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3 DANO MORAL E PUNIÇÃO: UMA ANÁLISE CRÍTICA

3.1 De uma análise argumentativa

3.1.3 Das repercussões socioeconômicas do fator punitivo

Muitas são as críticas que apontam preocupações de cunho socioeconômico quanto à aplicação da indenização punitiva, dentre as principais, têm-se: a) o temor de que o aspecto punitivo das indenizações incentive o deletério sentimento de vingança; b) o medo de que o efeito dissuasório seja concretizado a partir de indenizações excessivas, podendo, assim, prejudicar atividades empresariais de forma a causar, em escala macro, ônus maiores que bônus; c) o receio de que a agregação às indenizações de maiores valores pecuniários desenvolva processo de mercantilização das relações existenciais e de incentivo à litigância frívola; d) a possibilidade de ineficácia do instituto punitivo diante dos meios de diluição de despesas e contratação de seguros pelos grandes agentes causadores de dano, ou mesmo no caso de morte ou extinção do sujeito lesante. Tais pontos serão agora analisados.

No que tange o suscitado fomento ao sentimento de vingança, importa asseverar

que se tal for o motivo por trás de uma demanda indenizatória, isso se deve mais a uma característica psicológica da vítima, cuja moralidade não compete ao Direito julgar, do que a uma falha do instituto em comento, que possui finalidade de todo nobre e eminentemente voltada ao desincentivo de atos atentatórios a direitos da personalidade.

Outrossim, é possível argumentar que a lógica que leva à repugnância da indenização punitiva com base no argumento do incentivo à vingança também se aplica a todas as hipóteses em Direito admitidas em que uma sanção de cunho repressivo é desencadeada por ato de particular, a exemplo, inclusive, dos crimes de ação penal privada. Dessa forma, haver- se-ia de concluir pela ilegitimidade de todos esses preceitos cominatórios, o que não seria razoável.

Nessa oportunidade também é importante apresentar o argumento balizado por Boris Starck de que a pena privada241 representaria uma espécie de válvula de escape capaz de apaziguar eventuais “explosões” de justiça privada, naturais ao sentimento humano de revolta perante um evento danoso242. Apresentando ideia parecida, André Gustavo Corrêa de Andrade argumenta que a vingança é própria da natureza humana e que o Direito não seria o meio capaz de alterar tal verdade, competindo-lhe, tão somente, civilizar e institucionalizar de forma adequada a retribuição pelo mal sofrido243.

Quanto ao argumento referente à mercantilização das relações existenciais, é interessante perceber que tal pensamento novamente traz à baila o já discutido e superado posicionamento segundo o qual os danos morais não poderiam ser objeto de compensação, haja vista a imoralidade de comparar valores correlatos à dignidade humana com dinheiro.

Destarte, considerar o teor punitivo do dano moral, ou mesmo a própria compensação por tal tipologia de lesão, como fator de reificação e mercantilização da personalidade humana, é um extremismo que peca por visualizar somente a degeneração do instituto que, embora eventualmente ocorrente, não justifica que a sanção seja suplantada, pois, ai sim, estar-se-ia negando tutela jurídica e mitigando a consagração dos direitos da personalidade, mormente em relação àqueles que utilizam tal ferramenta adequadamente e com seriedade. Nesse sentido:

Com o argumento de que o caráter punitivo da indenização do dano moral constitui uma forma de mercantilização das relações existenciais e incentivaria a malícia de

241 Não se deve olvidar que, embora Boris Starck mencione o termo pena privada, para efeitos deste trabalho a

ideia é melhor expressada com o nome de pena civil, conforme o item 4.3.1.

242 STARCK, Boris. Essai dùne theorie générale de La responsabilité civile consideré em as Double fonction

de garantie et de peine privée. Paris: L. Rodstein. 1947 apud DIAS, José de Aguiar. Op. cit, p. 817.

alguns, repele-se uma sanção que, em situações excepcionalmente graves, se propõe a proteger de forma mais eficaz a dignidade humana e os direitos da personalidade. Também neste caso, procura-se ver um instituto pelo seu ângulo menos favorável, desprezando o tanto de positivo que ele pode apresentar.244

Com relação ao argumento do incentivo à litigância frívola e à denominada “indústria do dano moral”, é importante não olvidar o direito fundamental do acesso à justiça, consagrado no art. 5°, XXXV da CRFB/88, o que torna o temor da enxurrada processual mais um resultado da incapacidade do Poder Judiciário de gerir o fluxo de demanda, do que uma falha do instituto sancionatório.

Ainda sobre a questão da litigância frívola, obtempera-se que o estabelecimento de uma jurisprudência firme e repressiva sobre causas de notória desqualificação, pode incentivar uma maior racionalização por parte dos jurisdicionados ao ingressarem com ações, mormente tendo em vista o manejo de institutos processuais adequados, a exemplo da litigância de má- fé245.

Outro fator de ordem socioeconômica que se volta ao combate da indenização punitiva tem relação com a repercussão que tal sanção pode desencadear em face dos agentes lesantes, dentre os quais se destacam as empresas. Isso, porque tais pessoas jurídicas desempenham uma função social própria, seja empregando pessoas, fomentando a economia, ou exercitando atividade de interesse social. Dessa forma, indenizações excessivas poderiam ocasionar a ruína das empresas e, por conseguinte, prejuízos de ordem social maiores que aqueles que a sanção visa reprimir, o que, em última análise, repercutiria no desencorajamento da iniciativa empresarial246.

Em ângulo oposto, aspecto que também merece reflexão consiste no argumento segundo o qual as empresas possuem mecanismos de diluição das indenizações no preço de seus produtos e serviços, o que faz com que toda a sociedade pague o preço da sanção punitiva, eliminando, assim, a eficácia do instituto.

Rebatendo tais argumentos, é importante frisar que a preocupação com o excesso

244 Ibidem, p. 297.

245 BRASIL. CPC/2015. Art. 81. De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa,

que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou. § 1oQuando forem 2 (dois) ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária. § 2oQuando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário- mínimo. § 3oO valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos. Ver também art. 18, CPC/73.

246 PIZZARO, Ramón Daniel. Daño Moral. Buenos Aires: Hammurabi. 2000, p. 389 apud ANDRADE, André

no valor das indenizações é um fator de maior relevância no contexto norte-americano, haja vista que lá a condenação é inicialmente estipulada por um corpo de juízes leigos, o que, todavia, não ocorre no Brasil, em que as indenizações são escalonadas por magistrados togados, do que se presume que o quantum indenizatório esteja menos sujeito a desproporções motivadas por juízos passionais247.

Além disso, enfatiza-se que ao sistema recursal compete a uniformização e adaptação de eventuais incongruências na liquidação da indenização, o que, inclusive, tem sido feito pelo Superior Tribunal de Justiça, em hipóteses que se julga o valor da condenação fora dos padrões de proporcionalidade248, oportunidade em que se faz relevante retomar a lição de Francesco Carnelutti, ao afirmar que “a justiça da pena traduz-se na relação econômica entre o mal causado e o mal a infligir para que não se cause maior mal”249.

Ainda em combate a tal visão, tem-se no Brasil, conforme já mencionado, notícia de reiteradas decisões judiciais em que se pacificou a adoção do fator punitivo nas indenizações por danos morais, o que demonstra que a previsão de uma catastrófica repercussão socioeconômica da inserção do fator punitivo nos danos morais é mais uma especulação exagerada, do que uma realidade empírica.

Quanto à ineficácia do instituto punitivo por meio da capacidade de diluição dos custos da indenização, não se deve esquecer que, mesmo que a diluição seja efetivamente realizada, tal feito acabaria por aumentar o custo dos produtos e serviços, o que tornaria a empresa menos competitiva no mercado. Dessa forma, a capacidade de repartição dos prejuízos não desmerece a eficácia da indenização punitiva.

Ademais, constatando-se a ineficácia da punição, dado o mencionado mecanismo de repasse de despesas, nada obsta que o julgador majore o valor indenizatório, como forma de preservar o intuito do instituto, o que será aprofundado quando do estudo sobre os critérios de

247 VAZ, Caroline. Op. cit, p. 86.

248 Nesse sentido: “RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. ENTREVISTA

CONCEDIDA EM PROGRAMA DE TELEVISÃO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. SÚMULA N. 221/STJ. QUANTUM INDENIZATÓRIO. DESPROPORCIONALIDADE. 1. Não há por que falar em violação do art. 535 do CPC quando o acórdão recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos de declaração, dirime, de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões recursais. 2. "São civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação" (Súmula n. 221/STJ). 3. Nas hipóteses em que se verifica desproporcionalidade entre o dano e o valor arbitrado a título de reparação por danos morais, é permitido afastar-se a incidência da Súmula n. 7 para adequação do quantum. 4. Recurso especial interposto por Carlos Roberto Massa conhecido e parcialmente provido. Recurso especial de TVSBT Canal 4 de São Paulo S/A conhecido e provido.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1125355/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 17/08/2010, DJe 26/08/2010).

quantificação da punição.

Por fim, salienta-se que, quanto à questão da contratação de seguros para cobertura das indenizações punitivas, de fato existe a possibilidade de mitigação da eficácia do dano moral punitivo, o que, todavia, também não desmerece a sua utilidade, por duas razões: a uma porque, mesmo a cobertura securitária, embora seja capaz de diminuir consideravelmente o ônus do agente lesivo, não o elimina, haja vista o custo da própria contratação do seguro, que a depender do valor e da frequência das condenações pode se tornar até inviável; a duas, em face do entendimento doutrinário segundo o qual esse tipo de seguro seria um contrato ilegal.

Nesse sentido, Pedro Ricardo e Serpa levanta o art. 762250 do CCB/02 para justificar a nulidade do contrato de seguro em comento. O mencionado autor também pondera que inclusive na hipótese de se considerar o contrato de seguro legal, o risco em tutela não seria acobertado pela seguradora, por força do art. 768251 do mesmo Código252.

Quanto à suscitada ineficácia da punição por danos morais na hipótese de morte ou extinção do agente lesante, deve-se ponderar que a finalidade da pena envolve, além do intuito de repressão e prevenção específica, também um escopo de prevenção geral, o que se conquista através da exemplaridade, que não é descartada pelo fim do ofensor.

Ademais, considerando as benesses da hipótese de destinação da indenização punitiva para um fundo público voltado à proteção do bem jurídico lesado, tem-se por reafirmada a eficácia e utilidade do fator punitivo no caso de falecimento ou extinção do provocador da lesão, na hipótese de contratação de seguros, ou mesmo no caso da diluição dos custos na atividade empresarial.

No entanto, no que toca ainda a questão da transmissibilidade da sanção de natureza punitiva, apesar de se ter falado que o evento morte (ou extinção) não elimina sua eficácia, em razão da ordem de prevenção geral, bem como do proveito social obtido caso se destine o respectivo valor a um fundo público, tem-se o óbice constitucional do art. 5°, XLV da CRFB/88253 a impedir que a pena passe da pessoa do condenado, razão pela qual deve prevalecer a proteção conferida pela Carta Magna254.

250 BRASIL. CCB/02. Art. 762. Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado,

do beneficiário, ou de representante de um ou de outro.

251 BRASIL. CCB/02. Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto

do contrato.

252 SERPA, Pedro Ricardo e. Op.cit, p. 265, 266.

253 BRASIL. CRFB/88. Art. 5°. [...] XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação

de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido; [...].