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3. O PAPEL DO SENADO FEDERAL NO CONTROLE DE

3.4. Eficácia retroativa e eficácia prospectiva

Sendo ato revogatório, a resolução do Senado pode, eventualmente, produzir efeitos ex tunc, com tal condição que (1) não prejudique ato jurídico perfeito, coisa julgada ou direito adquirido algum, e (2) tal retroeficácia seja manifestamente deduzível de sua literalidade.

Exemplo de resolução senatorial retroativa: a resolução que revoga (= suspende a eficácia de) lei penal incriminadora. Por ser mais benéfica ao acusado/réu do que a norma incriminadora, já que a revoga (abolitio criminis), a Lex Fundamentalis impõe a sua retroação (art. 5o, XL). Não deve causar espécie, portanto, a potencial retroatividade da resolução senatorial pelo fato de esta possuir caráter revogatório, assim como não causa estranhez alguma a retroatividade das leis penais abolitivas de crime (mais benéficas que as incriminadoras).

O que determinará se a resolução produzirá efeitos retroativos ou apenas pro futuro será o próprio acórdão do STF. A resolução tem de guardar simetria com ele. Se o acórdão do STF operar efeitos ex tunc, produzi-los-á por igual a resolução senatorial. Se o acórdão do STF produzir efeitos meramente ex nunc, gerá-los-á talqualmente a resolução senatorial. O Senado não tem competência constitucional que lhe permita restringir ou dilargar a eficácia temporal da decisão do STF. A tanto não vai o seu juízo de conveniência e oportunidade.

A possibilidade irrefutável de retroação dos efeitos da resolução senatorial alui por terra a tese que intenta provar o caráter não-revogatório da resolução, alegando que o ato revogatório não pode retroagir, e como a resolução do Senado o pode, não poderia ela ser um ato revogatório, mas sim um ato suspensivo. Nada mais inveraz.

Com efeito, esta errônea tese parte da falsa premissa de que o ato revogatório não pode retroagir. Ora, como visto foi, a lei penal que revoga uma lei incriminadora, abolindo um crime (abolitio criminis), por ser mais benéfica (lex mitior) retroage por imposição da própria Constituição, que literalmente determina: “a lei

penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5o, XL). Por aí se infere que não tem cabida a tentativa de esboçar uma distinção entre ato revogatório e ato suspensivo com fulcro na impossibilidade de retroação do ato revogatório.

Demais disso, como os pressupostos para a retroatividade dos atos normativos (revogatórios ou não-revogatórios) são os mesmos para a retroatividade dos atos judiciais declarativos de nulidade193, é impossível que o acórdão do STF possa retroagir em determinado caso e a resolução do Senado não possa retroagir no mesmo caso, e vice-versa.

De feito, a vedação contida no art. 5o, XXXVI, da CF-88, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, tem sido interpretada pelo STF como compreensiva das decisões judiciais, por terem “força de lei nos limites da lide e das questões decididas” (CPC, art. 468). Destarte, não só as leis, mas, igualmente, as decisões judiciais não poderão prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. De maneira que o regime jurídico é o mesmo tanto para as leis como para as decisões judiciais: se determinada lei não pode retroagir para alcançar dado ato jurídico perfeito, nenhuma decisão judicial poderá retroagir para alcançá-lo, e vice-versa.

Ocorre que isso não implica que as decisões judiciais declaratórias de nulidade por inconstitucionalidade não possam atingir nenhum ato jurídico perfeito e nenhum direito adquirido. Os atos jurídicos perfeitos inválidos194 e os direitos adquiridos inválidos195 podem ser atingidos pelas decisões judiciais declaratórias de nulidade por inconstitucionalidade. Tais são os atos jurídicos perfeitos e os direitos adquiridos formados em razão da lei declarada nula por inconstitucionalidade. Um direito adquirido em virtude da lei declarada inconstitucional, não é um direito validamente adquirido, pois a invalidade da norma inconstitucional contamina os efeitos dela decorrentes, que também se tornam inválidos. Um ato jurídico perfeito celebrado com base na lei declarada inconstitucional não é um ato jurídico validamente celebrado.

193 Convém a saber: (a) não prejudicar ato jurídico perfeito, direito adquirido ou coisa julgada, e (b)

manifesta intenção de retroagir.

194 O adjetivo “perfeito” refere-se aos elementos de existência do ato, e não aos elementos de validade. 195 A nosso ver, os atos jurídicos perfeitos e os direitos adquiridos fundados em lei inconstitucional existem, mas invalidamente. Dissentimos, portanto, dos que entendem que “não há direito adquirido contra a Constituição”: direito adquirido há (plano da existência), mas inválido (plano da validade). Outra não poderia ser a conclusão, pois, em regra, a sanção para a inconstitucionalidade é a nulidade absoluta, e não a inexistência (nem mesmo jurídica).

Se assim não fosse, quase nenhuma seria a diferença entre nulidade e anulabilidade. Nisto se estrema primordialmente o ato nulo do ato meramente anulável: a invalidade dos efeitos do ato nulo principia desde seu nascimento (ex tunc), ao passo que a invalidade dos efeitos do ato meramente anulável só começa após a decisão anulatória do ato (ex nunc). De modo que se não se pudessem considerar inválidos os atos praticados com fulcro em norma nula (por inconstitucional), esta não se distinguiria em quase nada de uma norma anulável.

É óbvio que nem todos os direitos adquiridos e nem todos os atos jurídicos perfeitos gerados pela lei declarada inconstitucional serão inválidos, porquanto, para salvaguarda de outras normas constitucionais, podem ser excepcionalmente reconhecidos como válidos alguns efeitos secundários dos atos absolutamente nulos (teoria da paraeficácia do ato nulo).

Diverso é, contudo, o regime da coisa julgada fundada em lei declarada inconstitucional. A coisa julgada inconstitucional pode ser rescindida judicialmente, mas pela sua própria natureza preclusiva196, destinada à garantia da segurança jurídica e da paz social, tal rescisão deve obedecer a um prazo igualmente preclusivo197, que presentemente é de 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão (CPC, art. 495).

Eventual insubmissão da possibilidade de desconstituição da coisa julgada a um prazo extintivo malferiria a própria finalidade do instituto da coisa julgada, que é a de resolver os conflitos, de eliminar controvérsias, de promover a segurança jurídica e a paz social, fim último do próprio Direito.

Ora bem, se as ações relativas a questões ainda não decididas pelo Poder Judiciário, assujeitam-se, em geral, a prazos prescricionais e decadenciais, em obséquio à promoção da segurança jurídica e da paz social, com maioria de razão as ações concernentes a causas já decididas pelo Poder Judiciário devem submeter-se a um prazo extintivo, em homenagem a esses mesmos valores jurídicos supremos.

Sucede que, excepcionalissimamente, também o princípio da segurança jurídica em que se funda a coisa julgada pode ser relativizado em face de outro princípio jurídico (como, e.g., os princípios da Justiça e da moralidade da

196 A coisa julgada é denominada por muitos como a “preclusão máxima”.

197 O termo é aqui usado em sentido amplo. O prazo da ação rescisória no direito brasileiro é decadencial,

Administração) que assuma peso concreto maior na situação concreta, até porque, como já proclamou o STF, não há direitos absolutos.

Portanto, o regime da coisa julgada inconstitucional é algo diferente do regime dos atos jurídicos perfeitos e direitos adquiridos inconstitucionais. Seu regime mais se aproxima do regime dos atos anuláveis. Embora possa ser desconstituída198, essa desconstituição só pode acontecer, em regra, dentro de um prazo decadencial e na via própria (que é a ação rescisória), findo o qual pode, excepcionalissimamente, ocorrer, fora da via da ação rescisória, se presentes os pressupostos indispensáveis à sua relativização.

Todavia, poder-se-ia pensar: pode o Senado desconstituir a coisa julgada inconstitucional mediante simples resolução (que tem natureza legislativa) sem ofender o princípio da separação dos Poderes, que não pode ser vulnerado nem mesmo por Emenda Constitucional (CF-88, art. 60, § 4o)? O Poder Judiciário pode desconstituir decisões judiciais transitadas em julgado sem contravir ao princípio da separação dos Poderes, mas poderia o Senado fazê-lo mediante resolução?

Acontece que quando o STF declara a inconstitucionalidade e, portanto, a nulidade, de uma norma, tanto no bojo de uma lide subjetiva (como questão prejudicial à questão principal)199, quanto num processo objetivo (como questão principal), essa

declaração não tem o poder de desconstituir automaticamente, por virtude própria, todos os atos jurídicos perfeitos, direitos adquiridos e coisas julgadas inconstitucionais (i.e., fundados na lei por ele declarada inconstitucional).

Justamente porque a decisão do STF sobre a inconstitucionalidade (incidenter tantum ou principaliter) tem eficácia meramente declaratória (e não desconstitutiva), há necessidade de que o ato fundado na lei declarada inconstitucional pelo STF seja desconstituído pelas vias próprias, o que inclui a via judicial. Ou seja: se o ato não for desconstituído voluntariamente pelas partes interessadas, será indispensável o recurso à via judicial, com o ingresso da ação judicial cabível, para que seja desconstituído judicialmente.

198 À semelhança dos atos jurídicos perfeitos e direitos adquiridos inconstitucionais, que, no entanto, não

são propriamente “desconstituídos” pela decisão judicial (que não tem eficácia desconstitutiva), mas sim declarados nulos.

199 Quando o STF declara incidentalmente a inconstitucionalidade de uma norma, isso não o dispensa de

julgar a questão principal, a qual poderá ter eficácia declaratória, (des)constitutiva, condenatória ou mandamental, conforme a natureza da ação, que é definida de acordo com o pedido principal. É da resolução da questão principal que pode resultar a eficácia desconstitutiva, e não da solução da questão prejudicial sobre a inconstitucionalidade da norma.

Como ao claro se vê, a declaração de inconstitucionalidade (e, portanto, de nulidade) da norma pelo STF apenas serve de fundamento jurídico para a desconstituição do ato jurídico fundado na norma inconstitucional, desconstituição que deverá ser levada a efeito na via adequada e no prazo permitido em lei200. Se, v.g., determinada sentença produziu coisa julgada inconstitucional, porque a sentença foi fundamentada em lei declarada inconstitucional pelo STF, a declaração da inconstitucionalidade da lei pelo STF apenas servirá de fundamento jurídico201 para a propositura da ação rescisória, que deverá ocorrer dentro no prazo bienal contado do trânsito em julgado da sentença, consoante determina o art. 495 do CPC.

Será, por conseguinte, sempre o próprio Poder Judiciário que desconstituirá a coisa julgada inconstitucional202, nunca o Senado, inexistindo, portanto, infração ao princípio pétreo da separação dos Poderes.

Em sendo assim, mesmo no caso de coisa julgada inconstitucional, a resolução do Senado não poderá ter efeito diverso do da decisão do STF declaratória de inconstitucionalidade, pois se esta não terá o efeito de desconstituir a coisa julgada inconstitucional, tampouco poderá a resolução senatorial ter esse efeito desconstitutivo. Confirma-se assim a premissa assentada há pouco de que é impossível que o acórdão do STF possa retroagir em determinado caso e a resolução do Senado não possa retroagir no mesmo caso, e vice-versa.

3.5. “Efeito repristinatório” ou não da resolução

Mesmo sendo um ato legislativo revogatório, e não um ato declaratório de nulidade (como a decisão do STF no controle abstrato e no difuso), a resolução senatorial tem “efeito repristinatório” automático. De acordo com a LICC (art. 2o, § 3o)203, uma lei só poderá repristinar outra se expressamente o declarar. Destarte, a resolução senatorial só poderia “repristinar” a lei anterior à lei declarada

200 Os atos jurídicos perfeitos inconstitucionais e os direitos adquiridos inconstitucionais poderão ser

desconstituídos dentro dos prazos extintivos previstos em lei para o ajuizamento das respectivas ações específicas.

201 Que poderá ser afastado pelo Tribunal ao julgar a ação rescisória se a decisão do STF tiver sido

proferida no controle incidental, mas que não poderá ser afastado pelo Tribunal se a decisão do STF tiver sido prolatada no controle abstrato.

202 Quer mediante ação rescisória, quer mediante relativização da coisa julgada (que prescinde de ação

rescisória), nos casos excepcionalíssimos em que esta for admissível.

203 “Art. 2o. [...] § 3o. Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei

inconstitucional pelo STF se expressamente dispusesse nesse sentido204. Sucede que, admitido o “efeito repristinatório” automático da decisão do STF, impõe-se admitir, por igual, o “efeito repristinatório” automático da resolução senatorial. Esta só não terá “efeito repristinatório” automático quando o acórdão do STF for expresso quanto à não- repristinação (analogicamente ao disposto no art. 27 c/c art. 11, § 2o, da Lei no 9.868-99 a respeito da ADIn e da ADC).

Mas nada impede que o Senado, para maior clareza, faça constar no texto da resolução a ressalva de que esta produzirá a “repristinação” da lei anterior à lei declarada inconstitucional pelo STF, em virtude do “efeito repristinatório” da decisão do STF205.