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Do número de sujeitos lesados e da repetibilidade da conduta danosa

3 DANO MORAL E PUNIÇÃO: UMA ANÁLISE CRÍTICA

3.2 Repasse crítico dos critérios de liquidação da indenização por danos morais

3.2.5 Do número de sujeitos lesados e da repetibilidade da conduta danosa

Principalmente por influência do fenômeno consumerista, levanta-se a questão sobre a necessidade de escalonar a indenização por danos morais em consideração da potencial repetição da conduta danosa e do número de lesados, conforme preludiado no item 3.1.4.

Nesse sentido, cogitam-se hipóteses em que o agente lesante causa danos em vasta escala, atingindo, por conseguinte, inúmeros indivíduos (ao mesmo tempo ou sequencialmente). Diante de tal feito, por imperativo de prevenção de danos, a lógica do critério em análise ganha aplicabilidade, o que se enfatiza diante do fenômeno do “erro de execução”. Esse conceito foi criado para dar nome ao fato de que nem todos os sujeitos lesados ingressarão em juízo e, dos que ingressarem, nem todos lograrão êxito na demanda, do que a lógica em apreço conclui pela necessidade de imposição de uma majorante nas indenizações conferidas, como forma de balancear tal equação e efetivamente desincentivar a conduta danosa.

Esclarecendo a lógica do erro de execução, são imprescindíveis as palavras de Robert Cooter e Thomas Ulen, explicitando os reflexos de um hipotético caso em que consumidores têm seus carros danificados em decorrência de um aditivo utilizado, leia-se:

[...] imagine que de cada dois consumidores cujos carros sofrem danos apenas um processa o fabricante e é ressarcido. O outro consumidor não processa porque não sabe que o aditivo causou o dano, ou porque não pode provar o fato. A proporção entre vítimas ressarcidas e o total de vítimas, ½ nesse exemplo, é chamada de “erro de execução (enforcement)”.333

Percebe-se, assim, que dependendo do valor necessário para evitar a superveniência de um dano e do número de consumidores atingidos, é possível que, com base no erro de

execução, o ofensor não se sinta devidamente coagido a parar de provocar os danos, haja vista a lucratividade do ato ilícito, quando visualizado no contexto macro da lógica de mercado utilitarista334.

Diante do fenômeno narrado, a razão econômica informa que a atividade danosa está sendo demasiadamente lucrativa em decorrência do fato de não ter internalizado devidamente todos os custos de sua efetivação (pagamento de indenização em virtude de todos os danos causados), o que justificaria a necessidade de imposição de um fator punitivo para equilibrar a situação335.

Assim, Mitchell Polinsky e Steven Shavell explanam que quando houver uma chance de o ofensor escapar de sua responsabilidade, a indenização imposta quando ele for devidamente responsabilizado deverá ser majorada pela multiplicação da recíproca da probabilidade de ele ser condenado336. Dessa arte, no caso citado por Robert Cooter e Thomas Ulen, o fator de multiplicação seria 2, já que o erro de execução era de ½.

Compilando todo o exposto, Diogo Naves de Mendonça remata:

Em termos abstratos, a responsabilidade total do lesante (R), caso não haja fixação de indenizações punitivas, corresponderá ao valor da indenização compensatória (Ic) multiplicado pelo fator de erro de execução (E), ou seja, R = Ic x E. Para afastar o erro, aplica-se o múltiplo punitivo (M), de modo que R = Ic x E x M. Como o múltiplo punitivo corresponde precisamente à recíproca do erro de execução (M = 1/E), a responsabilidade acabará por se igualar ao dano total provocado pelo lesante: R = Ic x E x 1/E -> R = Ic.337

Por outro aspecto, os critérios do número de sujeitos lesados e da repetibilidade da conduta danosa também podem ser interpretados como forma de evitar o sobrecarregamento do fator punitivo, uma vez que o múltiplo calculado a partir do erro de execução, além de atuar como elemento de majoração do quantum meramente ressarcitório, também estabelece o teto da sanção indenizatória, cujo escopo englobaria, somente, a internalização dos custos de produção. Desta feita, caso se verificasse que os valores das sanções estivessem extrapolando o fator de punição, haver-se-ia de adequar tal montante para evitar uma sobrecarga punitiva.

Novamente sem adentrar na justiça da lógica apresentada, mas abordando, tão somente, sua adequação com o ordenamento jurídico pátrio, é evidente que os critérios expostos

334 Sobre tal assunto, conferir: SANDEL, Michael S. Op. cit. 335 MENDONÇA, Diogo Naves. Op. cit, p. 111.

336 No original: “When an injurier has a chance of scaping liability, the proper level of total damages to impose on

him, if he is found liable, is the harm caused multiplied by the reciprocal of the probability of being found liable.” (POLINSKY, A. Mitchell; SHAVELL, Steven. Punitive damages: an economic analysis. Harvard Law Review, v. 111. 1998, p. 874).

não possuem cunho somente ressarcitório, pois exigem a utilização de um fator punitivo que não contém previsão nas leis civis vigentes, razão pela qual não podem ser avalizados pela jurisprudência.

Em continuidade, a título de reflexão, é interessante ponderar e perceber que o fator punitivo em querela tem relação com a pressuposição de que o sistema de responsabilidade civil não operará de forma perfeita, dando origem, portanto, ao erro de execução.

Desta feita, o fator punitivo possui base de cálculo referendada por indenizações que haveriam de ser pagas para sujeitos que, em verdade, não obtiveram a devida tutela jurídica de seus direitos, razão pela qual o múltiplo punitivo parece esbarrar em uma questão de ilegitimidade ativa, pelo fato de um sujeito lesado balizar postulação com fulcro na inércia de outro. Outrossim, tal lógica também parece malferir o direito à ampla defesa do condenado, pois ele estaria respondendo, por meio do fator punitivo, em face de uma presunção de dano que sequer teria sido objeto de discussão durante a lide338.

Por fim, é oportuna a menção ao pensamento de Marcela Alcazas Bassan, segundo a qual a problemática do erro de execução não encontra resposta unicamente na inserção do elemento punitivo na responsabilidade civil, em verdade, segundo defende, a sistemática processual pátria possui ferramentas aptas a contornar possíveis inércias de particulares, o que se viabiliza através do correto manejo das ações civis públicas. Referindo-se a tais ações, vejam- se as letras do pensamento apresentado:

Para essas hipóteses [erro de execução], em que parece desvanecer a eficácia preventiva da indenização compensatória, sugerem-se instrumentos já postos pelo ordenamento jurídico nacional que podem colaborar para a prevenção de danos. Ou seja, antes de se aceitar que nestas situações a indenização punitiva representa uma solução adequada, deve-se observar que o ordenamento jurídico dispõe de alguns instrumentos processuais que, se efetivamente utilizados, afastam a necessidade da via punitiva. Tais instrumentos estão à disposição da sociedade e contêm um potencial preventivo, que deve ser explorado antes de cogitar da aceitação dos parâmetros punitivos da Common Law, postos nos punitive damages.339

Embora se reconheça o relevante potencial da tutela coletiva na responsabilidade civil, pondera-se que a estratégia processual deve ser aliada a ferramentas de direito material, com o intuito de otimizar a força preventiva da sanção e consolidar a devida ordenação da conduta humana.

Dessa forma, a existência da via processual coletiva não desmerece, de plano, a utilidade na idealização do escopo punitivo, cuja utilidade e aplicabilidade devem ser

338 A legitimidade voltará a ser abordada no contexto da causa geral de multa civil. Cf. item 4.1.1. 339 BASSAN, Marcela Alcazas. Op. cit, p. 117.

apreciadas no caso concreto, a partir da noção de adequação preventiva340, sendo, inclusive, imaginável a incidência de sanção punitiva através da técnica da ação civil pública.

Ademais, o manejo da via processual coletiva, se não aliado a um instituto de direito material que vá além do intuito reparatório/compensatório, poderá não ultrapassar, ou mesmo sequer alcançar o ponto de neutralidade tratado no item 4.4.2, repercutindo, por conseguinte, em insuficiente dissuasão.

Pelo exposto, a não admissão da juridicidade dos mencionados critérios no âmbito da liquidação da indenização se deve à inexistência de base legal para tanto, e não ao argumento de que a problemática do erro de execução seria plenamente solucionável pelo uso de ações de tutela coletiva de danos.