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147Existem, porém, sítios no meio natural que possuem atributos de expressão social

PARTE II | Do Reconhecimento da Arcádia

147Existem, porém, sítios no meio natural que possuem atributos de expressão social

semelhantes aos espaços públicos urbanos. É exemplo o fenómeno do “passeio de domingo” onde se assiste à variação da afluência de visitantes de acordo com o momento cultural que dita quais são os percursos e sítios que estão na ordem do dia.

O hábito urbano do “passeio de domingo” surgiu de duas vertentes, relacionadas entre si: da tradição profundamente urbana do Passeio público ou do Jardim público e da massificação da ideia do “contacto com a natureza”. Deste hábito resultou a eleição de um conjunto de espaços naturais que percorrê-los significa ver e ser visto; um atributo específico dos espaços públicos urbanos.

Um sítio que representa um exemplo de forte expressão social é o conjunto de falésias que constituem a denominada Boca do Inferno, em Cascais. Mesmo sem o enquadrar na visão romântica de pintores como Cristino da Silva (1828-77), ou evitando abordar os dúbios contornos de cariz místico e de apelo à tragédia deste local de cruzamento entre Fernando Pessoa e o escritor esotérico Aleister Crowley (1875- 1947), trata-se de um lugar no meio natural com inegável capacidade (dir-se-ia urbana) de polarização.

A Boca do Inferno, ponto de encontro das pessoas com a natureza, apresenta zonas para circular e de estar, possui áreas de chegada e de estacionamento com comércio e alguns equipamentos, no entanto, o seu significado primeiro subsiste, se bem que desvirtuado, e que consiste num ponto que permite a contemplação de acordo com uma imagem síntese da interação das forças Mar/Terra.

2.4.2. Miradouros, Observatórios - Observar, Vigiar

Indissociável à ideia do miradouro é o guia, que, no fim de contas, tenta ser uma simulação da capacidade de captura global obtida no alto dum ponto panorâmico. Os guias, deste modo, constituem uma forma de descrição sintética da paisagem, com grandes tradições, uma vez que foram usados desde a Antiguidade para que conjuntos de pessoas percorressem mentalmente lugares distantes. Porém, apenas no século XVIII se confere ao guia a sua condição atual de um complemento seletivo para a contemplação, in

loco, de um conjunto de lugares.

Os guias turísticos e mapas síntese dos sítios possuem a peculiaridade de serem simplificações do espaço. Conduzem o visitante aos pontos instituídos como

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representantes do lugar, eliminando outros, de modo que a disposição destes sejam compatíveis com esquemas de circuitos turísticos e com tempos limitados de visita.

São exemplo os mapas perspetivados das cidades, de onde se destacam os edifícios, tornados notáveis por este tipo de representação. Estes pontos a visitar são apresentados sobressaindo exageradamente da volumetria geral urbana, fora da escala, de modo a fazer crer, a quem os consulta, que constituem marcos na paisagem.

Do mesmo modo, estes guias gráficos, representam os espaços naturais, sintetizando os seus elementos componentes, colocando em evidência, normalmente de acordo com um percurso geral, os pontos de maior carácter polarizador. Os parques naturais apresentam frequentemente representações deste tipo em folhetos descritivos, mapas esquemáticos e guias.

A porção de território formada pela Mata do Buçaco, limitada pelas antigas cercas do convento dos Carmelitas Descalços - descrito anteriormente nesta tese - representa atualmente um espaço natural de forte poder atrativo de conjuntos de pessoas. A clara marcação de todos os seus acessos por portas diferenciadas, a centralidade de um objeto arquitetónico (o palácio do Buçaco) como marca central na paisagem, hierarquicamente superior aos restantes - capelas, unidades conventuais mais pequenas e ermitérios - conferem uma identidade ao lugar de fácil apreensão. A paisagem do Buçaco dispõe de uma lógica de ambientes que se constituem como elementos de orientação e identificação para quem os percorre. Mesmo assim, podemos observar, no mapa síntese [Fig. 67], que, na sua representação, foram intensionalmente empolados apenas os espaços de cariz mais social, limitando a quantidade de elementos intervenientes e mesmo sacrificando a lógica de algumas sequências destes espaços.

Esta dimensão percetual da paisagem acaba por refletir o modo de intervenção no local. Este assenta num conhecimento do espaço que se constitui como uma moeda de duas faces: uma face é o atual comportamento de um grupo de pessoas num Sítio, enquanto a outra face é a imagem mental que dele possuem; como o sentem e que significado lhe conferem296. Esta é a face “escondida” da moeda, mas também a mais rica no sentido em que exprime um conjunto de conceitos que ajudam o arquiteto a visionar o impacto e/ou o futuro uso da sua intervenção, ainda em fase de proposta para esse Sitio.

Frequentemente os prospetos turísticos sugerem um desvio à contemplação do lugar, anunciando o retomar do olhar que propõe antecipadamente ao porvindouro viajante a imagem da ação contemplativa. Solitário ou em grupo, o posicionamento do

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LYNCH, Kevin – Managing the Sense of a Region. Cambridge: Mit Press, Massachusetts Institute of Technology, 1978, pp. 12-44.

149 Figs. 66, 67, 68 – Regent’s Park Panorama, Londres, 1827, D. Burton. Mapa da Mata do Buçaco. Guaritas, Porto Alegre, 2005, E. Tedesco.

sujeito parece ser, unicamente, o elemento relevante: a imagem antecipada não fala senão dele, apesar de ser portadora do nome sintético do destino. Um outro nome, como Hawai,

Stonehenge ou Cataratas de Iguaçu, confere o ponto de vista ideal e confere o seu distanciamento, enquadrando o espaço deste tipo de viajante no arquétipo do não-lugar. Aliás, é o próprio Marc Augé que, na sua definição antropológica dos não-lugares, explica este fenómeno do turista na sobremodernidade, relacionando-o, ironicamente, com o sentimento da experiência do espaço imaginário da Arcádia:

“(…) há espaços em que o individuo se experimenta como espectador sem que a natureza do espetáculo para ele conte realmente. Como se a posição do espectador constituísse o essencial do espetáculo, como se, em última análise, o espectador em posição de espectador fosse para si mesmo o seu próprio espetáculo. (…) O movimento acrescenta à coexistência dos mundos e à experiência combinada do lugar antropológico e do que já não é a experiência particular de uma forma de solidão e, no sentido literal, de uma tomada de posição – a experiência daquele que, perante a paisagem que torna um dever contemplar e que não pode não contemplar, faz pose e tira da consciência dessa atitude um prazer raro e por vezes melancólico.”297

Alguns destes conceitos e sensações, que povoam, muitas vezes de forma intangível, o imaginário coletivo, podem ser analisadas indiretamente em jornais, revistas, guias turísticos, referências aos lugares na literatura local. Estes constituem bases de informação sobre a imagem mental dos sítios da paisagem, apenas superados pelo diálogo direto com grupos de pessoas que nele se encontrem, residentes ou visitantes.

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Figs. 69,70 - Observatório de Pássaros, 2008, E. Tedesco. Miradouro e Rendez-vous Bellevue, 1777, J. Lequeu. Figs. 71, 72 - Ninho Humano, Montenmedio, Espanha, 2001, M. Abramovic. Sun Tunnels, Utah, 1973-76, N. Holt.

Existe porém, uma componente menos evidente, mas permanentemente latente, neste olhar da paisagem centralizado pela ideia do “ver tudo”: trata-se da reflexão acerca do observar e ser observado como metáfora do permanente estado de vigília.

A perceção da paisagem, perante a experiencia altruísta do observatório e a vicissitude precária da guarita (pontos construídos a partir dos quais se opera o entendimento do Sítio) distingue-os do miradouro (sustentado pelo mito da perceção imediata e integral do Sítio). Ambos apelam à participação do espectador no ato de isolar- se e observar em redor, de forma a relacionar-se com o espaço e a conectar-se com os seus elementos intervenientes.

Apesar de constituírem dispositivos que funcionam pelo isolamento do observador, as guaritas de bairro, utilizadas sobretudo nos centros urbanos de países da américa latina, são demarcações que dizem respeito a uma certa coletividade, para mantê-las é preciso uma organização no quarteirão onde estão situadas. Um grupo de moradores mantêm-nas, assim como aos vigias que as habitam, dessa forma, talvez possam ser vistas como vestígios das preocupações territoriais com a segurança coletiva.

Para a artista brasileira Elaine Tedesco (1969) essas cabines precárias, instaladas nas calçadas para garantir a segurança das propriedades privadas, parecem sumarizar as abissais diferenças económicas existentes na sociedade brasileira. Desta reflexão emergiu a ideia de colecionar imagens dessas pequenas estações de vigilância, que contrastavam tão fortemente com a arquitetura das residências que visam proteger. Objetos/caixas/casas

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