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89Poder-se-á afirmar, usando a terminologia tão inédita quanto apropriada de Roland

PARTE I | Do Significado da Arcádia

89Poder-se-á afirmar, usando a terminologia tão inédita quanto apropriada de Roland

Barthes192, que o “Spectrum” (o referente fotográfico) encontra-se condicionado pela própria construção mental da paisagem idealizada do “Operator”, interferindo, deste modo, na capacidade de ver a fotografia na sua totalidade. Já na perspetiva do “Spectator”, sem a mediação da vivência do lugar, o “Studium” resultante permitirá estabelecer uma eventual relação direta e imediata com a foto que metamorfoseia o espaço natural em objeto. É interessante notar que, tal como na perceção arcadiana em que o sujeito associa a leitura do espaço à presença da Morte e, consequentemente, à sua finitude, também Roland Barthes estabelece uma emotiva analogia entre a Fotografia e a Morte.

Mesmo no campo do património industrial, cuja perceção nos poderia levar a acreditar, estar longe do Romantismo, é um caso de particularização. Por menos românticos que estes sítios sejam, o mesmo processo de seleção dos pontos de vista, uma interação na atribuição de valores formais e uma necessidade de preservação de ambientes profundamente referenciados a um estado de espírito do romantismo.

Esta condição é ilustrada pelas grandes estruturas fabris que, após anos de abandono, foram reabilitadas para espaço de museu e de exposições. As suas fornalhas agora musealizadas, tornaram-se, pelo uso de vários tipos de iluminação, plenas de referências fumegantes de brasas incandescentes, soltando labaredas, a abarrotar de metais incandescentes, prestes a explodir a acreditar no seu atual estado precário. Ora estas visões, nada mais são do que o sublime definido, por Edmund Burke, em 1757.193

Por outro lado a alusão à Arcádia encontra-se presente nas mais variadas vertentes da intervenção na paisagem no Romantismo. Contudo o imperativo de a materializar construtivamente atenua-se significativamente. Agora a contemplação da paisagem onde o registo da humanização se mostra ausente (ainda que apenas na aparência), passa a ser fundamental.

A descoberta da primordialidade e do espetáculo efémero, oferecido pela natureza indomada, convida à deambulação pela paisagem. Trata-se de uma viagem de fuga ao

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Roland Barthes (1915-89) torna claro o seu processo de descoberta, designando como “Operator” o fotógrafo; “Spectator” aquele que vê a imagem; “Spectrum” o referente fotográfico; “Studium” para o despertar de interesse ou indiferença; reconhece, por fim, o “Punctum” onde, casualmente existe uma sensação específica, a ferida, o choque, o pormenor que estabelece uma relação direta e imediata com quem vê a imagem. A sua obra revela a foto como um objeto no qual se pode encontrar um instante de vida que nos remete para um lugar entre o passado e o presente. O ato fotográfico como a materialização da morte - cujo mote é o próprio luto pela sua mãe recentemente falecida. BARTHES, Roland - A Camera Clara. Lisboa: Edições 70, 2005.

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BURKE, Edmund - A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful. 1ª ed., [S.I.]: [s.n.], 1757.

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Fig. 35 – Proposta para Tatton Park antes e depois, Cheshire, 1792, H. Repton. urbano, cujos espaços se encontram em exponencial crescimento com o início da era industrial e, sobretudo, com a cidade pós-liberal. Em última instância, é uma fuga impelida pela busca do Sítio ideal. Esta meta prefigura-se, porém, inatingível e o sujeito permanece na condição de viajante, colecionando as suas descobertas: imagens da sua passagem de apelo ao sublime ou ao exótico, mas igualmente de conhecimento interior.

Neste processo de busca pela paisagem, a ideia da Arcádia é ubíqua, está constantemente implícita, mas permanece longínqua, fora do domínio humanizador da temporalidade e, raramente, objeto da intervenção como espaço vivencial.

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1.5.7. O Fim da Paisagem? Flâneur

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no Moderno ao Pós-Moderno

O posicionamento modernista de rutura radical com todas as linguagens anteriores, criou uma matriz ética de oposição ao clássico e ao tradicional que ainda exerce influência na presente intervenção na paisagem. Deste modo, o ciclo de materialização da Arcádia, em crescente escalada desde os desertos medievais, cessou definitivamente na primeira década do séc. XX.

Um ato inédito de consagração simbólica da paisagem, afirmado pela determinação estética de compreender o território humanizado, surge no fim do séc. XIX, inícios do séc. XX. Essa experiência ocorre, mesmo enquanto ato de negação da própria arte.

O Movimento Dada deixará esse legado, de negação, ao propor as suas visitas/excursões a Paris, em 1921, essa constantemente evocada cidade onde frequentemente vagueara o Flâneur. Contemporaneamente, Walter Benjamin (1892- 1940) associa a cidade percorrida por esse mesmo flâneur à experiência mítica do labirinto que se transforma, encerrando os opostos dialéticos de ser uma paisagem e ser também, simultaneamente, a sua própria casa195. É também ele que explica que na cidade não é a orientação que interessa, mas sim o saber perder-se, que exige aprendizagem para que aqui mesmo, neste ambiente comum, isso possa ocorrer naturalmente, tal como poderia acontecer num bosque. Poeticamente, ele compara os sinais físicos dessa cidade aos ruídos e outras sensações experimentadas na natureza, como a intensidade da luz ou do vento, ou ainda a ondulação do solo.196 Mas, sentir esta cidade de flânerie exige empenhamento e dedicação, e será essa a única partilha entre o flâneur e os artistas Dada. Este ready-made urbano, nunca proclamado, sucedia assim ao objeto ready-made, e

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Usa-se, na presente tese, a expressão “Flâneur” no sentido do perambular sem destino, mas crítico. Este termo surge em França - entre os anos de 1800 e 1850 - como desígnio de uma nova experiência urbana, proporcionada pelo crescimento acelerado das grandes metrópoles. A figura do flâneur é retomada por Walter Benjamin da obra literária de Baudelaire e Allan Poe; observando, vagueando incógnito pelas ruas, galerias, cafés e no meio das multidões que habitam os espaços públicos da capital francesa e inglesa, mas, apesar de tudo, solitário. O estar no “centro do mundo” e, simultaneamente, refugiado deste, permite entender parte do contexto urbano no qual se desenvolveu a flânerie. 195

CARERI, Francesco – Walkscapes, Walking as an aesthetic practice. Barcelona: GG Land&Scape, 2003, p.72. 196

BENJAMIN, Walter - The Arcades Project. Howard Eiland ; Kevin McLaughlin (Trad.), New York: Belknap Press, 2002. pp, 365-807.

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também ao ready-made arquitetónico que, por sua vez, Marcel Duchamp concebera e proclamara em 1917.197

João Cardielos (1963), no seu texto de tese acerca da Arquitetura da Paisagem, descreve expressivamente este posicionamento artístico da primeira década do séc. XX, no seguinte forma:

“A visita/excursão leva-os ao campo. Cumpre-se mais uma etapa desta crescente apropriação territorial e o registo consagra um lugar onde, no fim, nada restará para além da memória e dos registos literários que ela vai permitir. Como se o vazio e desabitado bosque permitisse uma superação do real, e a ultrapassagem dos limites da experiência do tempo da vida real, ao encontro de um passado primitivo e refundador. A deambulação será o instrumento para a imersão psicológica no inconsciente do território.”198

Este sentimento “flaneuriano”, de que Baudelaire199 foi o precursor, reflete o crescimento exponencial das cidades pós-industriais e do permanecer incógnito, dissolvido no movimento ondulante desse viver coletivo, o ter suspensa a identidade individual, substituída pela condição de habitante de um grande aglomerado urbano. A flânerie, boémia por vocação artística, obtém a fuga dentro da multidão. Mesmo assim, corresponde à experiência de solidão, vista como refúgio e abrigo (tal como na vivência da paisagem utópica), paradigma natural/artificial na cidade.

O reflexo deste sentimento faz-se notar em Portugal com Fernando Pessoa, sobretudo através, do seu heterônimo Álvaro de Campos; poeta futurista que vivencia o processo de industrialização e despreza viagens em favor de passeios pela cidade. Para Campos, o interesse pelos lugares urbanos deve-se pelo progresso material, é uma paisagem de mistério. Observa, de forma dinâmica, as coisas e as pessoas que passam nas ruas. Sente-se isolado e abandonado na cidade, por isso repele-a200.

Quando, em 1967, Robert Smithson pegou na sua máquina fotográfica e encetou uma viagem por Passaic, sua cidade natal, convertida então num subúrbio deprimente de Nova Jérsia, as imagens e os textos resultantes desse exercício, publicados na revista

Artforum, revelaram a surpresa de uma paisagem ambiguamente fascinante, marcada

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Marcel Duchamp (1887-1968), Fonte, 1917, escultura, porcelana, original perdido. Gesto iconoclasta do urinol invertido, apresentado no Salão da Sociedade Nova-iorquina de artistas independentes, com a assinatura "R. Mutt" - fábrica que produziu o urinol – assinada lateralmente na peça.

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CARDIELOS, João Paulo – Op. cit., p.129. 199

BAUDELEIRE, Charles-Pierre - Le Peintre de la Vie Moderne. [S.I.]: [s.n.], 1859. [Acedido a 29 de Maio de 2012]. Disponível na internet http://baudelaire.litteratura.com/?rub=oeuvre&srub=cri&id=29&s=1#

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Como exemplo do sentimento de flâneur presente em Fernando Pessoa ver o poema Tabacaria (1928) [Acedido a 16 de Novembro de 2012]. Disponível na internet: http://memoriavirtual.net/2003/09/14/tabacaria-fernando-pessoa-2/

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