• Nenhum resultado encontrado

101desencadeiam uma emoção de esperança num passado, numa origem; atuam como

PARTE I | Do Significado da Arcádia

101desencadeiam uma emoção de esperança num passado, numa origem; atuam como

referência identitária216.

Ao longo dos tempos a concepção da Arcádia, como espaço ideal, destino da fuga ao mundo do compromisso material e da urbanidade, originou uma escalada na materialização da Paisagem Utópica. Este imperativo na concretização destes Sítios vivenciais orientou a construção dos “paraísos medievais” no interior das cercas conventuais, dos Locus Amoenus nos jardins renascentistas, nas composições neoclássicas que estabeleceram o carácter universal ao conceito de Arcádia e nas paisagens do Romantismo, onde a busca do Sítio ideal prefigura-se inatingível, impelindo o viajante para a autodescoberta.

No processo de mutações do entendimento do motto arcadiano Et in Arcadia ego, no qual as duas abordagens de Poussin apresentam-se basilares, é o segundo quadro - mais estático e intemporal - o, talvez, mais conhecido e que mais artistas inspirou nos séculos subsequentes. Paul Cézanne (1839-1906), por exemplo, foi um dos seus mais entusiastas admiradores, tendo até uma reprodução sua pendurada no ateliê de Aix-en- Provence. O significado da frase inscrita permanece reconfigurada no sentido da original – Eu também vivi na Arcádia – potenciando a materialidade (e finitude) da paisagem utópica em detrimento à do sujeito que nela vive. Um ponto mais afastado neste desenvolvimento foi atingido por Fragonard (1732-1806), quando retrata (com a extravagância típica do rococó) as almas de dois amantes falecidos abraçando-se dentro de um sarcófago que explode. Do túmulo aberto irrompe luz, enquanto cupidos esvoaçam entre as nuvens libertadas [Fig. 44].

Fragonard explora a iconografia do tema e, desta vez, o memento mori afirma-se pelo derramar de uma surpreendente esperança espiritual. Parecendo pairar sobre o túmulo, fileiras inclinadas de ciprestes enquadram-no, mas se essa flora evocadora do cemitério, tradicionalmente fúnebre, também refere os cenários de jardins amorosos das alegorias ao amor de Fragonard. Como Panofsky escreve: “O desenvolvimento percorreu o círculo completo. Para Guercino “A Morte existe até na Arcádia”, enquanto o desenho de Fragonard responde: “Mesmo na morte, pode haver Arcádia”217.

A abordagem semântica de Et in Arcadia ego expõe a tomada de consciência da condição humana e da inexorável questão colocada pela mortalidade. É desta experiência existencial, entre imaginário que alimenta o tema arcadiano e a consciência da separação do homem e do cosmos, que nasce o sentimento estético da natureza como paisagem.

216

QUINTAS, Alexandra Ai – Op. cit., p. 274. 217

PANOFSKY, Erwin - Et in Arcadia ego: Poussin and the Elegiac tradition. Meaning in the Visual Arts. New York (1955). p. 320.

102

Figs. 43, 44, 45 – La Villette, 1982, OMA. O Beijo, 1785, H. Fragonard. Et in Arcadia Ego, 2010, N. Kahn e R. Selesnick.

Por outro lado Os Pastores da Arcádia de Poussin são também paradigmas da moderna publicidade, nomeadamente nas situações em que a palavra é utilizada, também, como elemento visual. Em Poussin a palavra é ela própria imagem, imagem da imagem, o que serve, não só para a conotar com outras imagens (como na publicidade), mas para lhe aumentar a densidade poética.

De Guercino, aos gráficos digitais de Nicholas Kahn e Richard Selesnick [Fig. 45], uma mesma frase circula em diferentes contextos, definidos, não só pela ideia do cenário da Arcádia, mas pela ação (ou não) que no cenário decorre. Et in Arcadia ego tanto pode significar, na primeira versão da pintura, que a morte se instalou definitivamente na paisagem utópica, transformando-a num paraíso irremediavelmente perdido, como, mais poética e realisticamente no segundo quadro, que quem ali está sepultado nasceu, viveu e morreu na Arcádia, passando, deste modo, a fazer parte da própria natureza arcadiana, uma natureza também ela humana.

Curiosamente, o contraste, no segundo quadro, entre os pastores seminus e a jovem “ataviada à antiga”, levaria Claude Lévi-Strauss (1908-2009)218

a interpretá-la como representando a Morte (ou o Destino), sob a “aparência lisonjeadora” da figura feminina, uma “irrupção do sobrenatural” na paisagem. Demonstrando a continuidade deste imaginário, Goethe (1749-1832) colocaria a frase “Também eu na Arcádia” como motto acima da sua Viagem à Itália219, tornando o seu significado mais trivial.

218

Ao invés da mudança na interpretação da epígrafe da segunda pintura de Poussin, sugerida por Panofsky (que já não representa um dramático encontro com a Morte, mas uma meditação contemplativa sobre a ideia de mortalidade), Claude Lévi-Strauss sugere ser a estática figura feminina que representa a Morte ou o Destino. Neste sentido, será ela que pronuncia a frase fatídica, facto sugerido pelo jovem pastor do lado direito que se vira para encará-la enquanto aponta a inscrição. LÉVI-STRAUSS, Claude - Regarder, écouter, lire. Paris: Plon, 1993, pp. 4-57.

219

Italienishe Reise; livro baseado nos diários de viagem que Johann Wolfgang von Goethe realizou a Itália durante os anos de 1786-8.

103 Figs. 46, 47, 48 – Et in Arcadia Ego, segundo Poussin, 1984, R.Sanches. Solus Ipse, 1993-95, J. Pinheiro. A ilha da morte, 1883, A. Böcklin.

Um outro exemplo, agora no panorama português, contextualizador da persistência deste tema, é a obra de Rui Sanches (1954), Et in Arcadia Ego, segundo Poussin (1984), escultura que se tornou paradigmática de uma série continuada nos anos subsequentes e que tinha como base a desconstrução de pinturas de autores clássicos e neoclássicos [Fig.

46]. Rui Sanches reincide na sua proposta de confronto ou de “toque” entre estratos

convocando para as três dimensões a imagem, tornada universal, de Poussin. Daqui resultaria a composição com materiais e objetos do quotidiano (caixas de madeira e contraplacado, tubos de ferro galvanizado e panos) para um estudo reinterpretativo sob uma linguagem construtivista220. Para além de sintetizar o tema da morte - assunto omnipresente na agenda da atualidade noticiosa à estética - esta obra funciona sempre sob referência, sob reenvio às fontes históricas e aos estratos visuais da cultura ocidental. Reconhecendo nessas sedimentações a vitalidade simbólica dos planos infinitos do passado que se vão amontoando e cujo reconhecimento só é agenciado no futuro, Rui Sanches olha o imaginário arcadiano, não como algo que teve a sua função numa determinada ideologia passada, mas como ideia atuante ainda hoje, sendo recriadas pelas obras do presente. A Arcádia ficou parte do vocabulário221.

Também, para o pintor Jorge Pinheiro (1931), foi, exatamente, essa tradição da reinterpretação temática através dos instrumentos e dos modelos visuais das diferentes épocas, juntamente com a vontade de continuar a exercer comentários sobre a realidade histórica, cultural e artística que o faz regressar222 definitivamente à figuração pictórica.

220

FARIA, Nuno - Rui Sanches. Retrospectiva. Lisboa: CAMJAP, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 38. 221

Entrevista a Rui Sanches: MELO, Alexandre - Corpos Mutantes. Expresso. (1993), p. 18. Citado por: FARIA, Nuno - Op. cit., p. 30.

222

Jorge Pinheiro tinha vindo a desenvolver, desde meados dos anos 60 e até 1981, uma persistente pesquisa abstrata geométrica. O seu interesse pela geometria continuou a manifestar-se de modo oculto mas obsessivo nos estudos preparatórios das composições, resultando num conjunto de desenhos que, muitas vezes, o artista entende como parte integrante da obra final.

104

Nas composições Porquê (1991-92) e Solus Ipse (1993-95) [Fig. 47], o autor solidifica e equilibra a forte estruturação de matriz neoclássica, através da geometria implícita de suporte. Existe, nestes temas, uma óbvia, quase desesperada, evocação à clássica tradição arcadiana. A simbologia da composição, acompanhada pela das cores primárias, referencia os conceitos rafaelianos de visão enaltecida de ideais intangíveis, tão característica de Poussin.

Em Solus Ipse o tempo presente, como referente do título, e ausente, como presença física no corpo do texto, autonomiza-se relativamente à narrativa de uma existência longínqua; uma arqueologia nostálgica de ícones223 como é o caso de A ilha da morte (1883) do pintor simbolista Arnold Böcklin (1827-1901), que Jorge Pinheiro recria em segundo plano [Fig. 48]. Paisagem dominada por um silêncio metafísico, de referente arcadiano evidenciado pela presença insinuante da mortalidade que é colocada como uma interrogação, em crescendo inquietante.

Esta conturbada natureza arcadiana de Poussin (e de Virgílio, Ovídio ou Teócrito) conduz-nos também a outras questões, como a separação entre o bem e o mal, o limpo e o sujo, a saúde e a doença, a civilização e o primitivismo. Questões que não constituem novidade por si, pois refletem, desde sempre, a trágica condição humana, mas que a celebração atual de não-acontecimentos, como Hiroxima, congela num eterno presente sem devir. Hiroxima é, de facto, um não-acontecimento; uma tragédia imensa, sem sangue e sem dor, feita de cinzas que recobrem indelevelmente toda a superfície do mundo. É sob esta superfície que acaba por jazer a única ideia com que podemos pensar o ser humano: a humanidade224.

As categorias de ambiguidade e de reflexividade são características fundamentais na discussão sobre a sociedade contemporânea. Neste sentido, será pertinente pensar que a ideia da Arcádia, com os seus constantes estímulos à reflexão metaliterária e com a pluralidade dos significados que veicula, possa responder aos nossos recônditos anseios de fuga ao compromisso urbano, ou, como sugere Rita Marnoto, de “reencontrar a nossa condição de árcades por entre os pseudónimos da pós-modernidade”225.

Em suma, a componente vinculativa do imaginário arcadiano é a sofisticada visão da vida simples levada pela figura do pastor, a qual é mediadora entre os imperativos da

223

JORGE, João Miguel Fernandes - Jorge Pinheiro, Oferenda Esquecida. Porto: Galeria Palmira Suso / Campo das Letras, 2006, p. 8.

224

ALVES, Manuel Valente - Et in Arcadia Ego. Colóquio Artes. Lisboa, nº 108, (Janeiro/Março, 1996), pp. 17-22. 225

105

Outline

Documentos relacionados