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155normalmente exagerada de modo a obter uma maior profundidade à perspetiva Nestas

PARTE II | Do Reconhecimento da Arcádia

155normalmente exagerada de modo a obter uma maior profundidade à perspetiva Nestas

pinturas o observador é colocado numa posição de comando; ele domina a paisagem e a sua contemplação é dirigida de imediato para o horizonte, daqui regressa, lentamente, para o primeiro plano, permitindo-lhe observar à sua vontade as várias partes, as quais já se tinha apercebido desde o primeiro relance306.

Esta descrição da composição das paisagens ideais de Lorrain acaba por ser aplicável, no seu essencial, às representações dos seus contemporâneos Poussin e Rosa, permanecendo um modelo reconhecível, enquanto espaço onde se relacionam o objeto arquitetónico com o suporte físico.

O próprio Lorrain usou esta estrutura compositiva, quase como praxis tipológica da poética pastoral, onde o sombreado do primeiro plano é caracterizado pela vegetação pormenorizadamente reproduzida, seguido pelo segundo plano onde se localizam as figuras principais ladeadas por altas árvores que emolduram o ponto fulcral, num recurso tradicionalmente conhecido como repoussoir. Para criar essa espécie de moldura o autor recorreu também construções fortemente geometrizadas, frequentemente em ruínas, ou estruturas intencionalmente não participantes na cena central: os denominados “caprichos” arquitetónicos. No centro da composição surge o lugar central, magnético ao olhar, estruturado por pequenos agrupamentos de árvores e construções antepostas a um panorama enevoado que culmina em montanhas distantes, sob um amplo céu luminoso mas anunciador de alterações inquietantes.

A Paisagem com a ninfa Egéria (1669) [Fig. 73] é exemplar desta visão compositiva, bem como Paisagem com Acis e Galatae (1657) na qual o casal é vigiado pelo gigante Polifemo que se detém num obscuro rochedo erguido sobre a tranquila superfície do mar. Este contraste de claridade e negritude é o reflexo do isolamento, da breve felicidade e da tragédia que ameaça, desde o início, os amantes.

Para além da sobreposição compositiva análoga a Lorrain, a paisagem utópica, altamente disciplinada de Claude Poussin é, também, a narração do assunto histórico, apelo à descoberta das suas alegorias, frequentemente manipuladas, sobretudo, através da paleta cromática. A tríade de cores primárias conclui e reflete o evento; a alegoria do seu tema narrativo é, simultaneamente, a conclusão cromática da pintura. Desta dualidade, a leitura de Poussin ganha um duplo significado: o sentido da pintura “perfeita”, na visão dialética do autor, não é a representação de um acontecimento histórico, mas a sua alegoria.307

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Ibid.

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Figs. 73, 74 - Paisagem com a ninfa Egéria, 1669, Claude Lorrain. Enterro de Fócion, 1648, Nicolas Poussin.

As duas paisagens com Fócion, de 1648, demonstram que é possível abordar imageticamente a noção de Sítio na paisagem cujo carácter é estruturado pela intervenção pontual arquitetónica. No Enterro de Fócion a paisagem revela a saída do lugar ideal, sem regresso, do corpo de Fócion levado para fora de Atenas [Fig. 74]. Uma solenidade serena resulta do uso da luz e sombra na cidade recuada, estruturada em quatro partes e do templo equilibrado, em conjunto com uma cuidada luminosidade, quase material, feita de pó em suspensão no ar. Aqui a analogia exegética é catalisada pelo contraste entre a arquitetura e luz e o triste evento.

Na Paisagem com as cinzas de Fócion a representação da cidade de Megara já não é feita de forma distante, mas próxima, quase participante direta no ponto fulcral. No centro urbano um templo, de ordem coríntia, é desenhado com base nas ilustrações de Palladio (1508-80) do templo em Trevi.308 Este santuário idealizado é iluminado com a luz do pôr-do-sol, contrastando com as massas pesadas do grupo lateral das árvores e da montanha atrás dele. A sua expressão luminosa radica a oposição á sombria recolha das cinzas do general ateniense sentenciado à morte.

Nestas duas telas de Poussin a pintura não é apenas um meio de representar algo mais, mas, igualmente, o objeto de representação. As cores primárias puras demonstram um complemento da pintura; símbolos de reflecção, luto e dissolução da felicidade309, tal como na segunda versão de Pastores da Arcádia, onde o grupo aponta a epígrafe arcadiana juntamente com a débil sombra do pastor debruçado (com dupla leitura).

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Ibid., p. 128. 309

157 Figs. 75, 76 – Polícrates Recebendo o Peixe, 1663, Salvator Rosa. Paisagem com animais - vista de Lisboa …,1859, Cristino da Silva.

luz do pôr-do-sol, contrastando com as massas pesadas do grupo lateral das árvores e da montanha atrás dele. A sua expressão luminosa radica a oposição á sombria recolha das cinzas do general ateniense sentenciado à morte.

Nestas duas telas de Poussin a pintura não é apenas um meio de representar algo mais, mas, igualmente, o objeto de representação. As cores primárias puras demonstram um complemento da pintura; símbolos de reflecção, luto e dissolução da felicidade310, tal como na segunda versão de Pastores da Arcádia, onde o grupo aponta a epígrafe arcadiana juntamente com a débil sombra do pastor debruçado (com dupla leitura).

Salvator Rosa foi, dos três pintores do imaginário arcadiano, aquele cujas morfologias dos elementos constituintes das suas composições se tornariam, mais rapidamente, tipologias generalizadas e quase axiomáticas na visão da paisagem sublime, persistentes ainda hoje.

A natureza das suas pinturas, de qualidade evocativa, frequentemente misteriosa, colocou-as à mercê de uma ampla interpretação verbal, de oportunos comentários de moda e de invenções literárias românticas, assim, por exemplo, uma grande parte das suas paisagens com anónimos figurantes foram transformadas (aos olhos dos seus mais entusiastas seguidores) em paisagens com salteadores – banditti – conspirando ameaçadoras ações, entre terríveis precipícios e vegetação incontida. O próprio nome de Salvator Rosa acabaria por constituir uma espécie de palavra código para as qualidades mais apreciadas pelos românticos dos finais do séc. XVIII e princípios do XIX: sinónimo de sublimidade, terror, grandiosidade, espanto e do agradável horror.

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A Paisagem com Tobias e o Anjo (1660) é particularmente exemplar do seu modo de construção e composição da paisagem ideal. Como nas representações com banditti, esta pintura possui todas as características admiradas pelo romantismo: as expressivas árvores com troncos quebrados, penhascos rochosos, grutas escuras, céus ameaçadores e uma cuidadosa utilização dos efeitos da luz, iluminando de forma distinta os vários planos de composição. É, no entanto, uma imagem menos “selvagem” e “terrível” que as múltiplas releituras literárias ou pictóricas feitas posteriormente e amplamente divulgadas como referentes a Salvator Rosa, sob forma de gravuras.

Esta composição espacial é relativamente contida e equilibrada, as suas formas e massas, construídas ao longo de planos paralelos à superfície da imagem, resultam num efeito de participação pelo observador reforçado pela alternação em profundidade de faixas de luz e sombra paralelas. Apesar desta construção cativante à penetrabilidade e à descoberta, a paisagem de Rosa afasta-se claramente das de Lorrain e Poussin, pela sua manifesta hostilidade, contudo o sentimento geral é o mesmo.

Em Polícrates Recebendo o Peixe (1663) encontra-se um dos temas mais frequentemente usado por Salvator Rosa – a Fortuna – a qual está no centro da lenda de Polícrates; o tirano exaltado pela Fortuna que será, no final, traído por esta, levando-o a uma bárbara morte [Fig. 75]. Adicionando-lhe mais um estrato alegórico, o autor acrescentou uma nota de lúgubre pessimismo na já macabra história de Polícrates, interligando-a com outro dos seus tópicos favoritos: a Vanitas com a Fortuna.

Esta composição, construída sob uma forte diagonal, expõe uma articulação particularmente bem-sucedida de personagens e paisagem. A dicotomia entre o Sítio ideal, simultaneamente protegido e ameaçado, e a inquietude expressa pelos elementos da envolvente, é a adequada para o drama da história. Numa narrativa de ambiência, as figuras humanas do primeiro plano agrupam-se por baixo das árvores quebradas e ameaçadoras, tornando-se complemento das escuras massas rochosas, nas quais parecem- se gradualmente fundir.

De forma direta ou, mais provavelmente, indireta, a influência desta construção compositiva surge em registos, mais tardios, no panorama português, sobretudo na visão paisagística de João Cristino da Silva. Da sua obra, algo inconstante, destaca-se, pela sua composição arcaizante, a Paisagem com animais - vista de Lisboa tirada de entremuros (1859). O modelo estrutural de Lorrain revê-se neste quadro com uma óbvia marcação dos vários planos, alusões expressivas às árvores com troncos quebrados de Salvator Rosa, mas, sobretudo na interessante forma de revelar o Sítio expondo-o como ponto na

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