• Nenhum resultado encontrado

41Deteta-se, porém, na tese da extinção do Sítio e da dissociação do Locus do

PARTE I | Do Significado da Arcádia

41Deteta-se, porém, na tese da extinção do Sítio e da dissociação do Locus do

Espaço/Escala de Thierry de Duve, uma visão aporética que reflete a prática da concepção/intervenção artística, mas não opera na sua produção. Para este teórico da arte contemporânea, a presente sociedade laica não possui mais o poder de sacralizar os Sítios onde a população se reúne.

“Já não somos uma sociedade artesanal, longe desta, tão longínqua que prevemos a sociedade pós- industrial. Os artefactos que nos servem de referência são indiferentes ao «sítio» da sua produção e, mesmo, ao local de consumo. Apenas conta o fosso económico entre os dois, o lucro máximo é obtido quando as coisas são produzidas em Bangkok ou em Seoul e consumidas em Paris ou Nova Iorque”.97

Esta interpretação parte, contudo, de um pressuposto que se crê impreciso pois a noção do Sítio é indissociável do lugar; não desaparece, apenas transforma-se. A estratégia da modernidade no sacrifício do espaço e da escala, identificado por Thierry de Duve, é claramente detetável na vivência quotidiana dos espaços urbanos, fragmentados, com descontinuidades e onde a preservação dos cânones da escala humana é impossível. Porém, longe da retórica de Thierry de Duve, na prática da intervenção na paisagem o sacrifício do Sítio nunca foi, verdadeiramente, uma opção.

Assinala-se um ponto comum nos vários pensamentos abordadas que se concretiza pela produção da obra ser determinada pelo espírito do lugar. Podemos, deste modo, falar numa quase personalidade, atribuível ao Sítio, à imagem do homem, que o particulariza num ser específico e inconfundível, em suma; um Genius Loci.

O Genius Loci – o espírito do lugar – é uma concepção romana proveniente da antiga crença que cada ser possui seu genius; o seu espírito guardião. Estes espíritos dão vida aos grupos humanos e aos locais que o ocupam acompanhando-os desde a nascença até à morte. São responsáveis pela sua identidade coletiva e determinam o seu carácter. Mesmo os deuses possuíam os seus genius e estavam inevitavelmente ligados a certos lugares na paisagem. Na Antiguidade, pactuar com os genius da localidade onde se pretendia viver era considerado de importância vital.

Este modo de perceção dos sítios tem uma dimensão estética que o torna intemporal. Héléne Colbère reafirmou o termo “espírito” referindo-se à substancia imaterial das obras de arte98. Estas obras, segundo Colbère, só se convertem em objetos

97

Ibid., p. 89. “Nous n'en sommes plus à l’a société artisanale, loin de là, si loin qu'on nous prédit déjà la société postindustrielle. Les artefacts qui nous donnent la mesure sont aussi indifférents au «site» de leur production qu'à celui de leur consommation. Seul compte l'écart économique entre les deux, le profit maximal étant obtenu quand les choses sont produites à Bangkok ou à Séoul et consommées à Paris ou à New York.“

98

42

estéticos no momento em que nos revele outras significações. A atribuição de um valor estético a um Sítio, confere-lhe uma carga intrínseca de significações que o converte em “Objeto Vivo”99

.

A determinação do carácter dum lugar na concepção na paisagem é indiscutivelmente uma construção mental definida pelos seus constituintes cultural, material e formal. Esta surge na sequência a questões decorrentes da própria vivência desse espaço, tais como: como é esta terra sobre a qual caminhamos? Como é o céu que cobre este sítio? Como são as fronteiras que delimitam o sítio? E, sobretudo, qual é o significado do conjunto das sensações que nos dão a identidade do sítio? O Genius Loci, como dado revelador da maneira como as coisas são, fornece-nos uma base para a pesquisa dos fenómenos concretos da nossa vida quotidiana. A reflexão sobre o carácter revela-nos o modo como é possível captar o Espírito do Lugar. Aquele que os antigos reconheciam como o “oposto” com o qual o homem tem de transgredir para adquirir a possibilidade de habitar100.

O sentimento, mesmo que vago, de pertencermos a um Sítio assenta no conhecimento dos fenómenos deste espaço, através de um intenso significado cultural, que o faz ultrapassar o estatuto de Paisagem e transforma-o em Sítio.

É pois, enorme a importância da Identificação e da Orientação dentro do espaço natural, uma vez que constituem as condições primordiais para estar no mundo. A identificação está na base do sentimento humano da integração, de pertencer a um lugar. Enquanto, a orientação é a função que permite ao homem se aperceber da forma desse lugar. Destas duas condições primeiras do conhecimento do sítio fala-nos Kevin Lynch, referindo-se ao meio urbano, quando afirma que “uma imagem viável requer, em primeiro lugar, a identificação de um objeto, o que implica a sua distinção de outras coisas, o seu reconhecimento como uma entidade separável”101.

Apesar da importância significativa da orientação, é a identificação com o ambiente que dá origem ao habitar. Podemos orientarmo-nos num espaço sem termos que nos identificar com ele e identificarmo-nos com um lugar sem termos o completo conhecimento da sua estrutura. As duas vivências em simultâneo permitem-nos a reconhecimento e interpretação do carácter que fazem o Sítio habitado; assumimos,

99

JORGE, Virgolino - A Obra de Arte e o Objecto Estético, perspectivas duma reflexão. Lisboa: [s.n.], 1980, p. 21. 100

NORBERG-SCHULZ, Christian - Genius Loci - Paysage, Ambiance, Architecture. 2ª ed. Liège, Bruxelles: Pierre Mardaga Editeur, 1981, p. 11.

101

43 Figs. 12, 13, 14 – Et in Arcadia ego, 1618, Giovanni Guercino. Pastores da Acádia, 1620-29, e Pastores da Arcádia, 1638-40, N. Poussin.

perante ele, um certo sentido de pertença reforçada pela compreensão que temos do espaço para além deste.

Só após adquirir condições de orientação e identificação, o homem, se encontra apto a descortinar o Genius Loci do espaço que ocupa. A esta capacidade, que o meio possui de transmitir significados ao observador, Lynch chama de Imaginabilidade102. De todas as condições que determinam a essência de um Sítio, a Dimensão Temporal é aquela que melhor o identifica, de uma maneira singular. Logo, a noção de um Sítio pressupõe uma sujeição, do seu carácter, à ação temporal, surgindo assim como realidade mutante.

Inevitavelmente, a noção de tempo relaciona-se com o conceito de História e com as próprias ideias de passado, presente e futuro. É neste sentido que interessa estudar também a sua relação com a arquitetura.

Esta relação resulta da indivisibilidade da estrutura construída, da invariante geomorfológica da paisagem. O artificial e o natural estão interligados e a articulação das marcas, deixadas por ambas as estruturas, afirma-se como algo que permanece e que resiste às transformações.

102

44

1.4. Os Sítios Sagrados

O conjunto escultórico de Constantin Brancusi (1876-1957) para o memorial de guerra, concebido em 1935/38, na cidade romena de Targu Jiu, teve como base um programa de carácter arquitetónico projetado ao longo de um percurso que se inicia no rio Jiu, parando na Mesa do Silêncio [Fig. 15], continuando ao longo da Alameda de

Assentos, através do Arco do Beijo [Fig. 16], descendo a Calea Eroilor – Avenida dos

Heróis – para atingir, na colina, a Coluna Sem Fim que sobe para o céu [Fig. 17].

Para Brancusi a perceção dinâmica do lugar é dada pelo percurso dos heróis a atravessar um rio para a terra dos mortos, onde os assentos de velório aguardam em silêncio o casamento celestial e renascimento da alma eterna do herói; vida nova abençoada pelo ritual de oferendas no altar sacrificial, como no funeral Ortodoxo Romeno, onde a coluna é um áxis mundi que sustenta a conexão entre os níveis da terra e do céu.103

De facto, também existe em Brancusi, apesar de toda a sua postura modernista, um ato primordial de criar marcas na paisagem, afirmando a sacralidade do Sítio, tal como o fizeram os povos primitivos. À semelhança destes, a intervenção na paisagem de Brancusi corresponde ao ato de fundação do espaço ou à recriação de um Cosmos. É, neste sentido, que a fundação de uma construção adquire o valor primordial do ato da criação, estabelecendo o limite entre o diferenciado e o indiferenciado, vincando o corte entre o Cosmos e o Caos; tornando-se real apenas após o ritual que repete a Criação do Mundo.

A esmagadora maioria das cosmogonias arcaicas dão particular ênfase na origem das coisas concretas e no relacionamento com as forças naturais. A perceção dum relacionamento intenso entre dois elementos fundamentais do espaço natural – o céu e a terra – determinou uma diferenciação ulterior das coisas concretas. Consequentemente, a Montanha (embora sendo pertencente à terra, eleva-se na direção do céu) situa-se mais próxima do firmamento e, deste modo, constitui um ponto de encontro e de fusão dos dois elementos primeiros. Todo e qualquer espaço sagrado, montanha, templo, cidade ou residência real104, é uma “montanha sagrada”, ou seja, ponto de encontro entre as regiões

103

BOGDAN-MATEESCU, Catalina - Brancusi Targu Jiu Monument: An Interpretation. Bucharest: The Publishing House of the Romanian Cultural Foundation, 1995, pp. 5-9.

104

Refere-se à morada do Rei-Deus onde o rei é uma entidade divina, pelo que o palácio real é, simultaneamente, lugar de culto e homenagem.

45

Outline

Documentos relacionados