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75delícias que, no seu centro, apresentava uma construção referenciando o Coliseu de

PARTE I | Do Significado da Arcádia

75delícias que, no seu centro, apresentava uma construção referenciando o Coliseu de

Roma.

O desenho do Jardim é, igualmente, tratado por Sebastiano Serlio (1475-1554) com intuito manualístico e tendo em atenção as possibilidades que a reprodução tipográfica oferecia. Mas, neste caso, os exemplos modélicos de jardins, com a tipificação das partes intervencionadas de Serlio, encontram-se longe do ponto de vista da intervenção que engloba todo a envolvente vivencial de Alberti.

Num dos desenhos no Livro VII163 de Serlio, surge uma construção exemplar inserida no espaço ajardinado na qual a ligação ao plano horizontal do solo é feita através de um embasamento em quebra-mar164. Este gesto transforma a intervenção, quase, num navio que flutua sobre a paisagem, subvertendo o carácter definitivo do edifício. Esta transitoriedade autoriza a sua presença sem a necessidade da articulação e anuncia a forma autónoma da arquitetura, de certa maneira não muito distante da metáfora do edifício isolado modernista corbusiano.

O entendimento renascentista da natureza concebe a paisagem como um campo de significação, um poema cuja mensagem exige um processo de interpretação, em ordem a captar um sentido profundo. “Trata-se”, afirma o historiador Claude Dubois (1933), “de um universo-partitura, (…) um universo-livro, de um universo-palavra ou, ainda de um universo-espetáculo, vertentes que abarcam, dentro de si, uma relação fundamental da natureza como o sagrado”165. A ideia de um universo-música ou de universo-partitura, com a sua ressonância pitagórica, permitiria sublinhar, de forma cabal, uma perfeita aliança de contrários e a consequente proporcionalidade. Já a figura do universo- espetáculo, que no barroco se enriquecerá com uma profícua série de metáforas teatrais,

163 FRANCESCHI, Heredi di Francesco de (Int.) – Sebastiano Serlio, l'Opera d'Architettvra, et Prospetiva...1600. livro VII, capítulo XXV, Oviedo: Colegio Oficial de Aparejadores y Arquitectos Tecnicos de Asturias, 1986, p.58: obra citada por DUARTE, Eduardo - De França à Baixa, com passagem por Mafra. As influências francesas na

arquitectura civil pombalina. Monumentos. DGEMN, n.º 21, (2004), pp. 76-87.

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A presença do tratado de Serlio - Regole Generali de Architettura - trazida na bagagem de Francisco de Holanda, despertaria em Portugal um precoce interesse pela obra deste autor, num período quase contemporâneo à sua primeira publicação em Veneza (1537). O uso de planos simples oblíquos como metodologia elementar de transição formal é um interessante recurso - fundamental na engenharia militar nos baluartes e troços de muralhas - recorrente poético na arquitectura de carácter civil visível no embasamento em quebra-mar do torreão construído por Filipe Terzi, em 1581, no Paço da Ribeira, em Lisboa. Deste derivaram formalmente os dois torreões da fachada de Mafra, ainda com a mesma obliquidade na transição com o solo que Serlio, no Livro VII (1557), aplica num exemplo edificado, de expressão italiana. Estas composições piramidizantes sugerem geometrias tridimensionais autónomas, onde o vértice imaginado serve de remate ao volume, sem existir a necessidade do formalismo de uma cobertura de remate.

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DUBOIS, Claude-Gilbert – L’Imaginaire de la Renaissence. Paris. P.U.F. Escriture, 1985. p. 75. "Il s'agit d'un univers-partition, (...) un univers-livre, un univers-mot ou même un univers-spectacle, couvrant les aspects en lui-même une relation fondamentale de la nature comme sacrée".

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abre o espaço necessário para um importante aspeto desta época moderna, o do deleite como sentimento caraterístico do espetador, por relação ao que lhe é representado166.

O jardim renascentista é, de facto, a aspiração a uma natureza, de recolhimento no seio dos elementos da paisagem, contudo os seus traçados distinguem-no claramente daquilo que ele toca, apenas ao de leve: a paisagem está fora dos seus desígnios. Oferece, todavia, um paradoxo ao seguir um modelo da paisagem utópica pela influência da literatura que comunica - sob a forma da écloga, das bucólicas ou da ode - os elementos constituintes do espaço natural ideal: a árvore, a gruta, a nascente, o prado, os seres e os utensílios que lhe completam o léxico.

Se cabe a Petrarca o mérito pela difusão do olhar arcádico, o protótipo renascentista deste entendimento da paisagem pastoral, profundamente suavizada, deve-se à obra de Jacopo Sannazaro (1458-1530), publicada, pela primeira vez em Veneza, no ano de 1519. A Arcádia167 - ou o Libro pastorale nominato Arcadio (1484-1504) - é a primeira grande obra da modernidade centrada sobre este assunto; título que, sintomaticamente, coloca em pé de igualdade o mundo dos pastores e o universo das letras.

Tal foi o interesse suscitado pela leitura das suas múltiplas edições que transformou a ficção narrativa pastoral e o lirismo bucólico numa prática poética generalizada em todo o continente europeu. As dimensões da receção deste género, em Portugal, são comprovadas pela importante produção literária anterior ao Romantismo, de que são expoentes os poetas Sá de Miranda (1481-1558), Bernardim Ribeiro (1482-1505), Luís de Camões (1524-80), Diogo Bernardes (1530-1605) e Fernão Álvares do Oriente (~1540- 1600)168.

A Arcádia poética de Sannazaro reciclava os temas de Virgílio e revelava-se apelativa ao gosto da época pela introdução de um cenário mais expressivo expondo emoções sombrias, através do exílio de paisagens de abundância. Nela existiam precipícios, cascatas ocasionais e uma montanha erguia-se, na qual ciprestes gigantes e pinheiros cresciam. Lá encontrava-se, igualmente, a paisagem erótica presente no corpo da ninfa Amaranta, em cujos seios um caminho descreve um percurso que desce na direção de grutas sombrias. Assim, quando os nus deitados surgem nas pastorais de Ticiano (~1488-1576), Giorgione (1477-1510) e Domenico Campagnola (1500-64), as

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CALAFATE, Pedro – A Ideia da Natureza no século XVIII em Portugal. 1ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994. p. 36.

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SANNAZARO, Jacopo - Arcádie. Gérard Marino (Trad.), Yves Bonnefoy (Pref.), Paris: Les Belles Lettres, 2004. 168

MARNOTO, Rita - A Arcádia de Sannazaro e o bucolismo. Aníbal Pinto de Castro (Pref.), Coimbra: Gabinete de Publicações da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1996, p. 7.

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