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102 DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

102 DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA

imponentes montanhas, que, na língua daquela terra, se chamam punas3.

Há, nestas montanhas, toda a sorte de minas, em diferentes partes, como no decurso desta relação se dirá. A doze léguas de Lima ou do mar, começa a chover, a nevar e trovejar fortemente. Em algumas zonas desta montanha caem raios. Começa o Inverno, nestas montanhas, desde inícios do mês de Outubro até ao fim do mês de Abril. Neste tempo é Verão e fazem grandes calores nas planícies. Nesse tempo, crescem os rios. E quando chove na montanha é nela o tempo menos frio e mais tem- perado e quando nas montanhas faz maiores frios e neva mais é no Verão, que começa de Maio até ao fim de Setembro. Em umas partes da mon- tanha, começa o Inverno primeiro que noutras, porque são muito variá- veis as constelações e climas desta terra, porque, quando numas partes semeiam, noutras estão os frutos nascidos e noutras maduros e noutras colhem-nos e por esta razão se diz que se colhe trigo no Peru duas vezes por ano.

Os Andes são bosques altíssimos e cerrados4, com rios caudalosos

que descem também das montanhas e vão todos dar ao rio Maranhão, que entra no mar Oceano. Como as planícies estão entre o mar e a serra, assim a serra está entre as planícies e os Andes. Nestes Andes há ani- mais bravos e serpentes peçonhentas. Há uma serpente a que chamam cascavel, que picando um homem o mata, e lhe pôs Deus este guizo5 que

em estando a serpe perto do homem o ouve e tem lugar de se guardar dela. Há, nestes Andes, índios de guerra, que muitas vezes salteiam os espanhóis que têm chácaras ou estancias6 nas margens destes bosques, e talvez lhes dão na cabeça e os matam. E andam estes índios despidos e pintados de almagre, com arcos e dardos mui pintados, feitos de um pau negro mui forte, a que chamam chontas. E se voltam fugindo com grande velocidade e ligeireza. Os espanhóis fazem entradas por muitas partes destes Andes, guerreando os índios, e sempre vão descobrindo e ganhando terra. Nestes Andes entram alguns índios ladinos7 do Peru a

3 Nome atribuído a regiões de alta montanha da região dos Andes, que no Peru e

na Bolívia se situam acima dos 4 mil metros. As punas alternam os relevos escarpados com grandes mesetas, lagos e lagoas. Destacam-se pela conjugação de baixas temperaturas, especialmente durante a noite, e um clima essencialmente seco (embora existam épocas de grandes precipitações). A vegetação silvestre típica é o ichu que, entre outros usos, serve de alimento aos camelídeos andinos. Trata-se de um termo de origem quechua que significa «lugar de altura», utilizado no período colonial para designar genericamente zonas mon- tanhosas.

4 Por Andes o autor refere-se à selva amazónica. 5 «Cascavel» no original, em espanhol.

6 O termo chacara, de origem quechua, denominava pequenas explorações agrícolas,

enquanto a instituição colonial da estancia era orientada predominantemente para a criação de gado.

7 A expressão «índio ladino» era utilizada em referência a indígenas que, no período

colonial, falavam castelhano. Podemos considerar que a expressão se generalizaria frequen- temente para caracterizar todos os que se relacionavam com os espanhóis.

DESCRIÇÃO GERAL DO REINO DO PERU, EM PARTICULAR DE LIMA 103 tratar com os índios, e levam-lhes mercadorias de que eles fazem uso, e, em troca, trazem ouro em pó, a que chamam volador e que tem vinte e dois quilates de lei, pelo que se tem por coisa certa que nestes Andes há muito ouro. E diz-se que, para além destes bosques, é a terra plana e muito povoada por muitas léguas, até ao mar Oceano8.

As coisas que os espanhóis semeiam e colhem nas margens e faldas destes bosques são grandes chácaras de coca, que são umas folhinhas do mesmo tamanho e com aparência semelhante às do sumagre e criam-se e colhem-se numas arvorezinhas pequenas9, e levam-na às minas de Potosí

e a outras, e é sustento para os índios que nelas trabalham, com só masti- gando-a e trazendo-a entre os dentes, com isto andam todo o dia metidos dentro das minas. Também colhem trigo, milho, arroz, mel de abelha e amêndoas, maiores e menores do que as da Europa. Criam-se papagaios e macacos e outras coisas.

Tornando a tratar das planícies e costas do mar, as partes em que eu estive e de que tenho mais notícia são quando se vem do Panamá para o Peru, deixando as ilhas de Rey e Taboga10, desviando-se da costa para

não entrar na górgona, passando os farilhões que há no meio do mar e em toda a costa dos mulatos, e passando a linha equinocial, chega-se (a Manta)11, primeiro porto e lugar do Peru. Este é lugar de índios, onde

se faz enxárcia e cabos para os navios12, não tem nenhuma defesa, tem

um bom13 porto, e em barcos se salta em terra. A duas léguas por terra

adentro fica Portoviejo, vila onde há trinta casas de espanhóis, gente que possui muito gado e pouco dinheiro.

Daqui se vai por terra a Guayaquil. Há muitos lugares de índios pelo caminho e bosques e muita solidão. Guayaquil é vila de espanhóis e de bom trato por mar e terra, de onde se levam as mercadorias que vêm de Lima e outras partes à cidade de Quito. Aqui se fazem grandes naves porque há muita madeira de cedro e carvalho, muita da qual é levada para Lima. Também se fabricam enxárcias e se colhe tabaco e salsaparrilha. E sai desta vila de Guayaquil caminho para Quito e outras partes. Tem boas boticas de mercadores. Daqui se vai por barco a uma ilha que chamam Punna, muito regalada e com alguns lugares de índios, vive

8 Oceano Atlântico.

9 No original «arbolillos chicos»: possível marca da linguagem andaluza.

10 Estas duas ilhas situam-se no Golfo do Panamá. A primeira é a maior das mais de

cem ilhas que constituem o Arquipélago das Pérolas, enquanto a ilha de Taboga, também denominada Ilha das Flores, está mais próxima da cidade do Panamá.

11 Parênteses do copista, provavelmente indicando que não compreende a letra do

original. Fará referência a Manta, lugar onde actualmente se situa San Pablo de Manta, no Equador.

12 Esta é apenas uma das muitas produções a que os indígenas, pelo seu estatuto, se

encontravam obrigados. Ver notas 15 e 38.

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