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172 DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

172 DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

milho, frutas e outras coisas. Por Umay, passa o caminho a Chocolo- cocha, onde há minas de prata, cidade que se encontra a vinte e seis léguas de Pisco. No cimo desta montanha, a meio do caminho, passa-se por Pauranga, estancia onde há infinitos gados, vacas, ovelhas e éguas, e casas de índios que guardam estes gados; outras estancias há pelo cami- nho. Pisco tem todas as suas adegas na praia do mar, e nelas guardam-se os vinhos que hão-de navegar por mar para outras terras. Por este vale de Conder há casas e adegas muito boas, onde se vive e se guardam os vinhos, e todos aqui são muito ricos.

São seis léguas de Pisco até Chincha, lugar de índios onde há um bom porto de mar. Para aqui trazem de Huancavelica os mercúrios em carneiros, e aqui os embarcam para Arica, e dali levam-nos a Potosí e a outras minas. Os guanacos que transportam os mercúrios até Chincha vão a Pisco e a Ica, são carregados com vinho e com ele tornam à montanha. Em Chincha e por todas as planícies e faldas das montanhas, há grandes edifícios e antigualhas do tempo dos incas, e tantos casarios e lugares desfeitos, que não têm número, todos sem telhados. E vêem-se, por estes caminhos e campos, guacas e enterros de índios, onde se vêem os corpos inteiros com o couro e a carne comida. É coisa certa que, quando os espa- nhóis conquistaram estes índios, eles, com medo, enterravam-se vivos, assim em guacas como nuns paredões muito grossos que faziam, ocos no meio, e ali metiam consigo vestidos de algodão, milho, potes cheios de chicha, que é a sua bebida, e algumas peças de ouro e prata. E cada dia se vão descobrindo e achando estas coisas, e tão frescas e sãs como se naquele dia as houvessem ali metido, já que, como tudo é areia, não tem a terra corrupção, pelo que se conserva tudo quanto nela entra. O ar é muito húmido e dana muitas coisas, em particular as de ferro.

Os índios chamavam ao mar cocha e à espuma vira; e assim chama- ram aos espanhóis viracocha, como se dissessem filhos da espuma do mar, pois que, quando viram gentes tão estranhas, nunca vistas nem imagi- nadas por eles, entenderam que brotavam do mesmo mar e que da sua espuma se haviam criado. E o que mais os atemorizou foi vê-los disparar os arcabuzes, porque entendiam que eram relâmpagos e trovões, e, vendo coisas para eles nunca vistas nem imaginadas, foi fácil vencê-los, e enten- diam que o homem e o cavalo eram tudo uma mesma peça.115 Também

neste tempo foram subjugados os índios do Chile. Todavia, depois que os índios chilenos os conheceram e entenderam as suas coisas, levantaram-

115 O historiador Matthew Restall defende que estas imagens, que aludem à relação

dos espanhóis com o deus Viracocha, à sua vinda por mar ou à confusão criada pelas armas e cavalos trazidos pelos europeus foram intencionalmente transmitidas por crónicas caste- lhanas, com o objectivo de transmitir a ideia de que os índios viam os espanhóis como seres divinos. Por oposição à ingenuidade e crueldade dos indígenas, enfatizaram com estes textos a superioridade dos europeus, tanto na sua capacidade tecnológica como no seu uso da razão. (Seven Myths of the Spanish Conquest, New York, Oxford University Press, 2003).

DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA 173

Cañete

-se contra eles, e vão-lhes fazendo guerra, mantendo-se fortes perante eles e defendendo-se animosamente.

Chincha tem campos muito bons, onde se colhe trigo e milho em abundância, e muitos gados ovinos, dos quais se produz grande cópia de queijos. Daqui vai-se a Cañete, que são nove léguas. Antes de se chegar a Cañete, encontra-se o seu grande e caudaloso rio, que vem da puna de Pariacaca. Pela margem deste rio acima, a quatro léguas de Cañete, há um lindo e alegre vale, que se chama Lunaguana, fértil e abundante em toda a sorte de frutas, que são as melhores que se levam a Lima. As melhores são uvas, romãs e marmelos, estas três frutas são tão boas e de tão deleitoso sabor, que não se pode imaginar outras melhores. Também se colhe aqui um mui primoroso vinho, trigo, milho, batatas, maçãs e todas as frutas da terra. Nunca aqui se sente frio nem calor, alcançam esta parte alguns aguaceiros muito brandos, causados pelo muito que chove na montanha. Há alguns lugares de índios, entre os quais vivem alguns espanhóis. O vale é tudo o que se pode desejar de bom. Volvendo rio abaixo, a caminho de Cañete, há, junto do rio, umas terras baldias, por falta de água, que noutro tempo se cultivaram, o rio quebrou a acéquia de água com que se regavam estas terras e diz-se, como coisa certa, que, se tiveram estas terras água com que se regassem e aproveitassem, eram bastantes para sustentar Lima e outras terras de trigo. Porém, pelo pouco saber e frouxidão desta gente, não se conserta a acéquia.

Cañete é uma vila de espanhóis, que terá trezentos vizinhos, muitos índios e negros, mosteiros, corregidor e tudo o tocante à sua governação. Para que se entenda quão simples são os índios e, por outro lado, quão traidores, contarei o que aqui sucedeu com uns índios. E foi que, indo um mercador desta vila a Lima, deu-lhe o corregidor uma espada, para que ali lha mandasse adereçar. Este mercador levava em sua companhia quatro ou cinco índios. Estes índios mataram-no à traição pelo caminho, enterraram-no na areia e tiraram-lhe os dinheiros que levava e também a espada do corregidor, de tal maneira que ninguém sabia deste feito nem da morte que os índios haviam dado ao mercador. Deu-se, por este tempo, uma festa, e saíram os índios em danças a celebrá-la. E o índio sacou a espada do corregidor e foi dançando com ela nua na mão. Não faltou quem conhecesse a espada e dissesse ao corregidor que, com dar assim sua espada tão estimada a um índio, para que dançasse com ela, a deitaria a perder. O corregidor, para saber a verdade, chamou o índio e perguntou-lhe quem lhe tinha dado aquela espada. Respondeu-lhe, Eu, senhor, sou valente, porque matei o espanhol, fiquei-lhe com a espada e enterrei-o na areia na costa de Asia. Desta sorte confessou, sem tormento, averiguou-se o caso, prenderam os índios e enforcaram-nos a todos cinco onde haviam matado o pobre espanhol. Assim que com os índios não se pode ninguém descuidar, porque são muito traidores, e à traição mataram muitos homens por se fiarem neles.

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