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31não muito aborrecido nem demasiado excitante, com uma grande variedade de texturas e

PARTE I | Do Significado da Arcádia

31não muito aborrecido nem demasiado excitante, com uma grande variedade de texturas e

incluindo alguns edifícios, preferencialmente em ruínas, tudo induzindo o desejo de visitar (ou, transpondo para a atualidade, o desejo de fotografar).

A imagem da ruína, enquanto manifestação enigmática de construção do passado, remete para épocas fora da nossa experiência, para uma Idade de Ouro, há muito abandonada, perdida nas origens. Se a ruína, na representação pitoresca, é uma alegoria à origem, ela atua como referência identitária68.

Nunca as ideias ligadas ao Espaço Natural e ao Espaço Artificial estiveram tão intimamente relacionadas como durante o Romantismo, com as intervenções na paisagem transformando-o, de espaço natural, para pitoresco. Nestas intervenções a presença da dicotomia natural/artificial era uma constante, sendo até afirmada pelo modo de representação da proposta, uma vez que esta correspondia, frequentemente, a um desenho da paisagem “natural” pré-existente, seguido de um outro mostrando a transformação de acordo com o “estilo moderno”. Humphry Repton (1752-1818) confiou a este modo de aproximação pictórica a representação da quase totalidade das suas intervenções, enquanto Payne Knight (1750-1824) retrata, em termos de síntese e de crítica, esta forma de intervenção corretiva na paisagem, através de dois desenhos do “antes e depois”.

Etimologicamente, o termo “pitoresco” indica a qualidade daquilo que pode ser objeto pictórico. O seu uso dado por Gilpin, ao associar-se à ideia expressa por Burke, segundo a qual o belo está associado ao polimento, remete para a definição do pitoresco como o que apresenta superfícies irregulares ou contornos ásperos. Já Uvedale Price (1747-1829), na sua obra An Essay on Picturesque, as compared with the Sublime and

Beautiful (1794), caracteriza o pitoresco mediante noções de variedade, complexidade e

irregularidade, definindo claramente a fronteira entre o “pitoresco” e o “sublime”, sendo essenciais a este último a grandeza e o carácter terrível que, por sua vez, faltam ao primeiro69.

Payne Knigth elabora posteriormente uma crítica70 às posições de Price repondo o significado originário do termo “pitoresco”, passando a significar uma categoria que,

garde". The originality of the avant-garde and other modernist myths. Cambridge, Massachussets: MIT, 1996, pp.

163. 68

QUINTAS, Alexandra Ai - A perceção estética da ruína: a presença da ausência. In: ACCIAIUOLI, Margarida (Coord.) Arte & Melancolia. Lisboa: Instituto da Arte/Estudos de Arte Contemporânea, 2011, p. 274.

69

CARCHIA, Gianni ; D’ANGELO, Paolo (Dir.) – Dicionário de Estética. José Jacinto Correia Serra (Trad.). Lisboa: Edições 70, 2009, pp. 278-280.

70

kNIGHT, R., Payne – Analytical Inquiry into the Principles of Taste. 1808; citado por CARCHIA, Gianni ; D’ANGELO, Paolo (Dir.) – Op. cit., p. 280.

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tendencialmente, se pode alargar à beleza visível em geral. De acordo com a interpretação de P. Knigth deixa de existir objetos pitorescos e diferentes modos de os representar pictoricamente, o que promoverá a gradual eliminação da noção de “pitoresco” da cena teórica. Esta noção, atualmente sobrevive essencialmente na linguagem comum, no contexto de espetáculos naturais cuja atração é constituída por uma desordem expressiva, ou, então, por cenas ricas de colorido local: genericamente, pelo que é dotado de uma particular expressividade.

Estas ideias provenientes da segunda metade do séc. XVIII motivaram, em grande parte, as iniciativas, para a salvaguarda dos espaços construídos e naturais, provindo, igualmente daqui o termo Património71 com o significado que lhe é atribuído atualmente. Usamos o vocabulário de Burke e Gilpin quando nos propomos designar espaços naturais de grande valor formal. Textos descritivos de paisagens e guias turísticos ainda descrevem os espaços naturais numa linguagem firmemente enraizada no romantismo de há dois séculos atrás.

Atualmente, na tentativa de reavaliar os espaços institucionais, em si, os artistas buscaram novos lugares, promovendo, por isso, novas manifestações estéticas. O espaço asséptico da galeria, puro e descontaminado, foi substituído pelo espaço impuro e contaminado da vida real.

Quando a Arte deixou o museu em busca de um público maior, tornou, de forma mais incisiva, a presença da arte e do artista. De acordo com Giulio Carlo Argan (1909- 99), no âmbito do urbanismo72, o trabalho in situ do artista contemporâneo implica que analise meticulosamente as condições do lugar (a escala, o usufruidor e a complexidade do contexto) e as experiências visuais que se inscrevem. Logo, o artista ampliou os seus meios e passou, também, a construir incorporando novas fontes de referência como a ciência, a biologia, a construção, a iluminação, a decoração, o som, a moda, o cinema, os computadores, etc. A transição das instalações efémeras para as construções permanentes estabelece aproximação com a arquitetura, principalmente no que se refere ao modo de

71 O conceito atual de “património” corresponde a herança, legado ou propriedade. Palavra originária do latim,

patrimonium significava bens de família e, ainda, pais, país ou pátria. No âmbito do património histórico/cultural há

muito que as preocupações de preservação deixaram de se limitar a obras isoladas e tangíveis tais como quadros, esculturas ou edifícios, para abranger manifestações culturais mesmo intangíveis. É interessante notar que, enquanto nas suas formulações, Burke e Gilpin não manifestaram qualquer obstáculo na abordagem avaliativa tendo por base caracteres imateriais, a atual abordagem classificativa patrimonial encara dificuldades em estabelecer critérios valorativos em bens de diferentes materialidades, devido ao constrangimento em assumir que, no fim de contas, as razões são próximas das enunciadas no séc. XVIII: em ambas o principal valor do objeto é o de fazer emergir no homem a sua identidade; o principal valor de um monumento é o de ser memória da essência da Humanidade. DÉJEANT-PONS, Maguelonne – The European Landscape Convention. Landscape Research. Vol. 32, nº 4 (Outubro, 2006), pp. 363-384.

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Figs. 10, 11 –Jardim do Mundo, Palermo,1790-95, Léon Dufourny. Plano Obus, Argel, 1930-33, Le Corbusier.

conceber o espaço e à sua psicologia de uso. Os limites entre a Arte e a Arquitetura tornam-se difusos na medida que, tanto uma quanto a outra inspira-se na experiência física do sujeito, determinada pela natureza do Sítio.

Em resumo, a ideia de Paisagem não é, ao contrário do normalmente adquirido, uma ideia comum a todos os tempos ou sequer a todas a geografias, isto é, não é comum a todas as culturas. A cultura europeia moderna, só a assumiu nos inícios do séc. XV. A Paisagem é, então, e para o que aqui nos interessa, uma construção cultural, inscrita em realidades temporal e geograficamente específicas, “materialidade, feita de múltiplas materialidades, que sobre uma estrutura genesíaca definida por componentes morfológicas se constrói, (…) é o fenossistema, em perpétuo movimento e em constante transformação, resultante de um conjunto de relações e de contaminações que se gera entre as distintas corporeidades que a constituem”73. Apesar de, depois de seis séculos de existência, a ideia de Paisagem continuar, em grande medida, prisioneira da sua mediatização sobretudo pictórica, a Paisagem não é, apenas, cenário, mas também não é, apenas, suporte: é “vínculo relacional entre topus e locus”74, é a oportunidade - espacial e temporal, estética e ecológica - de habitar.

73

CARAPINHA, Aurora - Paisagem - Vínculo Relacional. In: AFONSO, João (Ed.). IAPXX - Inquérito à Arquitectura do Século XX em Portugal, Lisboa: Ordem dos Arquitectos CDN, 2006, p.65.

74 Ibib.

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1.3. A Arcádia e a Noção de Sítio

1.3.1. A Arcádia

As paisagens utópicas são cultura ainda antes de ser natureza. São construções/constructos75 da imaginação projetada na floresta, água e rocha. Referentes reais que sustentam metáforas, mitos e visões que são parte integrante de um território mais amplo e transversal: a Paisagem.

Arcádia é uma região pobre e seca da Grécia, no Peloponeso; região mítica celebrada na poesia pastoral do Mundo Antigo. O nome deste local provém da personagem mitológica Arcas, filho ilegítimo de Zeus e da ninfa Calisto, a qual, Hera – consorte oficial de Zeus – transformou num urso por ciúmes. Arcas tentou caçar esse urso e Zeus interveio, transformando ambos - mãe e filho – nas constelações, chamadas, Ursa Maior e Ursa Menor.

Na arte e literatura este lugar do imaginário de pureza e ambiente idílico, encontrava-se habitado por uma população, historicamente isolada do resto do mundo, que vivia de acordo com uma proverbial simplicidade, na invariável condição de pastores.

Na sua génese remota, a Arcádia deveria parecer representar uma genealogia bastante diferente da utopia. Porém, o seu carácter idealizado foi sendo construído de forma dinâmica ao longo do desenvolvimento do próprio conceito da Paisagem.

O poeta romano, Ovídio (43 a.C. - 18 d.C), descrevia os arcadianos como “selvagens primitivos”, uma espécie de bestas que ignoravam a arte, enquanto Políbio (203-120 a.C.), o mais famoso filho da Arcádia, relatou-a como “pobre, nua, pedregosa, fria, desprovida de todas as amenidades da vida e podendo dificilmente sustentar umas tantas e magras cabras”76. Por aqui se vê a discrepância entre a visão idealizada de Virgílio (70-19 a.C.) e a verdadeira Arcádia, rude e severa, descrita por Ovídio e Políbio, mais próxima da tragédia do que do idílio. Na verdade o que Virgílio fez foi criar um

75

Utiliza-se aqui o termo “Constructo” no sentido dado por George Kelly (“personal construct” no texto original), pela formulação central de que as pessoas são sempre capazes de se reinventar a si mesmas: KELLY, G.A. - The

Psychology of Personal Construct. New York: Norton, 1955.

76

ALVES, Manuel Valente - Et in Arcadia ego, Revista Colóquio Artes. Lisboa, nº 108, (Janeiro/Março, 1996), pp. 17-22.

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