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37Dos idílios de Teócrito e Virgílio, à écloga Simbolista de Mallarmé85 (1842-98), a

PARTE I | Do Significado da Arcádia

37Dos idílios de Teócrito e Virgílio, à écloga Simbolista de Mallarmé85 (1842-98), a

ambiência pastoril da Arcádia foi-se alterando, até à eliminação, quase por completo, dos diálogos de pastores. Contudo o anseio humano, neles expressos, mantem-se o mesmo, correspondendo invariavelmente a uma evasão.

Será, aliás, interessante notar que a própria perceção de uma paisagem é uma invenção dos citadinos, como fuga aos compromissos da artificialidade urbana. Supõe um distanciamento da cultura e, simultaneamente, um mergulhar nesta, o que o filósofo Alain Roger designa de “uma espécie de recultura”86

Foi, provavelmente, a partir de um quadro de Giovanni Guercino87 (1591-1666), de 1618, representando dois pastores que contemplam a descoberta de um túmulo, encimado por uma caveira, com a inscrição “Et in Arcadia ego” [Fig. 12], que Nicolas Poussin compôs as suas duas pinturas sobre a Arcádia88. Em ambas, três pastores e uma pastora descobrem um sarcófago na Arcádia, onde, à semelhança do túmulo do quadro de Guercino, se pode ler a mesma inscrição. Na primeira versão a estrutura do quadro apoia- se em quatro diagonais - a linha do horizonte, a das árvores, a do túmulo e a do grupo de pastores -, que se intersectam num elemento central - o pastor que aponta a epígrafe [Fig.

13]. É nesta estrutura de ação dividida em quatro tempos89 que Poussin enquadra o processo narrativo e simbólico característico do quadro.

A frase do túmulo - Et in Arcadia ego - descoberto pelos pastores de Poussin, teve uma interpretação desde sempre aceite: “Eu vivi, também, na Arcádia”. As palavras são, assim, tal como em muitas inscrições tumulares, colocadas na boca da personagem morta.

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Stéphane Mallarmé escreveu o poema L’Après-midi d’un faune de 1865 a 1876 (ano de sua publicação) identificando-o com “Écloga” onde recupera para a modernidade (em pleno contexto estético que conhece o auge do movimento simbolista) motivos mitológicos herdados da Antiguidade greco-latina. MALLARMÉ, Stéphane -

L’Après-midi d’un faune. Paris: La Revue Indépendant, 1882. [Acedido a 1 de Junho de 2012]. Disponível na

internet: http://archive.org/details/laprsmididunfau00mallgoog 86

ROGER, Alain - A dupla artialização. In: SERRÃO, Adriana (Coord.), Filosofia da Paisagem. Uma antologia. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, p. 164.

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Giovanni Francesco Barbieri “Guercino” - Et in Arcadia ego, 1618, óleo s/ tela, 82cm x 91cm, Roma, Galleria Borghese.

88

Nicolas Poussin - Pastores da Arcádia (primeiro quadro), 1628-29, óleo s/ tela, 101cm x 82cm, Derbyhire, Chatsworth House. Pastores da Arcádia (segundo quadro), 1638-40, óleo s/ tela, 85cm x 121cm, Paris, Louvre. 89

O pastor que se debruça sobre a inscrição, procurando decifrá-la, é o pico da ação - a maturidade - a partir da qual se inicia o declínio; o declínio é representado pelo pastor que se queda, melancólico, à direita do quadro, vertendo a água contida num vaso; a jovem, que se insinua à esquerda, representa a sensualidade e o amor, o mais primitivo (e iniciático) contacto do ser humano com a ideia da vida (e da morte); à direita da jovem, o pastor, surpreendido com a descoberta, estabelece a ligação entre o primeiro e o terceiro tempo; a caveira sobre o túmulo simboliza, obviamente, a morte.

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O que parece ser um epitáfio desejoso de um idílio pastoral disfrutado e, depois, perdido, um vislumbre melancólico de uma vida ideal.

Erwin Panofsky (1892-1968) manifesta, porém, fortes dúvidas, no seu artigo90, acerca desta inscrição estar relacionada com o pastor (ou pastores), que, tendo vivido nesse lugar ideal, foi aí sepultado. Panofsky constrói sua discussão sobre o motto arcadiano em torno de uma espécie de um puzzle filológico: a quem ou a quê aquele anónimo ego da fórmula literária se refere? Na pintura de Guercino, parece ser a figura alegórica da Morte, simbolizada pelo crânio pousado sobre o seu monumento e assolado por uma mosca e rato, símbolos populares de decadência e do tempo que tudo devora. A mesma atribuição é válida para a primeira pintura de Poussin de 1628-29, onde um crânio simbólico empoleirado na borda superior de um sarcófago, desta vez, de menor dimensão, já não é tanto o rosto da mortalidade.

Para Panofsky o significado ligado, realmente, à inscrição no túmulo seria: Et in

Arcadia (mesmo na Arcádia) ego [sum] (eu estou presente) e, deste modo, é a Morte que

fala. No fim de contas trata-se de um adágio, na sua origem, pertencente a uma longa tradição no género de representações da Vanitas.

Contudo, na segunda versão de Poussin - a que viria a tornar-se canônica – [Fig.

14], a caveira falante da Morte no topo do seu pedestal de alvenaria deteriorada

desaparece como se na própria tumba. Parece entregar o seu discurso à pessoa falecida enterrado nele, a voz personificada de advertência “Não obstante na Arcádia, eu (Morte), estou presente”, é feita pelo defunto arcadiano comunicando do além-túmulo “Eu vivi, também, na Arcádia”. O que tinha sido uma ameaça tornou-se uma lembrança.91 Por conseguinte, a interpretação de Poussin assenta numa tradução incorreta. Mesmo assim este “erro” acaba por definir uma forma simbólica no pensamento europeu do séc. XVII em diante, onde um assumido sentimento elegíaco, no qual a meditação melancólica acerca dum passado perfeito, afigurava-se preferível às admoestações macabras.

A nova leitura de Poussin – silenciando literalmente a Morte – constitui uma reconfiguração consensual da inscrição que supera o significado do sentido original, mas não lhe retira a profundidade, uma vez que a ameaça permanece iminente. Apenas lhe acrescenta novas camadas que conferem uma maior materialidade ao Sítio.

A vivência da paisagem utópica, perante o seu sublime dinâmico, representa o assumir do carácter limitado, a precariedade da vida (nossa e da paisagem), mas também

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PANOFSKY, Erwin – Et in Arcadia ego: Poussin and the Elegiac tradition. Meaning in the Visual Arts. New York (1955), pp. 295-320.

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