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INTERSECÇÕES ENTRE A ESCOLA E A FAMÍLIA

3.5 O DEVER DE CASA COMO FATOR DE INTEGRAÇÃO OU DE CONTROLE ?

Em texto que discute a função do dever de casa, Carvalho (2004a) diz que, apesar de pouco estudado ou problematizado, o dever de casa é uma prática cultural que há muito tempo integra as relações família-escola e a divisão de trabalho educacional entre estas instituições. Nesse sentido, a autora aponta algumas compreensões a respeito da adoção do dever de casa: a) pode ser visto como uma necessidade educacional, reconhecida por pais e professores e concebida como uma ocupação adequada para os estudantes em casa; b) pode ser considerado um componente importante do processo ensino-aprendizagem e do currículo escolar; c) pode ser concebido como uma política da escola e do sistema de ensino, com objetivo de ampliar a aprendizagem em qualidade e quantidade; d) pode ser visto como uma estratégia de ensino, um método de fixação, revisão, reforço e preparação para aulas e provas; e) pode ser visto como um recurso psicológico para a construção da independência, autonomia e responsabilidade do estudante alcançados por meio de hábitos

de estudo e pontualidade; f) por fim, pode ser visto como uma política de formalização da parceria família-escola.

De acordo com Carvalho (2004a), o dever de casa não afeta apenas o processo ensino-aprendizagem e o trabalho docente, como também a vida dos estudantes fora da escola e sua rotina familiar, pois supõe uma conexão entre as atividades escolares e as de casa e, ainda, uma estrutura doméstica adequada que apóia as atividades da escola. Dessa forma, o dever de casa passa de uma política tácita informal a uma política formal que articula os esforços educativos destas duas instituições.

Ampliando um pouco o entendimento sobre o dever de casa, Carvalho (2004a) aponta que ele pode constituir uma estratégia defensiva da escola contra a cobrança da responsabilidade de prover educação formal, ou pode constituir uma ilustração de violência simbólica, via extensão da autoridade pedagógica da escola ao lar.

Nota-se que o dever de casa propicia várias abordagens, todas complexas, e que deveriam merecer mais atenção dos pesquisadores, especialmente no contexto das relações família e escola. Alguns estudiosos poderiam questionar por que discutir a prática do dever de casa e, como resposta rápida, sem muitas reflexões, poder-se-ia responder que, do ponto de vista da escola, o envolvimento ou participação dos pais na educação dos filhos significa comparecimento às reuniões de pais, atenção à comunicação escola-casa e, principalmente, acompanhamento dos deveres de casa e das notas. Todavia, segundo Carvalho (2004a), o dever de casa não tem sido objeto de pesquisa, e aparece, apenas, como um tema periférico em análise de rendimento acadêmico e das interações entre família e escola. E, por essas razões, não tem sido problematizado pelas pesquisas não havendo, portanto, pesquisa substancial para corroborar uma relação de alto desempenho dos alunos com o dever de casa.

Historicamente, o dever de casa escolar surgiu como uma ocupação apropriada para os estudantes das classes médias e se tornou parte da vida dos grupos sociais escolarizados e dos que valorizam a escolarização como estratégia de mobilidade social ascendente. Por esse motivo Carvalho (2004a, p. 96) esclarece que “nos primórdios da escolarização compulsória, as escolas que serviam às comunidades/famílias rurais e urbano-industriais não enviavam trabalho escolar para casa”.

Auxiliar nos deveres de casa é auxiliar na instrução, por meio de apoio e monitoração, servindo como tutor e fonte de informações e audiência em relação ao trabalho escolar dos alunos (Carvalho, 2004a). Dessa postura, entende-se que os pais acabam por serem envolvidos em um novo papel, o de auxiliares do ensino, onde lhes são atribuídas as tarefas de motivar os alunos, proporcionar tempo, espaço e assistência extracurricular para garantir que a aprendizagem aconteça. Em relação a este novo papel atribuído aos pais, Carvalho (2004a) relata que a política-prática do dever de casa baseia-se em dois presupostos: a) de que os pais têm tempo para criar oportunidades de aprendizagem em casa, organizando e adapatando continuamente o ambiente doméstico para atender demandas escolares e b) de que os pais gostariam de se atualizar ao currículo escolar e, portanto, a escola deveria investir em orientação de pais para acompanhar os deveres de casa.

Dentro da prática do dever de casa existem atividades que envolvem intencionalmente os pais e outras atividades que os alunos podem desempenhar independentemente, apesar de que mesmo nesta última situação há recomendações para que os pais incentivem os filhos, preprarem o ambiente para a realização do dever de casa e, ainda, que permaneçam próximos para eventuais ajudas ou mesmo fiscalização. Estas condições apontam, enfim, para um modelo particular de família que dispõe de um adulto (geralmente a mãe) com tempo livre, conhecimento e disposição para auxiliar na educação

formal, mesmo quando exercem trabalho remunerado fora de casa o que, provavelmente, gera sobrecarga a este adulto (Carvalho, 2004a; 2004b).

Posto desta forma, Bowditch (conforme citado por Carvalho, 2004a) destaca que, através da política do dever de casa, as escolas fazem exigências pesadas quanto à organização da vida familiar e às práticas das mães, além de que, subordinando os pais às exigências escolares e a política do dever de casa, geram-se efeitos perversos, pois que ao ensinar as famílias suas obrigações básicas de promoverem o ambiente doméstico de forma adequada à aprendizagem, criam-se condições para “culpar as famílias” por suas inadequações e, então, abandonar a responsabilidade de ensinar às crianças dessas famílias.

E este parece ser o grande círculo vicioso que, tradicionalmente, alimenta as relações entre a escola e as famílias, círculo este constituído pelo dever de casa e pelo controle da escola sobre a organização familiar. Concluindo o artigo de título bastante representativo sobre esta questão, “Escola como extensão da família ou família como extensão da escola. O dever de casa e as relações família-escola”, Carvalho (2004a) propõe as seguintes questões: “Por que não conceber a educação escolar independente da contribuição da família na forma de dever de casa? Por que não seguir a lógica de quanto melhor a qualidade da escola, menos dever de casa? Por que aceitar as sansões implícitas e explícitas do dever de casa sobre a família?” (p. 102).

Um exemplo relacionado ao acompanhamento do dever de casa e que tem favorecido a compreensão de que a colaboração dos pais em casa promove o desenvolvimento de habilidades escolares é a pesquisa realizada por Maimoni e Bortone (2001), que utilizaram o procedimento de “leitura conjunta”, envolvendo a colaboração dos pais de alunos da 2ª série do ensino fundamental, duas vezes por semana, ocasião em que os pais deveriam ouvir a leitura dos textos escolhidos pelos filhos. Esta mesma pesquisa

identificou a maior participação das mães que ouviram o filho ler mais vezes em casa, indicando, novamente, que a cultura escolar ainda não inclui o pai como colaborador.

Em relação a questões de gênero que permeiam as relações família-escola, Carvalho (2004b) chama atenção para o fato de haver uma continuidade entre professoras (feminização do magistério) e mães (educação doméstica a cargo das mulheres), uma vez que o envolvimento dos pais na educação escolar tem se limitado à obrigação materna, no contexto de uma divisão sexual do trabalho educacional que persiste e é tomada como natural pela escola e por seus profissionais do sexo feminino.

Para além da divisão de gênero, no que diz respeito à educação formal, outras configurações familiares também precisam ser estudadas, uma vez que o modelo tradicional de família não é mais preponderante em nossa sociedade e também pelo fato de que outros membros familiares têm assumido a tarefa de acompanhar a educação das crianças e jovens. Um desses exemplos é o de avós, situados como extensão da família nuclear e que assumem, ao menos parcialmente, a responsabilidade pelos netos, seja em função da necessidade dos pais trabalharem o dia todo fora de casa, ou seja por uma crise conjugal ou separação do casal (Nunes & Vilarinho, 2001).