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2. CONSEQÜÊNCIAS DA INCONSTITUCIONALIDADE E DE SUA

2.4. A questão do controle abstrato da legislação pré-constitucional

2.4.3. Crítica à posição do STF

2.4.3.1. Da revogação por inconstitucionalidade

Como enfatizado linhas atrás, o Supremo Tribunal Federal perfilhou de início o entendimento conforme ao qual era possível examinar, no controle abstrato, o problema da revogação de normas pré-constitucionais pela nova Constituição158. Tal

orientação foi, infelizmente, de seguida abandonada159, não sem iteradas opugnativas da parte de alguns Ministros, como SEPÚLVEDA PERTENCE, que a este propósito lavrou

voto-vista na ADIn no 2, reproduzido em vários outros acórdãos ulteriores, que, em substância, sintetiza a real fenomenologia da inconstitucionalidade sobreveniente à entrada em vigor (1) de uma nova Lex Legum ou (2) de uma Emenda Constitucional.

Quando a norma constitucional é posterior à norma infraconstitucional que lhe é contrária, há o concurso de dois fenômenos: há tanto inconstitucionalidade superveniente como revogação. Mas não ocorrem, no plano

lógico, simultaneamente, a um só tempo. A revogação é conseqüência da inconstitucionalidade superveniente160. Por outra forma: a inconstitucionalidade

158 Cfr. Rp. 946. Rel.: Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE. In: RTJ, 82/44; Rp. 969. Rel.: Min. ANTONIO

NEDER. In: RTJ, 99/544.

159 Vide: ADIn 3. Rel.: Min. MOREIRA ALVES. In: RDA, 191/182-8. ADIn 77. Rel.: Min. SEPÚLVEDA

PERTENCE. In: RTJ, 147/372-6. ADIn 129. Rel. Min.: FRANCISCO REZEK. In: RDA, 191/214-20. ADIn 221. Rel.: Min. MOREIRA ALVES. In: RDA, 194/242-3. ADIn 381. Rel.: Min. MOREIRA ALVES. In: RTJ, 144/69-97. ADIn 611. Rel.: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. In: RDA, 191/221-6. ADIn 709. Rel.: Min. PAULO BROSSARD. In: RDA, 197/180-8. ADIn 221. Rel.: Min. MOREIRA ALVES. In: RDA, 195/79-80.

160 LÚCIO BITTENCOURT, dissentindo, com razão, de CASTRO NUNES, que insistia “em considerar a revogação e a inconstitucionalidade como duas situações jurídicas irreconciliáveis”, registou: “O

superveniente é, em casos que tais, pressuposto, premissa da revogação. A norma infraconstitucional preexistente à norma constitucional torna-se, com a entrada em vigor da Constituição ou de uma Emenda, inconstitucional, i.e., incompatível com a Constituição, e, conseguintemente, por injunção de princípio lógico-jurídico161, positivado na LICC, art. 2o, § 1o, é revogada. Sendo, portanto, uma norma revogada por inconstitucionalidade, não pode ser recepcionada, recebida, acolhida pela norma constitucional. A sucessão fenomenológica é, portanto, a subseguinte: (1) constitucionalidade; (2) inconstitucionalidade superveniente; (3) revogação; e (4) não- recepção.

equívoco do Mestre consiste, a nosso ver, em considerar paralelas as duas citações [sic, deve ser “situações”], excludente uma da outra, quando, de fato, a inconstitucionalidade é um estado — estado de conflito entre uma lei e a Constituição — e a revogação é o efeito desse estado. O tribunal declara a inconstitucionalidade e, em conseqüência desta, reconhece a revogação da lei.”

Mas nisso não ficou o ilustre monografista: “Havendo, no caso, como fatalmente deverá haver, a declaração de inconstitucionalidade, não há por que subtrair essa situação jurídica, em que se apura a validade de uma lei anterior à Constituição, às normas e princípios que regem in genere a matéria. Esse, aliás, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, limpidamente expresso pelo ministro OROZIMBO NONATO: ‘o tratamento de uma lei inconstitucional, isto é, coetânea da Constituição e que se manifeste contra ela — e o de uma lei incompatível com uma nova ordem constitucional — é o mesmo problema e que, por ser substancialmente idêntico, reclama o mesmo remate ou desentrecho’ ” (voto no MS 767, de 18-6-1947) (O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 132-3.) (Grifos do autor.)

161 Não se reza, pois, petita maxima venia, como pensa o eminente Min. MARCO AURÉLIO, que, aliás, não

aceita a tese da mera revogação, aderindo, porém, à da mera inconstitucionalidade, de matéria “infraconstitucional, ficando obstaculizado o acesso ao Supremo Tribunal Federal [...]” (RDA, 191/187). Com efeito, a LICC, por razão de veicular normas de sobredireito, de ser uma lei sobre leis, de determinar qual a lei aplicável, de determinar os modos pelos quais se revogam ou não as leis, sejam quais forem (de fora parte, obviamente, a Constituição e suas emendas), foi alçada, a nosso viso, à condição de lei

complementar por injunção do parágrafo único do art. 59 da Lex Legum, dispositivo inexistente nas

Constituições anteriores. Prescreve ele: “Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.” Regulamentando este dispositivo constitucional, foi editada a LC no 95/98. No entanto, tal Lei tratou apenas de técnica legislativa. A nosso viso, o art. 59, par. único,

da CF-88 não quis aludir apenas à técnica legislativa. Se assim fosse, o preceito constitucional deveria ter sido redigido (em boa técnica legislativa...) destarte: “Lei complementar disporá sobre a técnica de elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.” Mas não o fez o legislador, e nisso se houve bem. Ainda que esta haja sido a intentio do legislador (mens legislatoris), não é isso o que aparece objetivamente querido na lei (mens legis). Configuraria um dos casos roborizadores da máxima segundo a qual a lei sói ser mais arguta que o legislador, pois muito há que a doutrina tem ressaltado a natureza de “normas de sobredireito” de muitas das normas albergadas na LICC. A lei complementar editada sobre técnica legislativa, por outra parte, é atécnica, porquanto ela mesma trata de contradizer os preceitos de técnica legislativa que encerra: no art. 12, III, “d”, contravém claramente ao que acabara de dispor no art. 11, II, “e”... Assim, enquanto não for editada uma lei complementar que disponha sobre a matéria “de sobredireito” versada na LICC, remanescerá esta com a eficácia de lei complementária, por assim ter sido recepcionada pela CF-88, art. 59, parágrafo único.

Havendo sido, portanto, desde a CF-88, recepcionada como lei complementária, tal estatura hierárquica infraconstitucional não lhe permite arrostar a Lex Major. O preceito, porém, de que “a lei posterior revoga a anterior [...] quando seja com ela incompatível” é de muito maior transcendência. Mesmo que ali não estivesse exarado, impor-se-ia como universal princípio lógico-jurídico que é, reconhecido inexplicitamente pela Constituição mesma. A LICC tão-somente o explicita.

Não há, pois, em hipóteses que tais, nem mera inconstitucionalidade superveniente, nem mera revogação, nem mera não-recepção. Um fenômeno acarreta o outro, nessa seqüência, nessa ordem.

Tais fenômenos ocorrem de pleno direito (pleno iure), independentemente de intervenção judicial ou legislatória. A intervenção judicial, se houver, limitar-se-á a reconhecer a ocorrência da sucessão de fenômenos jurídicos acima descritos, a declarar-lhe a existência. Não é ela, porém, inútil, desnecessária, já que, além de exercer uma função clarificativa, reveste a autoridade vinculativa concreta conatural às decisões judiciais.

Dessa lógica não há fugir, nem de seus resultados, malgrado alcançados por sendas diversas, tem discrepado, em linha de princípio, o direito comparado162.

Se o que se dá é revogação por inconstitucionalidade, passível é a norma que se averba de revogada de ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade. Isso porque para declarar se a norma foi revogada ou não o STF tem, necessariamente, de verificar, em primeiro lugar, a compatibilidade com a Constituição (= constitucionalidade) da norma de cuja revogação se duvida e sobre a qual se controverte163.

162 O Tribunal Constitucional espanhol, em famigerada e laudabilíssima decisão, prescreveu: “Hay que

señalar que no existe una auténtica contradicción entre el problema vigencia-derogación y el problema constitucionalidad-inconstitucionalidad. No es enteramente exacta la opinión de que el tema de la vigencia o derogación es previo al de la constitucionalidad, porque respecto de normas derogadas no cabe ni siquiera plantearse el tema de su constitucionalidad. En puridad, ocurre más bien lo contrario. En la medida en que la derogación se produce por contradicción con la Constitución, la contradicción con la Constitución es una premisa de la derogación. Nosotros entendemos por inconstitucionalidad

simplemente el juicio de contraste entre las dos normas, al que subsigue una consecuencia jurídica. Mas inconstitucionalidad no es la consecuencia, sino simplemente, la premisa de esa consecuencia. Por eso puede decirse que la inconstitucionalidad de las leyes anteriores conduce a unas consecuencias que pueden ser concurrentemente la derogación y la nulidad.” (Apud: ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Tercera edición (reimpresión). Madrid: Civitas, 1988, p. 90.) (Grifou-se.) Vide ainda: GORDO, Alfonso Pérez. El tribunal constitucional y sus funciones. Barcelona: BOSCH, 1982, p. 142-3 et passim. SEGADO, F. Fernandez. La jurisdicción constitucional en España. Madrid: [s.n.], 1984, p. 104-6 et passim. MAURA, Andrés Ribas. La cuestión de inconstitucionalidad. Madrid: Universitat de les Illes Balears (UIB) — Civitas, 1991, pp. 91-96.

163 HUGO DE BRITO MACHADO bem apreendeu o problema: “Sabido que nos termos do art. 97 da

Constituição Federal, ‘somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público,’ tal decisão suscita interessantes questões, entre as quais desde logo podem ser destacadas as de saber: (a) se é possível deixar de aplicar uma lei sem declará-la inconstitucional; e (b) sendo, como no caso, a lei anterior à Constituição, à decisão que afirma não haver sido aquela recepcionada aplica-se a exigência do art. 97 da Constituição.

Se a decisão desconsidera o conteúdo da lei, a pretexto de interpretá-la em face de princípios da Constituição, contém implícita uma declaração de inconstitucionalidade, ou viola literal disposição de lei. Admitido o primeiro entendimento, tem-se que a decisão somente será válida se adotada com observância do art. 97 da Constituição Federal, e se não o observa é rescindível por violação daquela

A revogação tem por premissa irremovível a inconstitucionalidade. Só se pode afirmar se houve ou não revogação após decidir-se se houve inconstitucionalidade ou não. Como se pode asseverar que a Constituição revogou a norma infraconstitucional por contrariedade a ela sem antes afirmar a existência dessa mesma contrariedade (= inconstitucionalidade)?

Assim, não pode o STF, sob pena de incorrer em iniludível prejulgamento da ação, declarar, liminarmente, que não conhece da ADIn por haver a norma sido revogada, acarretando-lhe falta de objeto. A essa conclusão só pode o STF chegar (a) por maioria absoluta de seus membros (CF-88, art. 97) (seis), presentes ao menos 8 (oito) Ministros, e (b) ao cabo da ação, quando decidir o seu mérito. A declaração de que a norma foi revogada pela Constituição contém implícita, como premissa irremovível, uma declaração de inconstitucionalidade, que só pode ser pronunciada ao fim da ação, quando for do exame de seu mérito. Não tem o STF, nem qualquer outro Tribunal ou juiz monocrático, competência constitucional que lhe permita pronunciar expressamente um juízo definitivo de inconstitucionalidade antes de decidido o mérito da ação. Permite-lhe a Constituição, antes de definitivamente examinado o mérito da ação, conceder medida cautelar (em regra, ex nunc) (art. 102, I, p), mediante um juízo provisório e precário sobre a constitucionalidade ou não da norma impugnada, mas não lhe outorga competência para emitir juízos definitivos de inconstitucionalidade antes do termo da ação.

Ora, se não pode fazê-lo diretamente, não pode, igualmente, fazê-lo por via transversa, indiretamente, sob pena de burla à Constituição. A declaração de que a norma foi revogada por incompatibilidade com a Constituição não é matéria de “pressuposto de admissibilidade”, de “condição de procedibilidade”, de condição da ação, mas, isto sim, questão de mérito, por conter implícita, mas necessariamente uma declaração de inconstitucionalidade. Não há, pois, alegar “impossibilidade jurídica do pedido” ou “ausência de interesse objetivo de agir” por “falta de objeto”, objeções alusivas às condições da ação objetiva: a ação há de ser conhecida e, quando do julgamento do mérito, decidir-se-á se houve inconstitucionalidade ou não, e, conseqüencialmente, se ocorreu revogação ou não.

norma constitucional. Admitido o segundo entendimento, tem-se que a decisão é rescindível, por violação da disposição legal que desconsiderou.” (Local de ocorrência do fato gerador do ISS. Repertório IOB de Jurisprudência, São Paulo, no 1/96, pp. 14-16, 1a quinzena de janeiro de 1996.) (Grifou-se.)