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158 DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA Pedra cansada

DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

158 DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA Pedra cansada

Palácios Peixe que se trazia para o rei Como trabalham todos os índios Templo do sol de Cusco

A fortaleza que os reis em Cusco tinham até hoje durou sem lhe faltar uma pedra99. Está edificada sobre uma montanha muito alta, que domina

toda a cidade, à qual se sobe por uma encosta muito áspera. Tem três muralhas, e, como se eleva o monte, chega a primeira até onde começa a segunda e assim a terceira. E cada uma destas três muralhas não tem mais que três pedras, umas sobre outras, que são tão grandes, que não pode homem nenhum subir, por elas, à alta muralha. Não há dentro dela nenhuma casa. As torres e portas são, cada uma, de uma só pedra, da altura de mais de dez varas castelhanas, estando assentes com tanta subtileza estas pedras, e tão juntas, que se não pode enxergar onde se unem, senão por uma concavidade que nelas fazem, com o que mais formosas e mais fortes as tornam. Acha-se, junto desta fortaleza, uma pedra mui bem talhada e tão grande como uma pequena casa, a que chamam a pedra cansada, porque dizem que os índios a trouxeram desde Quito. É terrível coisa, de grande. Aqui junto da fortaleza, há duas lajes mui grandes e lisas, por onde, por passatempo, resvalam por elas, e, ao pé, jaz uma profunda cova, acerca da qual muitas coisas se contam. Abaixo da fortaleza acham-se os palácios dos incas. Não têm a gentileza de outras obras antigas.

Situa-se a cidade de Arequipa a oitenta léguas de Cusco, a parte por onde o mar lhe fica mais próximo. Dali traziam todos os dias peixe fresco para a despensa do rei. E deste modo o transportavam: todo o caminho estava cheio de índios, que mais não faziam que passá-lo de mão em mão ou de uma corrida. E assim comiam todos os dias peixe fresco trazido do mar. Todos os índios eram obrigados a trabalhar, pelo que ninguém andava ocioso, nem folgando. Faziam os cegos andar com rodas, os velhos catavam pulgas aos outros velhos e aos cegos e tinham de fazer a tarefa dos piolhos, e, se o não fizessem, levavam muitos açoites. Assim andava o reino bem governado, pois que não havia folgazões como os que há agora neste tempo, razão de haver tantos ladrões e tantos perdidos pelo mundo100.

Nesta cidade encontrava-se o templo do sol, tão exalçado e famoso em todo o mundo como uma das maiores grandezas destes reis. Os seus índios tinham ao sol por deus, a quem respeitavam e dirigiam suas súpli- cas, porque não conheciam a primeira causa que criou e move o sol. Este templo é hoje mosteiro de frades da ordem de Santo Domingo. São as suas paredes da altura de uma lança de vinte e cinco palmos, construídas

99 A fortaleza inca mencionada é Sacsayhuamán. Situada no topo de um monte e com

uma vista sobre a cidade, tem uma situação defensiva privilegiada.

100 Várias crónicas da época, como as de Polo de Ondegardo e Cieza de León, referem

a existência de um tributo cobrado em piolhos àqueles que não tinham possibilidade de o pagar. As fontes referem esta medida como tendo um carácter essencialmente disciplinador, embora não se deva colocar de parte a possibilidade de esta ter uma função sanitária.

DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA 159 Corregidor tem 60 pesos por ano Bispo Renda do bispo 20 mil pesos Praças Calle de En Medio Calle de los Plateros Tianges como mercado Igreja maior Rios

com aquelas lindas pedras com que faziam os índios suas obras, as mais lindas e bem lavradas que se pode imaginar. E, entre cada uma destas pedras, nas suas junções, em lugar de cal e areia, há prata fina, de guisa que alguns curiosos ou cobiçosos partem as pedras por alguma parte, pondo a prata a descoberto. É verdade infalível estarem estas paredes alicerçadas sobre prata fina, e tão unidas e tão bem assentadas que se lhes não vê junção nem se pode entender onde se unem, senão por uma pequena concavidade que talharam nelas, por maior galanteria. Sobre tais fundamentos está todo o convento edificado, e são muitas as paredes e repartimentos destas lindas pedras. É este um famoso e rico convento. Por toda a cidade, vêem-se muitas paredes destas bem lavradas pedras.

Habitam na cidade três mil vizinhos espanhóis e dez mil vizinhos índios, achando-se os índios repartidos por quatro paróquias, com seus padres que os doutrinam e ensinam. E têm um hospital muito rico, e todos possuem muitas riquezas. Envia El-Rei a esta cidade, como corre-

gidor, um cavaleiro de grande casa e nome, pois que a cidade é grande e

tem muito que governar e mais ainda que aproveitar. Tem outras justiças, bispo com sua igreja maior e seus cónegos e dignidades. Era este o maior bispado que tinha o Peru, a que tiraram grande parte para dar aos bispos de Guamanga e Arequipa, deixando-os com vinte mil pesos ensaiados de renda. Há nele mosteiros das quatro ordens, poderosos e ricos, mosteiros de monjas, uma rica casa de teatinos, muitas paróquias e hospital de espanhóis.

Tem esta cidade duas amplas praças, entre as quais, passa um pequeno rio a que chamam Guatanay. Em ambas as partes do rio há boas casas, com seus portais, portas e janelas abrindo para as duas praças. E todas estas casas e as praças por baixo dos seus portais têm lojas de diversas mercadorias, e sobre o rio, de uma praça à outra, fica a Calle de En Medio e toda cheia de lojas. Esta Calle de En Medio é muito rica. Um pouco mais acima acha-se Calle de los Plateros, onde se lavram muitas correntes de fino ouro de toda a lei, ricas e grandes, e outras muitas jóias e prata infinita. Esta cidade, depois de Lima, é a melhor e de maior trato em todo o Peru. No meio destas praças existem dois tianges101, onde

sempre assistem índios e índias, vendendo muitas e variadas mercadorias da terra, peças de prata, lindas luvas de seda com ouro para as mulheres, vendem (coca) para os índios e charques e coisas de comer, dos quais a terra é bem provida. Na praça que fica a oriente situam-se a igreja maior, a casa dos teatinos e as dos dominicanos e franciscanos. Passam na cidade outros dois batanays que são rios pequenos, servindo-lhe estes três rios de

101 Termo pré-hispânico de origem mesoamericana derivado da palavra nahuatl tianquiztli. No período colonial passou a denominar os mercados de rua, formados em

praças das localidades mais importantes e onde eram vendidos produtos das povoações dos arredores.

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