DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA
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Pesca de pérolas
a Perico para levar ao Peru, e descarregam o tesouro que vem do Peru para levar a Portobello e, de lá, a Espanha.
Esta cidade do Panamá é governada por um presidente, que é capi- tão-general no Panamá, Portobello e todo o seu distrito. Nesta cidade há Audiência Real, com todos os ministros da Justiça a ela pertencentes. Aqui têm bispo e sua igreja catedral, e mosteiros de frades e teatinos. É cidade de mil vizinhos espanhóis, as mais das casas são de tábuas. Há aqui mercadores muito ricos, que têm grande trato para Espanha e Peru. E da província da Nicarágua trazem-se valentes mulas por terra e tem muitos vizinhos negros. Há muitos habitantes negros que vivem pelos arredores da cidade, em casas de freixo e palha. Toda a gente e vizinhos desta cidade são soldados, que acodem com as suas armas quando se ouve algum rumor de guerra. Esta não é gente de soldo nem a quem obri- guem a estar de guarnição ou presídio, nem é gente belicosa nem esfor- çada, porque o deleite e natureza da terra os torna frouxos e de pouca força, assim não pegam em armas senão obrigados por alguma necessi- dade. E têm-se aqui por mui seguros, graças à fortaleza de Portobello e ao mau caminho que há dali ao Panamá. Chove e troveja muito nesta terra e faz muito calor, porém, com todas as suas incomodidades, nela habitam gentes muito regaladas e estão muito contentes nela.
Das cidades e vilas de Peru, Truxillo e Sana, vão ao Panamá navios carregados de farinha, açúcar, mel de cana, conservas e algumas frutas verdes, como são marmelos, romãs, maçãs e uvas. Porque toda esta Terra Firme não produz, nem se quer criar nela nenhuma coisa de Espanha, porque se tem feito a experiência, a grande humidade e grossura da terra não o consente. O que aqui há em grande abundância é muito milho: de uma fanega que se semeia, colhem-se duzentas. Há grande soma de gado, bois e vacas e vitelas, e valem muito barato, de carne de vaca e de vitela fazem-se muitas variedades de comidas, mui deleitosas e saboro- sas. Colhem-se muitas e grandes bananas, goiabas e mameyes, estes não há no Peru nem se querem criar nele, há muitos abacates que são o que se chama no Peru paltas, batata-doce que são as batatas, colhem alguns melões e alfaces. Têm muitas galinhas e peixes frescos. Têm vindos de Espanha boa azeitona, amêndoas, tâmaras e outras frutas. O melhor que há, e de mais importância, é a pesca de pérolas, de que todos os anos se saca uma boa soma. Também se colhe muito arroz. Os negros que os vizinhos do Panamá têm por escravos servem-nos e ocupam-nos como arrieiros que vão daqui a Portobello com récuas de mulas, outros andam no rio de Chagre em barcos, e uns e outros carregam as mercadorias que passam de um lugar ao outro. Mais caras são as mercadorias ao passar de Portobello ao Panamá, do que de Sevilha a Lima. E deste caminho saem muito mal tratadas, se não se tem grande conta com elas, porque o calor e a humidade fazem nelas grande estrago, e, como lhes toca alguma água, apodrecem, se logo não se acode a enxugá-las. Para defendê-las da água
DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA 177 criou Deus nesta terra umas folhas que se chamam bigau [sic], muito grandes e fortes, envolvem-se os fardos com estas folhas, com uns cordéis de fio de vela, e sobre elas se põe uma serapilheira, de jeito que, por muito que chova, não se molham.
Do Panamá a Portobello são dezoito léguas. As récuas andam-nas em quatro dias, e os que querem caminhar com cuidado em dois dias as percorrem. A primeira jornada é de seis léguas, até ao rio de Chagre, e passam o rio a vau. Daqui vai-se à venta de Carrasco, e passa-se o rio Pequeni, que desce das montanhas de Capira. Aqui, nesta jornada, está o forte de San Pablo, que, com oitenta homens e quatro peças de artilharia, deteve a passagem de Francisco Draqueh, que, não podendo seguir avante, voltou a Nombre de Dios, onde morreu117. Noutra jornada, vai-se
à venta de Caño, faz-se a maior parte do caminho por dentro da corrente de um rio, água acima, alcançando-se a venta. Depois sobe-se um pequeno monte fragoso, desce-se e entra-se noutro rio, que este entra na baía de Portobello. Por estes dois rios anda-se mais de sete léguas, sendo o melhor caminho de todas as dezoito, porque nelas há grandes lodos, muitos maus passos, algumas encostas e muitos rios que crescem com grande celeri- dade. E, em apanhando em meio as récuas, têm elas lugar onde podem desviar-se e esperar que desçam os rios, os quais, com a presteza com que crescem, tornam a baixar, pois que a sua corrente vem de muito perto, e talvez sucede afogarem-se algumas mulas e homens. Todo o caminho é de bosques, de cedros e carvalhos altíssimos e muito grossos, que sempre têm as suas folhas verdes. Tanta é a humidade destes bosques, que se não pode andar por eles, e o sol mal alcança a terra, por serem muito cerra- dos. Há, por este caminho, muitas savanas, que são prados onde andam muitas vacas pastando. Por estas partes há muito poucos índios. Os pas- sageiros que por aqui caminham levam vestida a sua camisa e depois uma camiseta, calção, meia de canhamaço e as suas alpergatas, e levam outro vestido como o dito percebido, porque sempre chegam molhados às pousadas, onde se despem e vestem o que levam enxuto. Numa parte entre o mar e este caminho, fica um lugar que se chama Lugar Nuevo, que é todo de negros. Sublevaram-se estes negros em tempos passados, e os espanhóis não os podiam domar e El-Rei perdoou-os, fê-los livres a todos
117 Em 1595, Francis Drake inicia a sua derradeira viagem marítima, tendo como
objectivo atacar algumas posições castelhanas nas Antilhas e no Panamá. Após um ataque falhado a San Juan de Porto Rico, em que a sua frota foi severamente danificada, optou por rumar ao Panamá, tendo fundeado na vila de Nombre de Dios, a partir de onde tentou chegar por terra à Cidade do Panamá. No entanto, a «marcha» foi detida por uma guar- nição existente no referido forte de San Pablo, que obrigou as tropas enviadas por Drake a regressar. Apesar da decisão de partir em direcção a outros locais da costa americana, uma tempestade levou os navios a fundear novamente perto de onde haviam partido, em Porto- bello, onde Francis Drake acabaria por morrer, e não em Nombre de Dios, como o autor menciona.