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Do estado de neutralidade como pressuposto de eficácia da multa civil

4 DE UM PRELÚDIO À CAUSA GERAL DE MULTA CIVIL NO DIREITO

4.4 Dos critérios de aplicação da multa civil

4.4.2 Do estado de neutralidade como pressuposto de eficácia da multa civil

Indo mais além, é imprescindível perceber que a eficácia preventiva da multa civil pode até mesmo chegar a depender de uma adequada concatenação de sanções jurídicas distintas, que, em certas hipóteses, somente juntas, embora autonomamente aplicadas, são capazes de efetivamente dissuadir o ofensor.

Explica-se: em havendo elevada vantagem na prática de um ilícito, a prevenção somente será plenamente eficaz quando as sanções jurídicas aplicáveis forem capazes de eliminar a vantagem auferida pelo sujeito lesante. Afinal, partindo de uma análise econômica da razão de agir do sujeito ofensor, enquanto houver vantagem na prática da ilicitude485, não se

484 Cf. item 3.3.

485 O raciocínio em testilha pode ser visualizado em todos os três casos em que se exemplificaram os limites da

indenização (lucro da intervenção, erro de execução e equação dos custos de prevenção), pois, em todos, o ofensor conquista vantagem ao praticar o ato ilícito.

consolidará a dissuasão.

Assim, no plano da prevenção, não basta que se aplique uma sanção punitiva para dissuadir, pois é necessário que se elimine o lucro indevido auferido pelo sujeito ofensor. Tal lucro, caso tenha havido dano, já poderá ser mitigado a partir da sanção indenizatória e, em havendo subsunção dos fatos aos ditames da sistemática de enriquecimento sem causa486, é plausível que se determine a restituição do lucro que exceder à indenização.

Além da restituição em decorrência de enriquecimento sem causa, é viável imaginar a eliminação da vantagem do ofensor por outras formas, o que não se pode teorizar no plano abstrato, competindo ao polo interessado487 atentar para as peculiaridades do caso e encaminhar ao Judiciário pedido idôneo para tal desiderato. A exemplo, pode-se imaginar que, na hipótese de vantagem decorrente de uma cautela não tomada pelo sujeito lesante, postule-se por uma obrigação de fazer, que, nos seus custos, oferte ao ofensor a diminuição da vantagem auferida pela economia em não se acautelar.

Após a eliminação da vantagem, o sujeito ofensor retorna ao patamar do status quo

ante ao ilícito praticado, de forma que se volta a uma “estaca zero” em que a indiferença toma

o lugar da vantagem anterior. Insta asseverar que o estado de indiferença merece acurada apreciação no caso concreto, hipótese em que o órgão julgador realmente terá acesso a todas as variáveis que envolvem a querela, partindo da análise de pontuações que vão desde o custo do litígio, à probabilidade de êxito da demanda.

Assim, não se deve dogmatizar o estado de indiferença como sendo um ponto estanque no curso processual, mas sim um resultado obtido a partir do raciocínio em sopesar as vantagens decorrentes do ilícito e aflições consequentes da aplicação do direito à espécie. Feitas tais considerações, o fato é que, somente após alcançado o estado de indiferença, a multa civil poderá atuar de forma realmente dissuasória, levando o ilícito a ser menos vantajoso que o padrão da juridicidade.

Destaca-se que, a partir do rompimento da faixa de neutralidade, o ofensor sofrerá prejuízo real, haja vista que sua condição estará em patamar inferior ao momento anterior à prática do ilícito. Nessa etapa, é imprescindível que a razão de proporcionalidade opere na melhor medida possível, com vistas a não causar demasiado prejuízo, nem insuficiente dissuasão, o que pode, em termos práticos, ser mensurado a partir da resiliência decorrente da

486 Sobre o assunto, cf. item 3.2.6.

487 Não se aprofundará o mérito da legitimação para o pedido, pois, assim, ingressar-se-ia em matéria processual

estranha aos limites deste trabalho. No entanto, prima facie, podem ser cogitadas hipóteses de legitimação do próprio lesado, ou mesmo em relação aos sujeitos capazes para atuação em sede de direitos coletivos, se o caso for. Sobre assunto, foram feitos breves destaques no item 4.1.1.

capacidade econômica do sancionado.

O efeito dissuasório da multa civil será, portanto, inversamente proporcional à capacidade econômica do ofensor, não podendo o julgador descurar de tal critério quando da liquidação da sanção. Contudo, em sentido diverso:

[...] a law and economics recomenda afastar o critério da capacidade econômica do ofensor, por ser inútil para a obtenção da finalidade de dissuasão. Se o desencorajamento do potencial agente é dado por uma análise de custo/benefício, ele só agirá quando as vantagens derivadas de seu ilícito forem superiores aos custos que suportará. Esta relação custo/benefício em nada será alterada pela variação do patrimônio do ofensor.488

Concorda-se somente parcialmente com a ideia de que a condição econômica do ofensor não pode ser contabilizada para efeito de dissuasão. Isso, pois, de fato, até que se encontre o estado de neutralidade, o porte econômico é realmente irrelevante. Contudo, a ordem preventiva, em casos de culpa grave ou dolo, não deve se contentar em atingir o “ponto zero”, pois, assim, estar-se-ia tratando de forma idêntica o infrator e o obediente à lei489 , o que contraria o espírito de harmonização social e o princípio da isonomia. Eis, portanto, o exato âmbito de aplicação da multa civil: desequilibrar a balança da indiferença, induzindo o sujeito ofensor a seguir o padrão da juridicidade.

Logo, partindo do pressuposto de que a multa civil está autorizada a ir além do patamar de neutralidade, ao assim fazer, é imperioso que se respeite a capacidade de resiliência do ofensor, no intuito de não provocar sanção demasiada, ou mesmo insuficiente. Por essa razão, conclui-se pela plausibilidade do porte econômico do sancionado para efeito de cálculo da multa civil.

Ainda no que toca a superação do ponto de neutralidade, é necessário tratar sobre a destinação do valor da multa civil, pois, na medida em que o empobrecimento do ofensor (pela aplicação da multa) provoca o enriquecimento do ofendido, pode-se dar azo à crítica de que se estaria legitimando, contraditoriamente, uma hipótese de enriquecimento sem causa da vítima. Com tal argumento, contudo, não se concorda, ao que se remete à leitura do item 3.1.2, oportunidade em que foi defendida a plausibilidade de um modelo de valor da sanção punitiva de forma dividida entre a vítima e um fundo público.

488 ROSENVALD, Nelson. Op.cit, p. 251. Pondera-se que essa não é posição defendida pelo autor, que, no trecho

transcrito, apenas expõe tal vertente de pensamento para contrastar com sua opinião de que a capacidade econômica deve sim ser um critério da sanção punitiva.

489 Bem ilustrando essa lógica, é interessante reler o exemplo da alegoria das maçãs pensando por Patrícia Carla

Prosseguindo, é imprescindível perceber a necessidade de correta distinção entre as ferramentas atuantes na esfera da tutela civil de ilícitos, para que não se confundam os institutos da indenização, restituição por enriquecimento sem causa e multa civil. Cada um é dotado de peculiaridades, critérios de aplicação e quantificação próprios.

No modelo aqui proposto, a indenização se pauta no dano, tão somente; a restituição deve cuidar de eliminar o restante da vantagem auferida pelo ofensor a custo dos direitos da vítima; à multa resta a tarefa (se o caso for) de desequilibrar a balança da neutralidade, consolidando o processo de dissuasão, que pode já ter sido iniciado pelas demais sanções aplicadas.

Nesse aspecto, é interessante perceber que, à primeira vista, a multa civil e a sanção de restituição por enriquecimento sem causa, quando vislumbradas no contexto de um mesmo ilícito, soam atuar de forma idêntica, afinal, ambas se voltam a eliminar uma vantagem indevidamente auferida, no entanto os institutos são inconfundíveis.

Na restituição por enriquecimento sem causa “não se cogita em ato culposo ou ilícito do agente, mas apenas no fato objetivo consubstanciado no enriquecimento à custa alheia, o que patenteia serem aqueles elementos prescindíveis na configuração do instituto”490. Vê-se, portanto, que, embora seja possível visualizar enriquecimento sem causa em face de ilícito, tal aspecto não está na base fundamental da sanção de restituição.

Conforme explica Pontes de Miranda, “O fundamento das relações jurídicas pessoais por enriquecimento injustificado está em exigência de justiça comutativa, que impõe a restituição daquilo que se recebeu de outrem, sem origem jurídica.”491. Dessa forma, assim como a indenização possui fundamento na ideia de ressarcir, contudo, aos olhos do sujeito ofensor, nota-se sensação de aflição, na sanção de restituição, a causa é a ideia de equidade, que, analogamente, soa como razão de dissuasão ao sancionado

Eis a diferença entre a multa civil e a restituição por enriquecimento sem causa: esta possui gatilho na razão de equidade, embora redunde em consequente de tom punitivo; por outro lado, a multa civil, é causada pela necessidade de intensificar o enfoque preventivo em hipóteses de ilegalidade permeada por culpa grave ou dolo.

Nota-se, portanto, que a prevenção, na órbita civil, depende de uma estratégica e completa tutela sancionatória, em que vários institutos podem ser chamados a atuar em conjunto, não bastando uma cega e desmensurada aplicação do fator punitivo autônomo, que, em verdade,

490 NANNI, Giovanni Ettore. Op.cit, p. 215.

mostra-se como uma ferramenta dentre várias disponíveis.

É cediço que a facilidade com que se teoriza a ideia em amanho não se encontra no mundo prático, pois há intensas dificuldades em se manusear a infinidade de variáveis necessárias ao sopesamento de vantagens e aflitivos decorrentes do ilícito e da aplicação do direito. No entanto, tais dificuldades não devem ofuscar a tentativa de superá-las, em idealização de um modelo mais eficiente de tutela civil.

No mais, o imperativo de prevenção deve reger a proporcionalidade do processo de sopesamento indicado, assim, reafirma-se, caso se constate que o sujeito ofensor já está sendo submetido a sanções capazes de quebrar o estado de neutralidade492 , em prol de um nível satisfatório de dissuasão, não subsistirá contexto propício à multa civil, uma vez que já satisfeita a causa de prevenir.

Por último, é salutar uma breve digressão. É que, embora a discussão aprofundada sobre a unidade ou não do poder punitivo estatal não seja cerne deste estudo, cabe aqui a seguinte reflexão: considerando o pressuposto da causa de prevenir, seria interessante uma concatenada atuação dos diversos ramos jurídicos (Direito Penal, Administrativo, Civil...) na seara das sanções punitivas, no intuito de otimizar a aferição do nível ideal de prevenção.

Assim, pode-se pensar em uma sistemática na qual a aplicação de uma pena de multa em decorrência do mesmo fato, em qualquer seara do Direito, seja levada em consideração pelos outros ramos, no escopo de servir como variável no processo sancionatório. Tal modelo, não desprestigiaria a independência das instâncias, mas sim, concatená-las-ia, em prol de um nível ideal de prevenção493.