trabalho do repórter. Os jornalistas podem se acostumar aos ditames ditatoriais, na visão de Breed, por razões de autoridade institucional ou sanções; sentimento de obrigação e estima para com os superiores; “aspirações de mobilidade”; ausência de “grupos de lealdade em conflito”; o próprio prazer que envolve a atividade jornalística; ou, ainda, por acreditarem no talismã cultural da notícia cristalizada em seus valores de imediatismo e quantidade.

No entanto, em um sinal claro da presença da autonomia do repórter consciente, Breed (2016, p. 223) aponta que os profissionais podem se contrapor, sutil ou diretamente, às políticas editoriais mais ditatoriais, ancorando-se em algumas estratégias. Podem alegar que as normas editoriais não são explícitas ou claras – seus chefes costumam ignorar uma série de peculiaridades de seu fazer produtivo, o que abre muitas brechas. Mas um dos principais sinais de autonomia no seio das redações está centrado na figura do jornalista que atingiu o estatuto de “estrela”, tendo angariado, por exemplo, prêmios importantes com suas reportagens. Vários exemplos, sobretudo o de Caco Barcellos, na rede Globo, mas também de outros entrevistados, como Daniela Arbex, na Tribuna de Minas, e Leonencio Nossa, no O Estado de S. Paulo, comprovam que o jornalista experiente vai alcançando mais liberdade, mesmo inserido na massacrante produção diária de notícias.

Também pode ser minimizada a afirmação, por outro lado, de que o jornalista que se afasta dessas rotinas ou busca arejar sua atuação produzindo livros-reportagem encontra, como em uma transformação mágica, um território totalmente liberto. A pressão do tempo, por exemplo, quando o autor lida com um volume imenso de entrevistados aos quais recorre, geralmente, mais de uma vez. O peso maior de um erro impresso em livro do que nos formatos diários, eletrônico ou em papel. A ilusão do amplo espaço para escrever muitas páginas diante de um volume maior de informações em mãos. A necessidade de tecer um texto atraente, que não afaste o leitor diante do calhamaço à sua frente. Sem falar da sombra das sanções judiciais e das pressões

comerciais na escolha de temas ou personagens “mais vendáveis” por parte do mercado editorial.

Todos esses fatores, angústias comuns entre os autores de livros, marcam e problematizam a produção mais autônoma de reportagens nesse formato e alguns jornalistas foram convocados a falar sobre eles nesta pesquisa. Ao analisar como abordam essas temáticas, desenha-se a possibilidade de entendê-los como profissionais que compartilham valores seculares do jornalismo e tentam utilizá-los em outro campo, com suas vantagens e intempéries. A herança dos procedimentos jornalísticos de saber reconhecer os acontecimentos relevantes, enquadrá-los e narrá-los, é inegável no processo de elaboração do livro-reportagem.