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Do dano moral como violação aos direitos da personalidade e à cláusula de dignidade

2 ONTOLOGIA E TELEOLOGIA PREAMBULARES

2.4 Do conceito de dano moral

2.4.3 Do dano moral como violação aos direitos da personalidade e à cláusula de dignidade

A busca pela melhor conceituação do dano moral culminou com a identificação entre tal instituto e a espécie de direito lesionado, afinal, por esse ângulo, afasta-se a perquirição anímica do sujeito lesado, em privilégio do critério fixo e determinado da tipologia de direito vergastado pelo ato lesivo, o que, inclusive, conforme nota Sérgio Cavalieri Filho, amplia a zona de identificação do dano moral, maximizando, portanto, a tutela da dignidade humana. Vejam-se as palavras do citado autor:

113 RESEDÁ, Salomão. Op. cit, p. 133.

114 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Op. cit, p. 36.

115 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 2 v, p. 548. 116 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit, p. 89.

Com essa ideia abre-se espaço para o reconhecimento do dano moral em relação a várias situações nas quais a vítima não é passível de detrimento anímico, como se dá com doentes mentais, as pessoas em estado vegetativo ou comatoso, crianças de tenra idade e outras situações tormentosas.117

Tal concepção ganha força perante o atual contexto constitucional, em que se enaltece a proteção aos direitos da personalidade118, sob o pálio hermenêutico do princípio da dignidade da pessoa humana119.

Nesse sentido, para Sérgio Cavalieri Filho, o dano moral deve ser compreendido a partir de sua contextualização com a CRFB/88, ao que defende a visualização de tal tipologia de dano sob dois enfoques: em sentido estrito, albergando de forma genérica qualquer violação do direito à dignidade humana; e em sentido amplo, envolvendo aspectos que sustenta não estarem diretamente atrelados à dignidade, o que denomina de “novos direitos da personalidade”, tais quais a imagem, o bom nome, a reputação, os sentimentos, as relações afetivas, os gostos, as convicções políticas, religiosas, filosóficas e os direitos autorais120.

De fato, a partir da ordem constitucional organizada com a atual Carta Magna, instaurou-se uma novel sistemática em que a proteção à dignidade humana se consagrou no topo do ordenamento jurídico, servindo-lhe como fundamento, na dicção do art. 1º, III da CRBF/88121.

Portanto, a noção de dano moral deve guardar vinculação com o imperativo de proteção constitucional à dignidade e, nesse sentido, é imprescindível saudar o pensamento da

117 Ibidem, loc. cit.

118 BRASIL. CRFB/88. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se

aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...].

119 Tal concepção também já foi acolhida pelo STJ, no seguinte julgado: “DIREITO CIVIL. RECURSO

ESPECIAL. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. ACIDENTE EM OBRAS DO RODOANEL MÁRIO COVAS. NECESSIDADE DE DESOCUPAÇÃO TEMPORÁRIA DE RESIDÊNCIAS. DANO MORAL IN RE IPSA. 1. Dispensa-se a comprovação de dor e sofrimento, sempre que demonstrada a ocorrência de ofensa injusta à dignidade da pessoa humana. 2. A violação de direitos individuais relacionados à moradia, bem como da legítima expectativa de segurança dos recorrentes, caracteriza dano moral in re ipsa a ser compensado.[...].” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1292141/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/12/2012, DJe 12/12/2012).

120 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op.cit, p. 88, 99. Em semelhante norte segue o pensamento de Pablo Sotolze

Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, veja-se: “O dano moral consiste na lesão de direitos cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro. Em outras palavras, podemos afirmar que o dano moral é aquele que lesiona a esfera personalíssima da pessoa (seus direitos da personalidade), violando, por exemplo, sua intimidade, vida privada, honra e imagem, bens jurídicos tutelados constitucionalmente.” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit, p. 101).

121BRASIL. CRFB/88.Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...].

doutrinadora Maria Celina Bodin de Moraes, que constrói uma conceituação civil- constitucional de dano moral, através do que denomina “cláusula geral de tutela da pessoa humana”, sob a base da proteção da dignidade. Veja-se:

Nesse sentido, o dano moral não pode ser reduzido à lesão a um direito da personalidade, nem tampouco ao efeito extrapatrimonial a um direito subjetivo, patrimonial ou extrapatrimonial. Tratar-se-á sempre de violação da cláusula geral de tutela da pessoa humana, seja causando-lhe um prejuízo material, seja violando direito (extrapatrimonial) seu, seja, enfim, praticando em relação à sua dignidade, qualquer mal evidente ou perturbação, mesmo se ainda não reconhecido como parte de alguma categoria jurídica.122

O norte apontado pela autora parece ser o que mais condiz com o imperativo de tutela da dignidade emanado da CRFB/88, já que não se amarra em qualquer limitação categórica, abrangendo, assim, de forma ampla e genérica a proteção da integridade psicofísica, igualdade, solidariedade e liberdade humanas123 , envolvendo, por conseguinte, de forma completa todo evento caracterizador de ofensa ao indivíduo em si, o que é capaz de englobar figuras aparentemente autônomas, como o dano estético e o dano existencial124 , que, impreterivelmente, se reportam à tutela do indivíduo em sua essência.

É importante mencionar que essa forma de conceituação não está imune a críticas, que são construídas a partir do raciocínio bem ilustrado pelas palavras de José de Aguiar Dias já mencionadas quando da abordagem da diferenciação entre a lesão de direito e seus efeitos125. Seguindo tal ideia, conceituar dano moral a partir da categoria de direito lesionado redundaria em confusão entre consequência (o dano em si) e causa (lesão de direito)126.

Ocorre que a crítica apontada parece pecar por demasiado apego em tentar identificar uma alteração da realidade (efeito danoso) como consequência de uma lesão de direito, o que, possivelmente, advém de um dogma herdado da categoria dos danos materiais,

122 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit, p. 183, 184. 123 Ibidem, loc. cit.

124 Salienta-se que, apesar do posicionamento adotado neste trabalho ao tratar o dano estético e o dano existencial

como espécies do gênero dano moral, existem vozes contrárias que defendem a autonomia de tais tipologias, com destaque para a pacífica jurisprudência sumulada do Superior Tribunal de Justiça a respeito da possibilidade de cumulação do dano estético com dano moral, conforme será abordado no item 3.1.5; no que tange ao dano existencial, menciona-se o posicionamento de Flaviana Rampazzo Soares, que o considera como espécie do gênero dano extrapatrimonial, que se desdobra em diversos ramos, a exemplo do dano moral e dano existencial (SOARES, Flaviana Rampazzo. Op. cit).

125 Cf. item 2.2. “A distinção [entre dano moral e material], ao contrário do que parece, não decorre da natureza do

direito, bem ou interesse lesado, mas do efeito da lesão, do caráter e da repercussão sobre o lesado. De forma que tanto é possível ocorrer dano patrimonial em consequência de lesão a um bem não patrimonial como dano moral em resultado de ofensa a bem material.” (DIAS, José de Aguiar. Op. cit, p. 812).

126 Perceber que tal crítica possui a mesma essência argumentativa da que se volta contra a visão de dano moral

como perturbação subjetiva; o mesmo fundamento é aqui utilizado por ângulo diverso para atacar também o dano moral como violação de direitos da personalidade.

que, contudo, dada sua ontológica particularidade, não é de todo aplicável aos danos morais, haja vista que, nesta seara da responsabilidade civil, os efeitos da lesão de direito (abalo psicofísico) podem ser silenciosos, ou mesmo inexistentes, não sendo seguro, portanto, vincular a responsabilidade à constatação de fator tão volátil.

Nesse sentido são as palavras de André Gustavo Corrêa de Andrade:

A falha da argumentação [da crítica em monta] se encontra exatamente na analogia (de todo imperfeita) que se pretende fazer entre o dano moral e o dano patrimonial. A diversidade de natureza dos bens atingidos impossibilita a aproximação das duas espécies de dano. A associação do dano moral à dor, ao sofrimento ou a outros sentimentos negativos decorre da concepção usual de que o dano se identifica, sempre, com alguma alteração naturalística (ainda que no plano psicológico) provocada por algum comportamento ou acontecimento.127

Urge salientar que, com isso, não se quer dizer que os danos morais prescindem de dano para sua constatação, o que seria uma total contradição. Na verdade, o cume do raciocínio em exposição resulta na identidade, na seara dos danos morais, entre causa e consequência128, é dizer: dado o valor intrínseco129 da dignidade humana, o seu desrespeito já representa o próprio dano moral; a causa do dano moral é a violação da dignidade, e o dano consequente cinge-se na violação em si.

Obtempera-se que a jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente atrelado o dano moral ao malferimento do direito extrapatrimonial violado, sem vinculação a sentimentos subjetivos da vítima, o que é evidente em casos nos quais se menciona os chamados danos morais in re ipsa, veja-se exemplo:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E RESPONSABILIDADE CIVIL. ART. 535, II, DO CPC. ALEGAÇÃO GENÉRICA DE VIOLAÇÃO. NÃO INDICAÇÃO DO PONTO OMISSO. SÚMULA 284/STF. DANO MORAL. CONVICÇÃO FIRMADA COM BASE NOS ELEMENTOS INFORMATIVOS DA LIDE. SÚMULA 7/STJ. ABALO PSICOLÓGICO. DESNECESSIDADE DE PROVA CABAL A RESPEITO, EM SE TRATANDO DE DANO IN RE IPSA. REGIMENTAL NÃO PROVIDO. [...] 3. Em se tratando de dano in re ipsa - aquele que decorre do próprio fato por si só capaz de configurar juridicamente o dano moral -, faz-se desnecessária prova cabal do abalo

127 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Op. cit, p. 41.

128 Perceber que, diferente da dignidade humana que, per si, é dotada de valor, os bens materiais somente

expressam sua importância jurídica a partir do reflexo pecuniário deles emanado, razão pela qual se exige, para a configuração dos danos materiais, uma alteração naturalística (efeito danoso em concreto), para fins de responsabilidade civil.

129 Tal ratio deriva da noção kantiana segundo a qual “o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional –

existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim”. (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Marin Claret, 2008, p. 58. Tradução de: Leopoldo Holzbach).

psicológico, a despeito de, no caso, o Tribunal local ter firmado convicção quanto à sua ocorrência. [...].130

Em complementação, importa evidenciar, contudo, que a formal violação de uma norma que se volte à concretização da máxima da dignidade não basta, conforme a jurisprudência predominante no STJ, para a configuração do dano moral indenizável, sendo, para tanto, indispensável que a violação da norma repercuta em material malferimento da cláusula de dignidade131.

Nesse contexto, foi desenvolvido o conceito de mero aborrecimento, para representar situações em que, embora se identifique uma ilicitude, não se tem, em concreto, afronta suficientemente capaz de violar a dignidade, não gerando, portanto, indenização132.

Por fim, importa esclarecer que tudo o que foi dito a respeito da vinculação entre dano moral e proteção da dignidade da pessoa humana, por óbvio, não se aplica quando da visualização do dano moral sobre pessoa jurídica133, cujo fundamento se reporta ao fato de ela

130 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 619.795/RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO,

QUARTA TURMA, julgado em 09/06/2015, DJe 30/06/2015. Em mesmo sentido, dentre outros: AgRg no AREsp 661.456/BA, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/05/2015, DJe 15/06/2015 e AgRg no REsp 1229324/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 15/09/2015, DJe 28/09/2015.

131 Aqui, é interessante uma analogia com os conceitos de tipicidade penal, que pode ser classificada como formal

ou material. A tipicidade formal se reporta à subsunção de um ato ao tipo legal previsto em lei; a tipicidade material qualifica a conduta que, em concreto, além da tipicidade material, também é capaz de ofertar afronta ao bem jurídico protegido (GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 12 ed. Niterói: Impetus, 2010, 1 v, p. 152). Assim, para que se visualize o dano moral indenizável, é necessário que o bem jurídico (direito da personalidade/dignidade humana) seja atacado de forma relevante, dentro de um parâmetro de razoabilidade.

132 A exemplo, veja-se a seguinte ementa de julgado do STJ: “AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO

ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO DE GASTROPLASTIA REDUTORA (CIRURGIA BARIÁTRICA). RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. AGRAVO IMPROVIDO. 1. O colendo Tribunal de origem entendeu que, embora "a autora já padeça de algumas comorbidades típicas daqueles que sofrem de obesidade mórbida, sua saúde, de uma forma geral, ainda não foi comprometida de modo irreversível, sendo que a realização da cirurgia possui exatamente o escopo de evitar o agravamento das patologias que certamente decorrerão dessa condição". Desse modo, concluiu que a simples negativa de cobertura de cirurgia bariátrica não pode ensejar, de plano, dano moral. 2. Quando a situação experimentada não tem o condão de expor a parte a dor, vexame, sofrimento ou constrangimento perante terceiros, não há falar em dano moral, uma vez que se trata de circunstância a ensejar aborrecimento ou dissabor, mormente em se tratando de mero descumprimento contratual que, embora tenha acarretado aborrecimentos, não gerou maiores danos à recorrente. 3. Agravo regimental não provido.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 713.545/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/09/2015, DJe 01/10/2015).

133 Sobre a possibilidade de a pessoa jurídica sofrer danos morais, o STJ pacificou o entendimento por meio da

súmula n° 227, veja-se: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.”. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 227, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 08/09/1999, DJ 08/10/1999 p. 126.). Em sentido contrário e em posição minoritária, é interessante a transcrição da lição de Pablo Malheiros da Cunha Frota: “Defende-se, contudo, que a pessoa jurídica não pode sofrer dano moral, porque ela não é titular de direitos da personalidade, não possui as características inerentes às pessoas humanas e a lesão que sofrem sua imagem-atributo, a privacidade, a firma ou a denominação social, o título do estabelecimento, a marca, a liberdade de associação, de expressão, de atuação e de imprensa que repercute materialmente (produção de riqueza) ou institucionalmente na atividade desenvolvida. Não se pode atribuir aprioristicamente os direitos da personalidade às pessoas jurídicas, que seriam tratados sob a veste patrimonialista e à sombra dos direitos da propriedade, sob pena de comprometer a tábua axiológica

também possuir atributos objetivos de personalidade dotados de proteção jurídica, embora não esbanje o direito à dignidade, que é subjetivamente vinculado ao ser humano134.