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2 ONTOLOGIA E TELEOLOGIA PREAMBULARES

2.3 Das funções da responsabilidade civil

2.3.3 Da função punitiva

Em compreensão da função punitiva da responsabilidade civil, é salutar rememorar a classificação de Francesco Carnelutti da sanção em ordem de pena e de restituição, oportunidade em que se fez a categorização do instituto a partir de uma visão subjetiva do fenômeno sancionatório, que, face ao sujeito lesado, denota fator de eliminação do prejuízo sofrido, e, diante do ofensor, a sanção constitui desincentivo à reiteração da prática do ato80.

75 LOPEZ, Teresa Ancona. Op. cit, p.17. 76 NADER, Paulo. Op. cit, p.16.

77 O cerne processual, apesar da destacada importância, extrapola o cerne das presentes linhas. 78 Cf. Item 2.1.

79 NADER, Paulo. Op. cit. p. 16. 80 Cf. item 2.1.

Interessante também relacionar a função punitiva com as finalidades sancionatórias patrimonial e política, pensadas por Regnoberto Marques de Melo Júnior; isso, porque, na punição, tem-se tanto um elemento de ordem patrimonial a repercutir no patrimônio do sujeito lesante, quanto de ordem social, à medida que a sanção consagra o senso de segurança jurídica, pela via preventiva especial e genérica.

Nesse contexto, exsurge a denominada função punitiva da responsabilidade civil, que, quando abordada de forma lata, normalmente se insere como um aspecto da função preventiva, com a limitação da função reparatória, que é alçada como finalidade precípua da indenização na sistemática civil brasileira, mormente em se tratando de lesão a direitos de natureza patrimonial.

Assim, a prevenção e a punição seriam representadas pela sanção decorrente da mera reparação, que resulta, para o ofensor, em uma mitigação patrimonial que oferta efeitos involuntariamente semelhantes ao de uma pena, embora seu intuito primário, não seja o de punir, mas sim de reparar. Representando tal vertente, é interessante transcrever as palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:

Como uma função secundária em relação à reposição das coisas ao estado em que se encontravam, mas igualmente relevante, está a ideia de punição do ofensor. Embora esta não seja a finalidade básica (admitindo-se, inclusive, a sua não incidência quando possível a restituição integral à situação anterior), a prestação imposta ao ofensor também gera um efeito punitivo pela ausência de cautela na pratica de seus atos, persuadindo-o a não mais lesionar.81

Ressalva-se, contudo, que, em se tratando de danos morais, a jurisprudência e doutrina majoritárias têm aceitado pacificamente a função punitiva como fator de liquidação da indenização, reconhecendo-a através de uma ênfase dada ao próprio quantum condenatório82, o que não ocorre em sede de tutela de direitos patrimoniais, em que o valor da sanção tem sido contido nos limites da avaliação pecuniária do dano perpetrado.

Representando a função punitiva, a tradição norte americana ganha destaque, ao que se notam os punitive damages, também chamados de exemplary damages ou smart money, através dos quais a finalidade punitiva da sanção indenizatória é determinante da intensidade, na razão de proporcionalidade empregada na adequação da sanção, em prol de repremir a prática de condutas marcadas por grave negligência, malícia ou opressão83.

81 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade

civil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 3 v, p. 66.

82 Essa matéria será aprofundada no item 3.6.3.

A partir dos punitive damages, cria-se uma nova modalidade de sanção na responsabilidade civil para além da mera reparação, em formato de uma verdadeira multa civil, com caráter aflitivo e forte teor dissuasivo. Percebe-se, assim, a grande diferença entre tal instituto e o que é comumente realizado pela jurisprudência brasileira: no Brasil, a punição enseja um fator que influencia a liquidação dos danos morais, não estatuindo um formato sancionatório autônomo; diferentemente, os punitive damages compõem uma forma apartada da compensação por danos morais84, podendo até incidir em hipóteses de danos patrimoniais, desde que caracterizada conduta suficientemente reprovável85.

Ilustrando a aplicação dos punitive damages, é interessante relatar o emblemático caso da jurisprudência estadosunidense no julgamento do Ford Pinto Case (Grimshaw v. Ford

Motor Co). O julgado em monta se reporta ao fato de um motorista que, dirigindo um carro do

tipo Ford Pinto, sofreu acidente, oportunidade em que o automóvel restou envolto em chamas, causando a morte do motorista e sérias queimaduras em um passageiro.

Diante do ocorrido, apreciado o evento pelo Poder Judiciário, a empresa ré foi condenada ao pagamento de indenização compensatória de US$ 2,516 milhões e punitive

damages na margem de US$ 125 milhões, que, em sede recursal foram reduzidos para US$ 3,5

milhões86.

A condenação punitiva mencionada se deu em decorrência de que a equipe técnica da Ford, antes da comercialização dos carros, teria descoberto vulnerabilidade na traseira do automóvel, que poderia facilmente ocasionar, em acidentes, o vazamento de combustível. Todavia, considerando os custos necessários para modificar os carros já produzidos e o eventual prejuízo oriundo de indenizações, a empresa optou por continuar com o projeto original do veículo. O raciocínio desenvolvido pela empresa é bem anotado por Michael Sandel, leia-se:

Para calcular os benefícios obtidos com um tanque de gasolina mais seguro, a Ford estimou que em um ano 180 mortes e 180 queimaduras poderiam acontecer se nenhuma medida fosse feita. Estipulou, então, um valor monetário para cada vida

84 “Na realidade, a jurisprudência nacional não acolheu os punitive damages do direito americano como título

autônomo de indenização, mas utiliza critérios de quantificação da indenização de natureza punitiva (como o grau de culpa do ofensor, a capacidade econômica da vítima e do ofensor).” (SAVI, Sérgio. Responsabilidade Civil e Enriquecimento sem Causa: O lucro da intervenção. São Paulo: Atlas, 2012, p. 78). Do pensamento colacionado, enfatiza-se a discordância do fato de o Autor considerar a capacidade econômica da vítima como um fator de punição, uma vez que tal critério não se volta à figura do ofensor, inexistindo, portanto, marca de punição, conforme será aprofundado no item 4.2.2.

85 Nesse sentido, verificar a jurisprudência americana no caso BMW of North America, Inc. v. Gore, narrado por

André Gustavo Corrêa de Andrade, em que se concedeu indenização punitiva contra a empresa, em virtude de ter vendido, sem a devida informação ao consumidor, um carro novo, mas com falha na pintura, oportunidade em que se entendeu que, além de hipótese de simples reparação, configurou-se uma fraude merecedora de repressão especial (ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Op. cit, p. 200).

perdida e cada queimadura sofrida – 200 mil dólares por vida e 67 mil por queimadura. Acrescentou a esses valores a quantidade e o valor dos Pintos que seriam incendiados e calculou que o benefício final da melhoria da segurança seria de 49,5 milhões de dólares. Mas o custo de instalar um dispositivo de 11 dólares em 12,5 milhões de veículos seria de 137,5 milhões de dólares. Assim, a companhia chegou à conclusão de que o custo de consertar o tanque não compensaria o benefício de um carro mais seguro.87

Assim, conforme relatado no “Ford Pinto Case”, tem-se na lógica punitiva uma forma de dissuadir a prática de condutas consideradas especialmente ultrajantes e nas quais a função meramente ressarcitória não seria capaz de restabelecer o equilíbrio jurídico rompido, já que presente a violação de um interesse social, que extrapola o tradicional dualismo entre polos lesado e lesante.

Percebe-se, com o citado exemplo, raciocínio elaborável com base na ideia de uma equação dos custos da prevenção de danos, na qual a responsabilidade civil meramente ressarcitória encontra fronteira no que toca o desiderato de ordenação social sob o viés preventivo, pois a ideia de ressarcimento é diluída pela lógica do lucro alcançando a partir do cálculo do custo necessário para que se evite o dano, gerando situação em que se mostra convidativo o manejo de um fator punitivo que majore a sanção pecuniária incidente.

Ocorre que a função punitiva, nos sistemas de tradição romano-germânica, conforme apontado por forte setor doutrinário, não encontra o mesmo respaldo que possui na moldura do Commow Law, o que se dá, em grande parte, como resultado das Revoluções Liberais Burguesas do século XVIII e da ruptura entre Direito Público e Direito Privado, como corolário da ascensão da burguesia e consequente limitação do poderio estatal, em face da prezada autonomia privada. Tal separação culminou com uma rígida barreira entre as matérias de cunho civil e penal, sem prejuízo das correlatas sanções88.

Esclarecendo o tema em apreço, saúda-se a lição da professora Maria Celina Bodin de Moraes:

A separação entre pena e indenização foi, assim, uma consequência dessa mentalidade, e bem se justifica, tendo em vista os objetivos a serem alcançados: era, então, imprescindível retirar da indenização qualquer conotação punitiva; a pena dirá respeito ao Estado e a reparação, mediante indenização, exclusivamente ao cidadão.89

87 SANDEL, Michael S. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo.

Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011, p. 58.

88 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit, p. 201. Essa contextualização histórica deve ser vista com

parcimônia no caso brasileiro, pois tal processo foi marcadamente eurocêntrico. De toda sorte, considerando que o Direito brasileiro muito se espelha na origem europeia, é possível aceitar o histórico exposto por Maria Celina Bodin de Moraes como fonte para a compreensão das bases do Direito nacional.

Ademais, pode-se ainda mencionar que a punição restou mitigada no Direito Civil também sob a influência do pensamento de Santo Tomás de Aquino em pregação da noção de justiça comutativa e do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, pelo qual a ninguém é lícito enriquecer ao custo de outrem. Nesse sentido, explica Giovanni Etori Nanni:

[...] a obra de S. Tomás de Aquino parece-nos ter contribuído para a gradual afirmação de alguns dos dogmas actualmente dominantes, ao menos nos países da Civil Law. Um desses dogmas consiste na limitação do dever de reparar o dano pelo dano efectivamente causado; de fato, enquanto a restituição aparecia como um pressuposto de penitência, não era surpreendente que em certas hipóteses, e até por referencia aos textos bíblicos, se exigisse, por vezes, a restituição de um múltiplo do dano provocado. Ao invés, a colocação do problema em sede de justiça comutativa, e de restauração de um equilíbrio, vem tornar mais óbvia ou evidente a limitação da restituição à reposição do status quo ante.90

Assim, diante do que foi dito e conforme será novamente explorado quando do estudo dos critérios de quantificação dos danos morais91, nota-se que a doutrina pátria oscila no tratamento da função punitiva da responsabilidade civil brasileira. Por um lado, geralmente é afirmado que o sistema jurídico pátrio não deve albergar sanções de caráter repressivo, a exemplo dos punitive damages92 , característico do sistema norte-americano; todavia, existe

amplo reconhecimento doutrinário e jurisprudencial do aspecto punitivo da indenização por danos morais.

Além disso, é possível identificar incontáveis dispositivos na legislação civil, em que se constata a existência de sanções punitivas expressamente positivadas, a exemplo citam- se os artigos 940, 1.259, 1.993 do CCB/0293, bem como o parágrafo único do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor (CDC)94; em tais dispositivos legais, vislumbra-se efeito sancionatório que se distancia do fator reparação, albergando, em verdade, o intuito dissuasório, o que caracteriza sanções de teor punitivo, embora situadas dentro da esfera civil95. O mesmo

90 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 27. 91 Cf. item 2.6.

92 NADER, Paulo. Op. cit, p. 17.

93BRASIL. CCB/02. Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as

quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição. Art. 1.259. Se o construtor estiver de boa-fé, e a invasão do solo alheio exceder a vigésima parte deste, adquire a propriedade da parte do solo invadido, e responde por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mais o da área perdida e o da desvalorização da área remanescente; se de má-fé, é obrigado a demolir o que nele construiu, pagando as perdas e danos apurados, que serão devidos em dobro. Art. 1.993. Além da pena cominada no artigo antecedente, se o sonegador for o próprio inventariante, remover-se-á, em se provando a sonegação, ou negando ele a existência dos bens, quando indicados.

94BRASIL. CDC. Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem

será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

também ocorre na esfera processual civil com a previsão de multas, a exemplo da cominada a título de litigância de má-fé, da multa coercitiva, das astreintes96, sendo mencionável também

a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos97.

Diante do exposto, tem-se por preludiada a função punitiva da responsabilidade civil, que virá a ser, a seguir, retomada quando da análise do dano moral, pois, em se tratando dessa tipologia de lesão, o raciocínio ganha destino peculiar, uma vez que a tendência dominante aponta para a aceitação da função punitiva da respectiva indenização.