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Da lógica punitiva civil como uma interseção com o Direito Penal

4 DE UM PRELÚDIO À CAUSA GERAL DE MULTA CIVIL NO DIREITO

4.3 Dos contornos principiológicos da causa geral de multa civil

4.3.2 Da lógica punitiva civil como uma interseção com o Direito Penal

No decorrer da abordagem do tópico sobre a função punitiva da responsabilidade civil, mencionou-se, na esteira do pensamento de Maria Celina Bodin de Moraes, que o Direito Civil, na tradição da Civil Law, erigiu-se na modernidade a partir da separação estrutural entre Direitos Público e Privado, de forma que ao setor público restou um ar protetivo atento ao refreamento do poder estatal, viabilizando, na órbita privada, um maior grau de liberdade418.

Ocorre que o desenvolvimento da compreensão do Direito Constitucional, com ênfase, no Brasil, ao período pós 1988, privilegiou uma visão holística do Direito, capitaneada pela centralidade imposta pela força da Constituição, assim, independentemente da topografia de uma norma (se inserida em ramos tradicionalmente público ou privado) será ela, igualmente, merecedora de filtro axiológico/normativo pela Lei Maior do sistema jurídico. Trazendo o assunto para o âmago do Direito Civil Constitucional, explica Luís Roberto Barroso:

416 ROSENVALD, Nelson. Op. cit, p. 57. Aqui, o autor faz referência a GALGANO, Francesco. Alla ricerca dele sanzioni civili indirette. In: Contrato e imprese. Milano: Cedam, 2004, p. 532.

417 Não se olvida que outras conceituações podem ser pensadas para distinguir os termos pena privada e pena civil,

contudo, para os fins aqui propostos, em que se idealiza uma causa genérica de multa prevista em norma heterônoma e alheia à vontade das partes, faz-se útil a conceituação apresentada com base na ideia de Francesco Galgano, razão pela qual se optou por manejá-la.

No quarto final do século, o Código Civil perde definitivamente o seu papel central no âmbito do próprio setor privado, cedendo passo para a crescente influência da Constituição. No caso brasileiro específico, a Carta de 1988 contém normas acerca da família, da criança e do adolescente, da proteção do consumidor, da função social da propriedade. Além disso, os princípios constitucionais passam a condicionar a própria leitura e interpretação dos institutos de direito privado. A dignidade da pessoa humana assume sua dimensão transcendental e normativa. A Constituição já não é apenas o documento maior do direito público, mas o centro de todo o sistema jurídico, irradiando seus valores e conferindo-lhe unidade. 419

Não se pretende aqui ingressar em discussões a respeito da superação420 ou não da dicotomia entre Direitos Público e Privado, mas, tão só, ponderar que, no plano da regência constitucional, todas as normas, sem preconceito de origem, são submetidas a uma principiologia que, embora vasta, ramificada e, por vezes, aparentemente contraditória, é una sob as vestes do valor regente da dignidade humana421.

Em complemento da ideia exposta, citam-se as palavras de Virgílio Afonso da Silva:

Por fim, alguns autores recorrem à unidade do ordenamento jurídico para fundamentar uma superação da dicotomia direito público/direito privado. Segundo eles, não seria mais aceitável a idéia de que a constituição é a lei do Estado e o direito civil é o ordenamento da sociedade. Segundo essa corrente, a constitucionalização do direito civil seria uma demonstração de que a distinção entre direito público e direito privado não pode ser rígida. Quanto a isso, não há dúvida. Mas entre a inexistência de distinção rígida e superação da distinção há uma grande diferença [...].422

Conforme afirmado por Virgílio Afonso da Silva, é certo que, independente da discussão sobre a superação da divisão entre Direito Público e Direito Privado, o fato é que tal separação, sob a ótica da Constituição, não pode ser dogmática, sendo possível o intercâmbio entre as noções. No contexto brasileiro, não é raro encontrar exemplos em que ramos tradicionalmente tidos como pertencentes ao Direito Público invadem a esfera privada e vice- versa.

Veja-se, em ilustração, que o Direito Penal, ramo essencialmente voltado à tutela da pretensão punitiva do Estado, começa, por meio do art. 387, IV do Código de Processo Penal

419 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013,

p. 82.

420 Sobre o assunto, é interessante notar o pensamento de Luís Roberto Barroso, que se vale da expressão

“superposição” entre o público e o privado. In verbis: “Ao longo do século, todavia, as novas demandas da sociedade tecnológica e a crescente consciência social em relação aos direitos fundamentais promoveram a superposição entre o público e o privado. No curso desse movimento, opera-se a despatrimonialização do direito civil, ao qual se incorporam fenômenos como o dirigismo contratual e a relativização do direito de propriedade.” (Ibidem).

421 Sobre a unidade axiológica da Constituição, conferir MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Op.cit. 422 SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit, p. 173, 174.

(CPP)423, a também se preocupar com o ressarcimento da vítima, sendo essa uma matéria de interesse nitidamente privado. Em outro ângulo, as já mencionadas multas inseridas em normas de cunho civil são exemplos da legislação civil ingressando na órbita das penas. Assim, interpenetram-se institutos de nascentes diferentes, conforme já havia sido percebido por Antônio Junqueira de Azevedo:

O momento que estamos vivendo, especialmente no Brasil, de profunda insegurança quanto à própria vida e incolumidade física e psíquica, deveria levar todos os juristas independentemente do seu campo de atuação, a refletir e procurar soluções para aquilo que poderíamos afirmar, pedindo desculpas, se for o caso, aos penalistas, como ineficiência do direito penal para impedir crimes e contravenções – atos ilícitos, na linguagem civilista. Segue-se daí que a tradicional separação entre direito civil e direito penal, ficando o primeiro com a questão da reparação e o último com a questão da punição, merece ser repensada. Do nosso lado, o lado civilista, cumpre ressaltar, antes mais nada, que não é verdade que o direito civil não puna. Em várias situações, o próprio Código Civil emprega até mesmo a palavra pena.424

Compreendendo, portanto, a causa geral de multa civil como um setor de interseção425 entre o Direito Civil e o Direito Penal, é imprescindível que se faça uma releitura da contextualização de tal instituto diante dos princípios vigentes em ambas as searas, sob o ponto de equilíbrio da Carta Magna.

É interessante perceber que a influência de institutos de caráter punitivo é notada não só no Direito Civil, mas também em outros ramos do Direito. Nesse sentido, destaca-se a obra “Direito Administrativo Sancionador”, de autoria de Fábio Medina Osório, oportunidade em que o Autor, em estudo das sanções punitivas dentro da seara administrativista, percebe interseção entre o Direito Administrativo e o Direito Penal, ao que procede com um repasse crítico sobre o regime jurídico a que deve ser submetido o administrado, quando diante de uma

423 BRASIL. CPP. Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória: [...] IV - fixará valor mínimo para reparação

dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido; [...]. Outro Exemplo de preocupação penal em relação à indenização se verifica na norma disposta no art. 34, § 4º do Código Penal, veja- se: “Art. 34, §4. O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais.”.

424 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. cit, p. 212.

425 Ronald Dworkin, em análise crítica sobre a compartimentalização dos ramos do Direito, elabora o seguinte

pensamento: ”O direito como integridade tem uma atitude mais complexa em relação aos ramos do direito. Seu espírito geral os condena, pois o princípio adjudicativo de integridade pede que os juízes tornem a lei coerente como um todo, até onde olhes seja possível fazê-lo, e isso poderia ser mais bem-sucedido se ignorassem os limites acadêmicos e submetessem alguns segmentos do direito a uma reforma radical, tornando-os mais compatíveis em princípio com outros.” (DWORKIN, RONALD. O império do direito. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Tradução de: Jefferson Luiz Camargo, p. 302). Prosseguindo em tal ideia, o Autor não desmerece a separação dos ramos jurídicos, mas relativiza tal premissa em certas circunstâncias, veja-se: “Hércules, porém, não se mostrará tão disposto a acatar a prioridade local quando o resultado de sua prova não for bem sucedido, quando os limites tradicionais entre as áreas do direito se tornarem mecânicos e arbitrários, ou porque o conteúdo das divisões não mais reflete a opinião pública.” (Ibidem).

sanção punitiva setorizada no Direito Administrativo. Nas palavras do autor:

Do exposto, o que se percebe é que o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, se bem que não se valham invariavelmente das mesmas técnicas, nem encontrem os mesmos regimes jurídicos, acabam adentrando núcleos estruturantes dos direitos fundamentais dos acusados em geral, na perspectiva de submissão às cláusulas do devido processo legal e do Estado de Direito. O Direito Punitivo, assim, encontra um núcleo básico na Constituição Federal, núcleo normativo do qual emanam direitos constitucionais de conteúdos variáveis, embora também com pontos mínimos em comum e aqui talvez resida a confusão conceitual em torno ao debate sobre Direito Público Punitivo. E é precisamente aqui que se deve compreender a unidade do Direito Sancionador: há cláusulas constitucionais que dominam tanto o Direito Penal, quanto o Direito Administrativo Punitivo. Tais cláusulas, se bem que veiculem conteúdos distintos, também veiculam conteúdos mínimos obrigatórios, onde repousa a ideia de unidade mínima a vincular garantias constitucionais básicas aos acusados em geral.426

O raciocínio aqui elaborado em perceber a influência do Direito Penal na seara civil é análogo à ideia trabalhada por Fábio Medina Osório em relação à seara administrativista427. Ambos os pensamentos convergem para a reflexão sobre um núcleo rígido regente do que se pode denominar de Direito Punitivo, que, independente do ramo jurídico estudado, é delineado em padrões mínimos de base constitucional, em garantia de um piso dos direitos fundamentais do acusado.

No entanto, a base constitucional do Direito Punitivo não se limita ao intuito de proteção do acusado, mas também alberga a ideia de bem regrar a essência da punição, que se plasma na ordem de prevenção428 , decorrente do imperativo constitucional de proteção da vítima diante de ameaças de direitos429.

Dessa forma, a compreensão da causa geral de multa civil como instituto pertencente ao regramento uno denominado Direito Punitivo significa um novo olhar para a relação jurídica sancionatória, em que, dentro da tradicional ótica civilista, passa-se à funcionalização constitucional dos institutos, em prol da harmonização e do equilíbrio entre sujeitos lesante e lesado, em que, concomitantemente, preocupa-se com os direitos fundamentais do acusado e com a tutela jurídica da ameaça de direitos, sob o viés social430 da

426 OSÓRIO, Fábio Medida. Direito Administrativo Sancionador. 4. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2011,

p. 137.

427 É oportuno não olvidar que o Direito Administrativo é tradicionalmente situado, ao lado do Direito Penal, como

ramificação do Direito Público, o que não ocorre com o Direito Civil. No entanto, tal distinção não desprestigia a analogia aqui feita, pois, afastando-se de formalidades setoriais, o que se coloca em evidência é a existência de sanções de conotação punitiva em ambos os regimes (civil e administrativo), de sorte que, por esse parâmetro, encontram igual foz.

428 Cf. item 4.1.

429 CRFB/88. Art. 5°. XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 430 Enfatiza-se aqui o viés social da ordem de prevenção, pois a prevenção, além de proteger o interesse do

ordem de prevenção.

Sobre a expressão “Direito Punitivo” utilizada, importa destacar que há desenvolvimento teórico no sentido da defesa da unidade do ius puniendi estatal431, no entanto o presente trabalho não aprofundará tal mérito, limitando-se a utilizar a ideia de Direito Punitivo, tão só, para estudar as normas punitivas inseridas no Direito Civil, lavrando-se um breve intercâmbio com noções de Direito Penal, sem qualquer pretensão de generalizar para outros ramos jurídicos as ideias aqui tratadas, que foram pensadas somente para essa interseção432.