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3 REVISANDO PARADIGMAS

3.3 Imerso no mundo da vida

Como teve a chance de analisar a produção brasileira mais consolidada, pois sua tese é posterior à de Lima, Catalão (2010, p. 232) apresenta um teor mais crítico em relação ao tipo de produto que estava chegando às livrarias até então. Como não está vinculado a uma “subordinação funcional e econômica” dos veículos jornalísticos, mas mesmo assim precisa se atrelar a outras lógicas, no caso do mercado editorial, o escritor de livros-reportagem precisa pautar um assunto que atraia o interesse do público e compor textos “facilmente inteligíveis e potencialmente atraentes para o maior número de leitores possível”.

Quanto à narração, Catalão (2010, p. 233) percebe a tendência de apresentar “uma sucessão de eventos, articulados conforme a suposta ordem cronológica de suas

76 ocorrências”. Essa forma de narração envolve outra característica, a de familiaridade com o leitor, que se materializaria nos produtos não como “experimentalismo estéticos, formais ou linguísticos”, mas sim como um “certo convencionalismo enunciativo” (CATALÃO, 2010, p. 303-304). Se compararmos a tendência dos livros-reportagem produzidos no período do new journalism, como os de Tom Wolfe ou Truman Capote, por exemplo, percebe-se que os norte-americanos investiram mais nas inovações estéticas narrativas e arriscaram, mesmo, a expor suas angústias e dúvidas no processo, o que não é tão comum na tradição do livro-reportagem brasileiro. Com exceções marcadas por obras como Abusado: o dono do morro Dona Marta (2003), na qual Caco Barcellos lembra ao leitor, em vários momentos, suas dúvidas e dificuldades de interpretação da complexa realidade do tráfico em uma favela.

Também chamou a atenção de Catalão (2010, p. 235) a característica da onisciência. Ele critica o “tom de segurança e de certeza do autor”, já que raramente “se encontram dúvidas, indefinições ou inquietações, seja quanto aos acontecimentos relatados, às teses defendidas ou às informações que as sustentam e ao processo por meio do qual elas foram obtidas”. Esse tom está realmente subjacente em vários livros- reportagem brasileiros, mas as entrevistas desta tese indicam que os jornalistas escritores vivenciam um turbilhão de dúvidas com relação à obra que estão produzindo. E, embora não explanem ou deixem tão claro para os leitores no corpo de seus livros essas indecisões e conflitos, falam longamente sobre elas, com exemplos, nas entrevistas para este trabalho e mesmo nas midiáticas.

O autor desta tese também sustenta que o fato de não deixar tão explícitas nos textos suas dúvidas talvez seja o principal ranço que os autores de livros-reportagem estejam transpondo de suas experiências de interpretação desenvolvidas nas redações. É preciso que esses jornalistas aproveitem as claras vantagens do suporte para manifestar menos o discurso das “certezas” e entender o formato livro como a possibilidade de práticas jornalísticas mais abertas à surpresa das forças contraditórias da realidade. Por que não provocar mais o leitor para a compreensão conjunta de um mundo referencial tão complexo?

Vilas Boas (2006, p. 44), por sua vez, aponta alguns aspectos que, na sua visão, representariam limitações filosóficas e narrativas para as biografias jornalísticas no Brasil. O primeiro deles é a descendência, que aparece no corpus analisado em sua tese sob a forma de narrativas marcadas pelos tons de determinismo e reducionismo. “O

77 importante é não aceitar previamente que o biografado seja mero efeito, mera consequência dos que seus pais foram ou deixaram de ser.”

Na maioria das biografias, segundo análise de Vilas Boas (2006, p. 73), é “notável o afã dos autores por realçar várias qualidades supostamente inatas, que expliquem o herói vitorioso”, o que ele denominou de fatalismo. No entanto, com esse recurso, o “ser humano central vai desaparecendo na medida da reputação alcançada” (VILAS BOAS, 2006, p. 78), podendo transformar o protagonista em “mero coadjuvante”. Essas duas características demonstram como o jornalista aplica, em suas narrativas, vários aspectos de tipificação que toma emprestados, muitas vezes, do próprio “mundo da vida” que integra, ou seja, seu cenário cultural. Esses esquemas planificados de enquadramento são invocados em uma tentativa de aproximação com o mundo de representação do público leitor, mas podem resultar simplificadores.

Outro problema no tom das biografias brasileiras, segundo Vilas Boas (2006, p. 111), é o caráter da extraordinariedade. Ele acredita que não se pode esquecer do relato do “mundo das experiências comuns, que se movimentam entre o público e o privado”, escapando, assim, da “visão rasa (típica do jornalismo de noticiários) de que uma pessoa constrói sozinha o seu universo consagrador”. Nesse sentido, o pesquisador sugere que os autores apresentem “facetas diversas de seu herói, e não apenas a extraordinária carreira” (VILAS BOAS, 2006, p. 123). Seria preciso “voltar os olhos e os sentidos também para os coadjuvantes, os co-autores da obra da pessoa em foco”.

Alguns jornalistas brasileiros têm procurado descobrir esse véu da excepcionalidade, como Daniela Arbex, que resgatou vozes anônimas silenciadas na história do hospício de Barbacena (MG) no livro Holocausto brasileiro (2013), ou Eliane Brum, que, em O olho da rua (2008), reuniu reportagens sobre os personagens de um asilo de idosos, uma merendeira à beira da morte ou parteiras da Amazônia, por exemplo. Também nas obras de Leonencio Nossa, principalmente em Homens invisíveis (2007) e O rio: uma viagem pela alma da Amazônia (2011), com os seus anônimos ribeirinhos ou poetas e intelectuais pouco conhecidos fora da região norte, os personagens comuns ganham protagonismo.

O curioso é que se trata do exemplo de três escritores na casa dos 40 anos, que já fazem parte de uma nova geração de jornalistas autores de livros-reportagem no Brasil. Eles também exercitam esse olhar sobre os que costumam ser ocultados do noticiário tradicional no seu próprio trabalho na mídia cotidiana, como repórteres especiais. No

78 entanto, a crítica de Vilas Boas é certeira para o campo das biografias brasileiras, em geral mais focadas em personagens de renome na cultura nacional. O nosso Joe Gould, um hipotético homem comum brasileiro, como o mendigo boêmio que ganhou dois perfis biográficos pelas mãos de Joseph Mitchell, em O segredo de Joe Gould (1964), realmente tem sido raramente evidenciado nos títulos de biografias até agora disponíveis no mercado.

Assim como percebeu Catalão, Vilas Boas (2006, p. 126) se incomodou com “um véu de verdade absoluta que encobre as biografias”. Para este último, “a célula- mãe da biografia é exatamente o humano e seus entornos, ambos imensuráveis, incalculáveis, indecomponíveis” (VILAS BOAS, 2006, p. 132). Ele sugere que, em vez do esquema “descendência-fatalismo-superlativações”, a vida descrita contenha “ambiguidades que todos possuímos” (VILAS BOAS, 2006, p. 134). Por conseguinte, Vilas Boas (2006, p. 138) destaca que os biógrafos precisam “romper com suas obrigações cartesianas e assumirem-se verdadeiramente como sujeitos no mundo, sujeitos do sujeito em foco e sujeitos assumidos (declaradamente presentes) no mundo da narrativa”.

Em Holocausto brasileiro (2013), a jornalista Daniela Arbex procurou resgatar a história de personagens anônimos que teriam sofrido um verdadeiro “genocídio”, vítimas de múltiplos casos de maus-tratos ao longo do século XX em um famoso sanatório localizado em Barbacena-MG. Em dado momento da narrativa, ela comenta com os leitores: “Tragédias como a do Colônia nos colocam frente a frente com a intolerância social que continua a produzir massacres: Carandiru, Candelária, Vigário Geral, Favela da Chatuba são apenas novos nomes para velhas formas de extermínio” (ARBEX, 2013, p. 254). Logo adiante, na mesma página, ressalta que “a história do Colônia é a nossa história. Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final”. Daniela Arbex não só assume o compromisso de reconstituir pela narrativa jornalística um passado contundente que estava obscurecido, como também convoca seu leitor para assumir posições de denúncia e inconformismo com situações atuais de desrespeito aos direitos humanos básicos.

Na sua obra mais recente, Cova 312 (2015), vencedora do prêmio Jabuti de 2016, Daniela Arbex escavou novamente o passado, dessa vez tratando da tortura e morte de um militante político no presídio de Linhares. Ela desafiou a versão oficial,

79 segundo a qual o guerrilheiro da serra de Caparaó, Milton Soares de Castro, teria cometido suicídio, e comprovou seu assassinato pelas forças de repressão, em 1967, inclusive tendo encontrado o local em que ele estava enterrado como indigente, a cova do título. Mais uma vez, em meio à narrativa, Arbex (2015, p. 336) não se furta a falar com os seus leitores: “Conhecer os episódios de vida e de morte dos militantes políticos me deu a oportunidade de desvendar um Brasil que ainda teme os seus fantasmas e se acovarda diante do peso da culpa”.

Arbex (2015, p. 336) destaca que ficar calado diante de “uma nação que foi esfacelada pela violência no passado e continua reproduzindo os métodos de tortura e exclusão do período de arbítrio é compactuar com crimes dos quais podemos nos tornar vítimas”. E, em uma aproximação com o tempo presente, lamenta a reedição, nas ruas, de marchas clamando o retorno do governo militar. “É desconhecer os anos de sombra que envolveram o Brasil ou aceitar que a força supere o diálogo e o esforço dos movimentos populares na busca por caminhos de paz.” A jornalista lança mão, portanto, da liberdade temporal para provocar reflexões no presente. E, como incentiva Vilas Boas, coloca-se de forma episódica, porém incisiva, na narrativa, expondo a sua indignação com a realidade que ajuda a interpretar e com a qual se choca tanto quanto os seus leitores. Um chamado para a cumplicidade interpretativa.

Esta tese defende, em diálogo propositivo com os demais autores que pesquisaram o livro-reportagem no Brasil, que um olhar mais direto sobre a perspectiva subjetiva dos jornalistas inseridos na lógica comercial das editoras ajuda a desmistificar um tanto a “aura” do produto. É necessário entender melhor as intenções desses narradores, seus “óculos”, para filtrar os fatos contemporâneos. A pesquisa de campo desta tese, entrevistando 10 jornalistas que escrevem livros e dois editores, relatada e interpretada mais adiante, pretende preencher um pouco dessa lacuna no mundo acadêmico sobre o ethos dessa categoria profissional.