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2 ONTOLOGIA E TELEOLOGIA PREAMBULARES

2.6 Da natureza jurídica da indenização por dano moral

2.6.1 Teoria da pena

Para que se compreenda o raciocínio que envolve a teoria da pena, é preciso perceber que, quando das discussões acerca do reconhecimento jurídico do dano moral, dois grandes argumentos desfavoráveis158 à aceitação de tal modalidade de lesão surgiram: o primeiro foi a impossibilidade de se realizar uma efetiva reparação do dano, e o segundo se reporta à imoralidade em se compensar uma dor com dinheiro159.

A primeira objeção (impossibilidade de efetiva reparação) advém da ontológica diferenciação entre o objeto lesado e o meio de sanção (indenização) e é apontado, por parte da doutrina, como “o mais sério argumento contra a reparação de dano moral”160.

Em fato, o bem malferido por um dano moral não é passível de reparo (devolução ao status quo ante) por meio de uma indenização, afinal, em essência, o meio de reparação não corresponde qualitativamente ao objeto que visa restaurar. Partindo de tal ideia, os defensores da teoria da pena levantaram a tese de que a indenização por danos morais, já que incapaz de se voltar em benefício reparatório, deveria encarnar teor punitivo, pois, assim, estaria, em último plano, operando fator de desestímulo atuante na dissuasão do ato danoso161.

158 Em estudo específico, Zulmira Pires de Lima elencou de forma didática um sumário dos argumentos balizados

contra o reconhecimento jurídico dos danos morais, veja-se: “1.° Falta de um efeito penoso durável; 2.° A incerteza nesta espécie de danos, de um verdadeiro direito violado; 3.° A dificuldade de descobrir a existência do dano; 4.° A indeterminação do número de pessoas lesadas; 5.° A impossibilidade de uma rigorosa avaliação em dinheiro; 6.° A imoralidade de compensar uma dor com dinheiro; 7.° O ilimitado poder que tem de conferir-se ao juiz; 8.° A impossibilidade jurídica de admitir-se tal reparação.‘’ (LIMA, Zulmira Pires de. Algumas considerações sobre a responsabilidade civil por danos morais. Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra: 2° suplemento, Coimbra, v. 15, p. 240 apud GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit, p. 114.). Importa perceber que tais arguições, diante do imperativo constitucional de preservação da dignidade humana e dos direitos da personalidade, sucumbem, afinal, nota-se que as refutações partem, em essência, da premissa patrimonialista superada com o norte axiológico da atual Lei Maior.

159 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 3. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2005, p. 26. 160 RODRIGUES, Silvio. Op. cit, p. 191.

161 Explicando tal noção, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho anunciam que: “[...] a reparação do

dano moral não constituiria um ressarcimento, mas sim uma verdadeira “pena civil”, mediante a qual se reprovaria e reprimiria de maneira exemplar a falta cometida pelo ofensor. Esta corrente de pensamento não dirigia suas atenções para a proteção da vítima ou para o prejuízo sofrido com a lesão, mas sim para o castigo à conduta dolosa do autor do dano.” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op.cit, p. 122).

Tal visão parte de uma perspectiva funcionalista162 do Direito, segundo a qual a indenização, antes de ser um instituto dogmaticamente desenhado sob o pálio do paradigma da estrita reparação, constitui ferramenta jurídica capaz de atingir metas voltadas para fins econômicos e sociais. Assim expõe Diogo Naves Mendonça:

Entre as reflexões acerca do fundamento filosófico da responsabilidade civil, é comum a contraposição (análoga àquela de que se ocupa a teoria geral do direito) entre uma compreensão formalista, calcada basicamente – senão exclusivamente – na ideia de justiça corretiva aristotélica, e uma concepção rival funcionalista, que mira o direito privado de uma perspectiva externa, enxergando-o como um instrumento para a obtenção de fins econômicos e sociais.163

Ademais, tal ideia, também se pauta no intuito de castigar o ofensor pelo dano causado, de forma que não se deixe o sujeito lesante impune diante do mal perpetrado, o que também satisfaria o desejo de vingança da vítima164.

Interessante observar que a justificativa da punição como forma de tutelar o dano moral se mostrou presente na evolução da sistemática da Common Law, oportunidade em que, antes do pleno reconhecimento de tal modalidade de dano, a cediça necessidade de sancionar as condutas lesivas ao patrimônio moral deu ensejo ao uso dos punitive damages como forma de se esquivar da impunidade que o desconhecimento do dano moral gerava. Nesse sentido, vale conferir a lição de Pedro Ricardo e Serpa:

Em razão dessa inicial impossibilidade de ressarcimento pelos prejuízos não materiais (vez que estes não eram abarcados pelos compensatory damages), ter-se-ia utilizado os recém desenvolvidos punitive damages como forma de impedir que os detrimentos suportados pelo demandado não restassem sem tutela.165

No que tange a segunda objeção contra o reconhecimento da indenização por dano moral (imoralidade de compensar a dor com dinheiro), é interessante colacionar o pensamento de René Savatier:

162 Sobre a concepção funcionalista do Direito, conferir: BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. São Paulo:

Manole, 2008.

163 MENDONÇA, Diogo Naves. Análise Econômica da Responsabilidade Civil: O dano e a sua quantificação.

São Paulo: Atlas, 2012, p. 40.

164 Sobre tal aspecto, conferir: RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. Campinas: Bookseller,

2002. Antecipa-se que não se concorda com o enaltecimento da razão de castigar por si só, uma vez que deve prevalecer a causa de prevenir, conforme será abordado no item 4.1.

165 SERPA, Pedro Ricardo e. Indenização Punitiva. Op. cit, p. 37. Prosseguindo no raciocínio, o autor vai além e

conclui que, uma vez que a punição era utilizada como forma de ocupar o espaço que, futuramente, seria destinado à indenização por dano moral, o instituto punitivo estaria desempenhando também uma função compensatória (compensava o dano moral sofrido pela vítima, que, no entanto, ainda não estava expressamente tutelado pela sistemática da Common Law então vigente), confiram-se as palavras do autor: “É nesse sentido que se afirma que, na origem, os punitive damages também exerciam função compensatória: atribuía-se ao instituto, também, a finalidade de compensar o lesado por prejuízos que, de ordinário, jamais seriam recompostos apenas pela aplicação dos compensatory damages.” (Ibidem, loc. cit).

Atribuir à vítima o objetivo de reparar um sofrimento tão grande através de uma alegria tão vulgar seria torná-la desprezível. É necessário, pois, um outro fundamento para a sanção pecuniária (...). Ela vem a ser, então, uma pena privada. Imbuídos de um instituto de justiça e de equilíbrio, os tribunais se recusam a privar de sanção o ato responsável que tenha causado um grave dano moral.166

Eis, portanto, em suma, os argumentos voltados à vinculação da indenização por dano moral como de natureza essencialmente punitiva. Tal vertente, conforme se percebe dos seus argumentos basilares, funda-se em dois pilares: a necessidade de sancionar o dano moral e, concomitantemente, a inviabilidade (moral e jurídica) de uma via reparatória, o que redunda, segundo a teoria em apreço, na conclusão pelo imperativo de pena civil como justificativa para a subsistência do dano moral.