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7. DA LEI COMPLEMENTAR EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

7.1. Da Função da Lei Complementar segundo a Constituição Federal

7.1.1. Das Correntes Dicotômica e Tricotômica

A partir da leitura dos dispositivos acima transcritos, em um primeiro momento, não parece haver grandes dificuldades no entendimento do sentido e da extensão do artigo em comento.

Entretanto, diante da redação do supra transcrito artigo, a exemplo do que já ocorria com o artigo 18 da Carta de 1967, após alteração pela Emenda Constitucional nº 01/69, a doutrina pátria tem tecido críticas acerca da mesma.

314 Idem, p. 30.

Por este prisma, GERALDO ATALIBA bem asseverou que “as críticas que a redação da Constituição, especialmente desse dispositivo, pode merecer seriam infindáveis”315, enquanto que MARCELO CARON BAPTISTA defende que se trata de uma “deficiência”316.

Nesse contexto, surgiram duas correntes doutrinárias que contemplam e analisam a extensão dos termos ali propostos.

Assim, ao passo que uma corrente confere à lei complementar tributária, definida no referido dispositivo, aplicação restrita, a outra pretende que tal instituto legislativo apresente amplo alcance.

Atribuiu-se à tese que defende a aplicação restrita dos termos do artigo 146 da Carta Constitucional a denominação de “Corrente Dicotômica”, pelo fato de que, por intermédio da interpretação sistemática, restringe-se o alcance da lei complementar tributária a duas funções.

Encabeçam a corrente em tela os autores PAULO DE BARROS CARVALHO317 e GERALDO ATALIBA318, para quem a interpretação do referido artigo não pode ser literal, uma vez que o alcance amplo que a redação supostamente confere às leis complementares vai de encontro a princípios basilares do sistema jurídico pátrio, tais como os princípios do pacto federativo e da autonomia dos municípios.

Acrescenta PAULO DE BARROS CARVALHO que se deve acatar a interpretação conferida ao dispositivo, nos moldes da antiga doutrina que se debruçou sobre a redação do artigo 19,§1º da Carta de 1967319, no sentido de que, a despeito da alteração veiculada pela Carta de 1988, esta foi promulgada sobre os mesmos fundamentos da anterior, e portanto, a interpretação sistemática deve preponderar na vigência da nova ordem constitucional320.

315 ATALIBA, Geraldo. Comentários ao Código tributário nacional: parte geral, p. 07.

316 BAPTISTA. Marcelo Caron, Ob. cit. P. 193.

317 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, p. 187.

318 ATALIBA, Geraldo. Normas Gerais de direito financeiro e tributário. RDP, n. 10, 1971, p. 4

319 Art. 19, §1º: Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sobre conflito de competência tributária entre a União, Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regulará as limitações constitucionais ao poder de tributar.

320 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, p. 187.

Nesse sentido, pela corrente ora debatida, caberia à lei complementar tributária veicular normas gerais, estas, por sua vez, devem se restringir à função de dispor sobre conflitos de competência entre as entidades e/ou regular as limitações ao poder de tributar.

Desta feita, desconsiderando-se os expressos termos do artigo 146, a despeito de o mesmo contar com três incisos, sua interpretação restringir-se-ia a duas funções.

A justificativa em que se fundamentam os defensores da dupla função das leis complementares em matéria tributária é a de que, na hipótese de se admitir plenos poderes à lei complementar para introduzir ilimitadas regras jurídicas no ordenamento, tais normas teriam o condão de ultrajar as competências outorgadas pela própria Constituição aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos municípios.

Vale dizer, permitir às leis complementares nacionais a prerrogativa de impor ilimitadas disposições sobre o exercício das competências tributárias seria um contra-senso, uma vez que o constituinte originário teria dedicado dispositivos para delinear, pormenorizadamente, as competências impositivas tributárias para, em momento posterior, permitir às leis complementares livre disposição sobre a mesma matéria.

Com efeito, para a corrente dicotômica, a dupla função da lei complementar em matéria tributária impõe-se no intuito de vedar o esvaziamento de preceitos de ordem constitucional face a dispositivos da legislação infraconstitucional.

De modo enfático MARCELO CARON BAPTISTA definiu que a problemática estabelecida pela doutrina seria facilmente extirpada se se partir do pressuposto de que o critério hermenêutico que se restringe ao aspecto puramente literal deva ser desconsiderado321.

Isso porque, em se restringindo ao critério de interpretação puramente literal estar-se-ia admitindo que praticamente tudo o que dissesse respeito à tributação estaria submetido à existência de prévio tratamento mediante lei complementar. Conclusão essa que, por si só, já aponta a necessidade de enfrentar com a máxima cautela o enunciado do artigo 146.

321 BAPTISTA, Marcelo Caron, Ob. Cit. p. 187

Concernente a tal argumento, em se acatando a interpretação literal referida, não haveria freios capazes de impedir que o Chefe da Nação amoldasse a legislação tributária infraconstitucional, inclusive na esfera de competência dos Estados, do Distrito-Federal e dos Municípios, ainda que dependente da decisão do Legislativo Federal aos interesses diretamente aos seus representados.

Ressalte-se que o Texto Constitucional, em diversas passagens, desmente qualquer conclusão em favor do arbítrio dos Poderes Executivo e Legislativo Federais no manejo de leis tributárias relembrando as seguintes lições extraídas de dispositivos constitucionais.

A primeira é a que decorre do artigo 151, III, como bem observado PAULO DE BARROS CARVALHO, para quem “Norma tributária que estabelece isenção opera como expediente redutor do campo de abrangência dos critérios da hipótese ou da conseqüência da regra-matriz do tributo”322 .

Disso se extrai que legislar sobre isenção tributária compete, exclusivamente, ao ente federado competente para a instituição da exação. Essa regra corresponde ao que BETINA TREIGER GRUPENMACHER denomina de “princípio de que o poder de isentar é ínsito ao poder de tributar”323, podendo-se concluir que a Constituição impede a atuação da União Federal, em matéria de isenção, quando o tributo não estiver inserido no rol dos que lhe foram constitucionalmente conferidos.

A segunda manifestação constitucional a ser destacada encontra-se expressa no artigo 154, II324, pelo qual, excepcionalmente e em casos de interesse de nação, diante de iminente ou real perigo de guerra externa, a Carta Constitucional confere à União a prerrogativa de instituir impostos extraordinários, desde que por meio de lei complementar.

O fato é que, a despeito da já antiga discussão sobre a função da lei complementar tributária na vigência da Carta de 1967-EC nº 01/69, com o advento da Constituição de 1988, que tão ferrenhamente defende o pacto federativo, a delimitação

322 CARVALHO, Paulo de Barros. Ob. cit. p. 184.

323 GRUPENMACHER, Betina Treiger. Eficácia e Aplicabilidade das limitações constitucionais ao poder de tributar, p. 143.

324 Art. 154. A União poderá instituir:

(...)

II - na iminência ou no caso de guerra externa, impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as causas de sua criação.

de competência e a autonomia dos entes federados, seria estranho reavivar a mesma discussão, de modo que parcela expressiva da doutrina pátria manifestou-se quanto à infelicidade que norteou a redação do então vigente artigo 146.

Ao final, oportuno o destaque das palavras de MARCELO CARON BAPTISTA, para quem:

Não há como conceber que, por um lado, o poder constituinte tenha repartido com linhas tão precisas a competência tributária entre as diversas esferas de governo, a fim de garantir a autonomia normativa e financeira de cada uma delas, em prestígio aos princípios federativo, da isonomia das pessoas constitucionais e da autonomia municipal, e que, por outro, tenha atribuído ao legislador complementar a tarefa de decidir, ilimitadamente, ou quase isso, sobre todos os aspectos na tributação.325

Por seu turno, compartilha fervorosamente a tese ora acolhida PAULO DE BARROS CARVALHO, que cognomina de extravagantes as palavras da alínea a do inciso III do precitado artigo 146. É esse seu pronunciamento, ipsis litteris:

Qual a compreensão que devemos ter do papel a ser cumprido pelas normas gerais de direito tributário no novo sistema?

(...)

O primeiro passo é saber que são as tão faladas normas gerais de direito tributário. E a resposta vem depressa: são aquelas que dispõe sobre conflitos de competência entre as entidades tributantes e também as que regulam as limitações constitucionais ao poder de tributar. Pronto: o conteúdo está firmado.

(...)

E como fica a dicção constitucional, que despendeu tanto verbo para dizer algo bem mais amplo? Perde-se no âmago de rotunda formulação pleonástica, que nada acrescenta.326

Por fim, faz-se essencial trazer à colação o primoroso discurso de ROQUE ANTÔNIO CARRAZZA sobre o alcance das normas gerais em matéria de legislação tributária. Apregoa, num primeiro plano, que a lei complementar sob comento possui natureza simplesmente preventiva, ou seja, orientada a evitar conflitos entre os entes

325 BAPTISTA, Marcelo Caron. Ob. Cit. p. 190

326 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 208.

federativos e entre estes e os contribuintes. Em seqüência, demonstra sua natureza declaratória. Assim condensa seu raciocínio:

No rigor da verdade científica, pensamos que a lei complementar veiculadora de normas gerais em matéria de legislação tributária, sem suprir a Constituição, nem limitá-la ou retificá-la, pode validamente (porque o sistema jurídico a tanto a autoriza) revestir seu arcabouço com detalhes que escapam à pena – não ao espírito – do constituinte. Cingindo-se a estas providências, segundo entendemos, para que a lei maior, em matéria de conflitos de competência tributária e de limitações a seu regular exercício, seja melhor compreendida e aplicada.327

Dentre os poucos defensores da tríplice função da lei complementar, destaca-se HAMILTON DIAS DE SOUZA, para quem “as normas gerais têm campo próprio de atuação, que não se confunde com conflitos de competência e limitações do poder de tributar”328.

Para o referido jurista, a norma geral vem para impor racionalidade ao sistema, possibilitando a convivência de legislações federais, estaduais e municipais e, ao mesmo tempo, estabelecer uma mínima uniformidade capaz de propiciar uma formulação jurídica nacional.

HELENO TAVEIRA TORRES, por sua vez, ao analisar a questão ora tratada, afirma o quanto segue:

A Constituição Federal (art. 146, III) exige que o sistema de legislações (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) submeta-se às chamadas

´normas gerais de direito tributário` como modo de: a) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, aplicando-se estritamente àquelas que exigem lei específica para surtir efeitos (art. 146, II; 150, VI, c; 195, §7º; 156,

§3º CF); b) evitar eventuais conflitos de competência entre as pessoas tributantes, quando deverá dispor sobre fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos já identificados na Constituição (art. 146, I e III, a;

155, §2º, XII, CF); c) definir os tributos e suas espécies (art. 146, III, a , CF) ; d) harmonizar os procedimentos de cobrança e fiscalização dos tributos, tratando de obrigação, lançamento e crédito (art. 146, III, b, CF); e) uniformizar os prazos de decadência e prescrição (art. 146, III, b, CF); e por

327 CARRAZZA, Roque Antônio. Ob.cit. p. 593.

328 SOUZA, Hamilton Dias de. em artigo “Lei complementar em matéria tributária” do livro coordenado por MARTINS, Ives Gandra da Silva. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Centro de Estudos de Extensão Universitária, 1982. p. 29-59.

fim, f) fomentar, de modo harmonizado, adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.329

Como se vê, a interpretação do artigo 146 da Carta Magna pressupõe o pleno entendimento da questão atinente às normas gerais descritas no inciso III do referido dispositivo, de modo que a análise da referida figura é condicionante à construção de pensamento conclusivo acerca do tema em debate.