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114 DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

114 DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

Lima a doze graus e dois terços a sul. A sua traça e repartimento desta cidade está toda dividida em quarteirões de cento e quarenta passos de homem, cada um. Todos se andam à volta, e em todas as quatro partes têm uma medida e igualdade. Todas as ruas têm uma mesma largura, e todas se encaminham direitas ao campo, sem fazer volta nem esquinas. Estão postas de oriente a ocidente, e de norte a sul. De oriente a ocidente, tem a cidade vinte e dois quarteirões, de norte a sul catorze. Passa um rio muito grande e de muito forte corrente perto da cidade, do lado do norte, e tem uma sólida ponte de pedra, construída em tempo do Marquês de Montes Claros, vice-rei do Peru40. Este rio e esta ponte estão no meio de

Lima, no bairro da cidade que se chama San Lázaro41, que é povoação

somente este bairro ou arrabalde de mais de seiscentas casas, divididas também em quarteirões. Lima tem, a oriente, o cercado dos índios42, que

é povoação de oitocentos vizinhos. Todos estes índios são ricos e ladinos. Por ladinos entende-se que sabem falar espanhol. Chama-se cercado porque tudo em seu torno está vedado por um muro feito de terra, que se fecha de noite com suas portas. Todos estes índios têm jardins dentro de suas casas, com água que corre do rio. Dentro deste cercado, os padres jesuítas, que doutrinam e ensinam os índios, têm uma rica e boa casa e igreja. Este cercado é um lugar de índios, que se divide da cidade. Tem seu corregidor; e deste corregimiento são todos os lugares de índios que se encontram na comarca de Lima, conforme iremos referindo nesta história.

Na Chancelaria ou Audiência Real de Lima assistem, pelo menos, oito oidores, quatro alcaldes de corte, dois fiscais, um do crime, outro do civil, secretários, relatores e todos os mais ofícios convenientes. O vice-rei preside aos negócios mais importantes. Há um secretário de governo com quem o vice-rei despacha todos os cargos e ofícios que provê. O vice-rei tem dois secretários que ele mesmo nomeia, cujo ofício dura o tempo

40 Juan de Mendonza y Luna (1571-1628) foi o 3.º Marquês de Montes Claros. Foi

vice-rei da Nova Espanha entre 1603 e 1607, ano em que foi nomeado vice-rei do Peru, cargo que ocupou até 1615. É habitualmente associado às obras e alterações urbanísticas que promoveu em Lima, das quais a referida ponte de pedra é um exemplo. Alguma histo- riografia tem ainda enfatizado a ideia de que este teria combatido e denunciado a excessiva riqueza das ordens religiosas na região.

41 Inicialmente a área que se veio a denominar bairro de San Lazaro era ocupada por

um grupo de índios yunga dedicados à pesca. Em 1563, um grupo de escravos com lepra foi enviado para esta zona, criando-se então a paróquia de San Lazaro. Este acabou por se tornar um bairro de população negra, índia e mestiça, apesar das tentativas de transferir os índios para o cercado de Lima.

42 O cercado era uma reducción de indios situada nos arredores da cidade de Lima

onde se agrupou a população indígena dispersa. Criada em 1571, esta tinha, tal como as restantes, o intuito de, por um lado, proteger e evangelizar e, por outro, controlar e evitar sublevações e outro tipo de contestação por parte da população nativa, de que são exemplo os conflitos verificados em San Lazaro. O autor faz ainda menção à presença de jesuítas, situação que reflecte a prática recorrente de atribuir a uma ordem religiosa a responsabili- dade pela doutrinação nas reducciónes e pueblos de indios, neste caso à Companhia de Jesus.

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Artilharia

Casa de Armas

do mandado do vice-rei que os nomeia, pois que cada um que entra no governo do reino nomeia secretários novos. Com eles despacha todos os seus negócios. Um dos secretários é da Província Inferior, que é a de Quito, e o outro da Província Superior, que é a das Charcas.

No centro de Lima está a sua Praça Maior. Nesta praça, fica o palá- cio, que está do lado sul, e, do lado do norte do palácio, passa o rio. Nestes palácios, que são muito bons, vive o vice-rei, tem dois pátios grandes. Num deles, que fica a oriente, estão todas as salas e tribunais onde se despacham os pleitos e se consultam todas as coisas e se julgam todas as causas, assim criminais como cíveis. Aqui têm os oidores e alcal-

des de corte suas salas e tribunais, onde presidem. Aqui estão os tesou-

reiros e contadores e o Tribunal do Consulado de Mercadores. Aqui têm seus escritórios todos os secretários destes ofícios de palácio. Todas estas salas comunicam com a praça. No pátio a ocidente encontram-se as caixas reais, onde entra o ouro e a prata de El-Rei43. Pelo outro lado, que

comunica com estas caixas reais, está a capela do palácio, onde dizem missa ao vice-rei e demais senhores. Sobre a capela e caixas reais há um passadiço por onde passa o vice-rei às salas e tribunais que comunicam com a praça. Neste pátio a ocidente há umas escadas muito largas, por onde se sobe ao quarto do vice-rei e da vice-rainha. Aqui tem o vice-rei sua guarda, que são trinta alabardeiros, e sempre aqui tem algumas peças de artilharia e alguns pedreiros. Defronte das caixas reais há uma porta, a ocidente, por onde se entra neste pátio. Nesta esquina do palácio, que dá para a praça e corresponde com as Casas del Cabildo44, nesta esquina está

a Casa de Armas, que ali se têm para armar as gentes da cidade quando seja mister tomar armas, e há toda a sorte de armas. Desta Casa de Armas e esquina da praça sai uma rua, que não tem de comprimento mais de um quarteirão, direita ao rio e à ponte. Em meio do palácio há um jardim. Por detrás do palácio, da parte do rio, estão casas de criados do vice-rei. E, na

43 As Caixas Reais recolhiam o dinheiro proveniente de impostos e outras contri-

buições económicas na sua jurisdição. No início do século XVII existiam no Peru dezanove

Caixas Reais. Exceptuando a parte correspondente ao Rei, a restante (a maior parte no

século XVII) custeava a manutenção do império. Para além de fortemente guardadas, estas

tinham ainda a particularidade de ter de ser abertas por mais do que uma chave, variando o número de chaves de local para local (em Lima e Potosi eram três e nas restantes cidades do vice-reino apenas duas).

44 O cabildo era o órgão local de governo dos municípios, cuja implantação na América

hispânica seguiu, em grande medida, o modelo castelhano. Apesar de, no plano teórico, o mesmo ser entendido como o representante da comunidade, o mesmo não significa que este tivesse efectivamente um carácter «popular». A historiografia tem alertado para a forma como este era controlado pelas oligarquias urbanas que viam no cabildo um garante do seu poder e um modo privilegiado de negociação com a Coroa. As casas mencionadas no texto eram um dos mais importantes edifícios das cidades. Nestas reuniam-se os cabildantes, em sessões que, podendo ser fechadas (as mais frequentes) ou abertas a alguns vecinos convi- dados, eram o espaço mais importante de discussão e tomada de decisões relativas à gestão do município.

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