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A dimensão subjetiva da realidade

A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE: FUNDAMENTAÇÃO ONTOLÓGICA E DECORRÊNCIAS METODOLÓGICAS

1.5 A dimensão subjetiva da realidade

Esta fundamentação do método possibilita, por sua vez, uma psicologia social cuja pesquisa tenha a subjetividade como via de acesso à totalidade da realidade, a partir da compreensão de que

os indivíduos se reproduzem como singulares, mas como singulares sociais. As condições para essa sua forma de ser na reprodução de sua vida, no seu processo vital produtivo, foram postas somente pelo próprio processo histórico e econômico; tanto as condições objetivas quanto as condições subjetivas, que são apenas as duas formas diferentes das mesmas condições (MARX, 2011c, p. 706).

Desta forma, como aponta Furtado (2009), um mesmo processo histórico integra, de forma inseparável, uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva e não importa qual a leitura que se faça desse processo, via objetividade ou subjetividade, estaremos sempre trabalhando, necessariamente, com a relação dialética entre estas dimensões.

É preciso definir com precisão, contudo, que a necessária relação dialética de objetividade e subjetividade como unidade de contrários não significa a existência de uma relação direta entre cada produção subjetiva tomada isoladamente e condições objetivas que a determinem. Se houvesse correspondência direta entre condições objetivas e condições subjetivas, o pensamento seria inútil, desnecessário, sem qualquer efetividade social, pontua Vigotski (1997). Se fosse assim, não haveria como emergir sequer a possibilidade de se pensar o novo, de se conceber uma realidade distinta da que se apresenta, seria impossível qualquer posição teleológica, quanto menos uma práxis revolucionária (MÉSZÁROS, 2011a). Caracterizando como infantilismo teórico a concepção materialista vulgar segundo a qual há um determinismo mecânico das condições objetivas sobre a consciência, o que significaria postular que qualquer transformação da consciência tem por condição necessária uma transformação prévia das condições materiais e que cada transformação das condições materiais implica necessariamente em uma transformação correspondente nas consciências, Gramsci (1978) discute a presença do "princípio do erro" em complexos da vida social como a política (que significa que na política nem toda ação é determinada diretamente pelas condições objetivas sobre as quais atua, podendo ser aleatória ou visar objetivos parciais, apenas organizativos). O erro (aqui entendido como exemplo da possibilidade de certo "descolamento" entre condições objetivas e subjetivas) é

possível porque entre os complexos do ser social existe uma relação não apenas de dependência ontológica e determinação recíproca, mas também de autonomia relativa (TONET, 2011).

Se não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência, na conhecida formulação de Marx e Engels (2012, p. 94), isso não elimina o desdobramento de que "uma vez nascido, o próprio pensamento determina a vida; ou, mais exatamente, a vida pensante determina a si própria através da consciência" (VIGOTSKI, 1997, p. 269). Longe de qualquer idealismo, esta afirmação apenas reconhece que, afinal, "a consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente" (MARX; ENGELS, 2012, p. 94). Não se trata de uma determinação material direta das ideias, mas de uma relação dialética em que objetividade e subjetividade se determinam mutuamente, tendo nas condições materiais seu momento preponderante. Afirmar que a prioridade ontológica no par dialético objetividade-subjetividade é da objetividade significa afirmar que as determinações materiais são originárias (não há sociabilidade sem fundamento natural, assim como não há consciência sem matéria orgânica) e formam, na expressão de Mészáros (2011a), um fundamento objetivo trans-histórico que é ineliminável: a despeito do nível de desenvolvimento social e tecnológico o metabolismo social apenas pode se desenvolver a partir do metabolismo entre humanidade e natureza. Portanto, o ser social requer a contínua reposição das condições materiais que o fundam enquanto forma específica, a saber, o trabalho enquanto intercâmbio entre a humanidade e a natureza, assim como também requer a contínua reposição das condições materiais que fundam o ser orgânico (a ocorrência da reprodução biológica é imprescindível para a possibilidade de haver reprodução social) e o ser inorgânico (sem natureza para o intercâmbio, também não seria possível a reprodução social). Contudo, a necessidade de repor continuamente as determinações materiais que produzem (e assim reproduzem) o ser social, ainda que seja um fundamento objetivo trans-histórico, se dá com forma e conteúdo históricos. O desenvolvimento histórico determina, em cada momento, diferentes modos pelos quais se dá a contínua reposição que é a condição ontológica primeira e ineliminável da sociabilidade humana.

Portanto, as bases materiais da realidade não estão dadas de uma vez por todas, mas são continuamente transformadas, possuem um

desenvolvimento histórico objetivo, o que corresponde a dizer que a objetividade no ser social não é simplesmente causalidade dada, mas causalidade posta por atos teleologicamente orientados. Neste processo, as bases materiais agregam um quanto de subjetividade e é neste sentido que os fatos objetivos e subjetivos são inseparáveis enquanto parte de um mesmo processo histórico (FURTADO, 2009). Na razão em que o desenvolvimento das forças produtivas possibilita formas de produção e reprodução material da vida que se complexificam e se tornam cada vez mais sociais, tanto mais a objetividade imediatamente disponível já foi transformada em algum grau pela atividade humana e legada historicamente. As bases subjetivas da realidade, que orientam a ação humana sobre tais bases objetivas legadas historicamente, também são elas mesmas dotadas de historicidade.

É exatamente essa possibilidade de constituição de repertórios de referência, cumulativos, elaborados através da apropriação, controle, conhecimento da atividade concreta no mundo, que nos garantirá a condição ontológica e a teleológica. Isso significa reconhecer o ser humano como um ser capaz de compreender a si mesmo e alguém com a capacidade de projetar o seu futuro numa determinada direção (FURTADO, 2011, p. 65).

É a historicidade – tanto das bases materiais quanto das bases subjetivas – o que possibilita que a contínua reposição das condições para a sociabilidade humana, como necessidade ineliminável que apresenta não obstante formas e conteúdos sempre mutáveis, não signifique a necessidade de que a cada momento seja preciso refundar esta sociabilidade. Esta continuidade do ser social, sua essência, somente é possível porque há a dinâmica entre as bases objetivas e subjetivas da realidade, reposta continuamente pela práxis humana. As determinações materiais da vida e os complexos ideológicos são, desta forma, necessariamente imbricados, formando uma totalidade articulada, o que não elimina que possuam desenvolvimentos históricos próprios que lhes possibilitam uma autonomia relativa. Como afirma Mészáros,

os complexos superestruturais - do direito e da política à arte e moralidade - somente se originam (...) nas determinações materiais básicas da vida social, mas nem sempre permanecem diretamente dependentes delas; daí a possibilidade de sua relativa autonomia e, em grande medida, desenvolvimento independente com respeito às determinações materiais originais (2011a, p. 50).

Mais uma vez, a referência principal está na compreensão da realidade como "uma totalidade coerentemente estruturada (...) com todos os seus intrincados constituintes e múltiplas dimensões‖ (MÉSZÁROS, 2011a, p. 36). A determinação da consciência nas condições materiais de vida não significa, desta forma, uma determinação mecânica, nem que exista uma necessária "conexão de um a um entre uma dada base social e as ideias correspondentes" (idem). No interior da totalidade que se estrutura a partir de determinações materiais originárias, mas que se complexifica ao longo de um processo de desenvolvimento histórico objetivo, as combinações possíveis entre seus complexos podem ser a conexão entre ideias e ideias, e não necessariamente apenas entre ideias e condições objetivas para sua produção. Isso somente é possível porque as mediações superestruturais, ainda que sejam sempre "portadoras sócio-historicamente específicas de funções materiais determinadas com as quais são reciprocamente imbricadas por meio de formas e modos apropriados de mediação" (ibid., p. 51), possuem um desenvolvimento histórico próprio. Neste sentido, como aponta Furtado (2011),

O campo objetiva determina direta ou indiretamente o campo subjetivo, e o campo subjetivo (...) acaba produzindo representações a partir de outras representações se descolando ou se distanciando, em determinadas circunstâncias historicamente definidas, de suas bases materiais objetivas de produção (p. 80).

Não é a forma de existência da objetividade que em si determina sua forma subjetiva de apropriação pela consciência, mas a própria atividade de apropriação da realidade por parte dos sujeitos (LUKÁCS, 1966). Formas distintas de apropriação ativa da realidade determinam formas distintas de consciência social, possibilitando, por exemplo, que a ciência, a arte e o pensamento cotidiano se constituam como complexos distintos, com desenvolvimento histórico distinto e relativamente autônomo, não só entre si, mas também em relação à base material.

Neste processo de diferenciação, que se dá através de objetivações mediadas objetiva e subjetivamente, são produzidas as distintas formas de consciência social, com graus também distintos de dependência ontológica com as determinações materiais. Se alguma forma de dependência estará sempre presente, sua intensidade e significância se diferenciam. É possível estabelecer de forma mais claramente direta a relação com as determinações materiais de

complexos como o direito (como, por exemplo, na igualdade jurídica como condição derivada e necessária para a forma de exploração do trabalho especificamente capitalista) e a política (cujo movimento reflete claramente, ainda que não diretamente, as lutas concretas entre classes) e menos direta, pois constituída por outros níveis de mediação, em complexos como a filosofia e a ciência (tanto em sua fase ascendente, a partir dos interesses práticos das classes que lutam por sua emancipação quanto no sentido apologético, decadente). Por sua vez, em complexos como a arte, cuja constituição depende de inúmeras e sofisticadas mediações, difíceis de estabelecer com precisão, é mais simples identificar relação com as condições subjetivas do que com as condições objetivas de sua produção.

A historicidade das produções subjetivas implica, assim, no reconhecimento de que o psiquismo não é produzido apenas a partir da atividade do indivíduo sobre determinadas condições objetivas que encontra legadas diante de si e também que resultam como produto objetivo de sua ação, mas mediado por um campo subjetivo social que também é transformado historicamente pela práxis humana. Mészáros (2011a) recorreu à distinção feita por Marx e Engels entre "produtos da consciência" e "formas de consciência" (como religião, filosofia, moral, etc.) para apontar que estas, em suas especificidades e dotadas de autonomia relativa, são uma forma de mediação necessária entre a base material e as ideias particulares. Este campo subjetivo, produzido socialmente pela práxis humana, se objetiva não só em práticas sociais específicas, mas também em produtos subjetivos, como representações sociais, identidade social, ideologia, valores, rituais, hábitos, costumes, leis, regras, crenças, a produção intelectual, o imaginário popular, determinados pelas bases objetivas da realidade ao mesmo tempo em que as reelaboram (GONÇALVES; BOCK, 2009; FURTADO, 2002). A subjetividade individual se constitui, portanto, não só na relação dialética com as bases materiais da realidade, mas também com o campo que González Rey (2003) denomina subjetividade social, a partir do reconhecimento de que "a própria cultura dentro da qual se constitui o sujeito individual, e da qual é também constituinte, representa um sistema subjetivo, gerador de subjetividade" (p. 78). Este campo subjetivo social é chamado por Furtado (2002) de dimensão subjetiva da realidade, a partir do reconhecimento de que não se trata de uma forma de

―consciência social‖ ou de ―configuração subjetiva‖ do corpo social, pois a sociedade não é um organismo que ―pensa‖.

A dimensão subjetiva da realidade procura se colocar no âmbito da pluralidade de produções ideacionais no campo social e por isso podemos dizer que é dimensão – dimensão da produção ideacional dos diferentes sujeitos (classes sociais) e a influência possível no período dado (FURTADO, 2002, p. 102).

Esta é a dimensão subjetiva da realidade, "síntese entre as condições materiais e a interpretação subjetiva dada a elas" (GONÇALVES; BOCK, 2009, p. 143). Ainda que a totalidade social se erija sobre bases materiais que precisam ser continuamente repostas como necessidade ontológica que pode ser deslocada, modificada em seu conteúdo, mantida latente, mas nunca eliminada, a dinâmica histórica que coloca os planos objetivo e subjetivo em constante interação, faz com que a fonte de determinação da realidade não possa ser indicada necessariamente de forma clara (FURTADO, 2009).

Tomemos como exemplos desta relação de dependência ontológica, mas simultaneamente de relativa autonomia, entre os campos objetivo e subjetivo da realidade os casos que Marx comenta em "Sobre o Suicídio". Neste texto atípico, formado de excertos e comentários sobre um livro de memórias de um arquivista da polícia francês, Marx discute, a partir de histórias de suicídio, formas de injustiça social não diretamente econômicas, defendendo que a crítica da sociedade burguesa não deve se limitar apenas à crítica da exploração econômica, ainda que não possa em absoluto prescindir dela (LÖWY, 2011). São quatro as histórias apresentadas, sendo de três mulheres e um homem, apresentados como uma filha de alfaiate, uma mulher "de uma das famílias mais ricas da Martinica" (MARX, 2011d, p. 33), uma sobrinha de banqueiro e um inventor. As motivações para os suicídios foram a humilhação sofrida pelos pais por conta de uma relação sexual pré-marital, ser vítima de ciúmes excessivo, a impossibilidade de realizar um aborto e a humilhação por subitamente perder os meios de trabalho que possibilitavam prover o sustento financeiro à família. Destaca-se, imediatamente, a questão de opressão de gênero, vivenciada tanto por mulheres burguesas quanto por proletárias e que não se relaciona diretamente às condições objetivas de vida imediatamente disponíveis a cada uma. Humilhação, autoritarismo, submissão e solidão são apresentadas, ao longo das narrativas, como experiências subjetivas que não derivam direta ou

imediatamente das condições materiais do modo de produção capitalista, mas que nem por isso deixam de ter uma gênese social que está nestas condições materiais, enquanto sua dimensão subjetiva. Não haver uma derivação direta ou imediata explicita-se pelo fato de que a exploração econômica do capital sobre o trabalho, ainda que central na sociedade capitalista, não ocupa o primeiro plano neste texto, se deslocando de cena para dar lugar a outras dimensões da exploração cuja gênese, claramente social, pode ser apontada em três questões que destacamos entre os comentários feitos por Marx.

A primeira é a relação apontada entre os ciúmes e a lógica da propriedade privada: "o ciumento é antes de tudo um proprietário privado" (MARX, 2011d, p. 41). Não defendendo que a lógica da propriedade privada seja exclusiva ou diretamente determinante dos ciúmes, como nos parece que Marx também não tenha feito, apontamos que esta lógica não se restringe apenas à relação direta do proprietário com sua propriedade, mas produz um registro simbólico que compõe o repertório de significações do mundo de que o ―homem burguês‖ – no sentido amplo de que fala Konder (2000) – dispõe para interpretar suas relações não apenas com objetos, mas também com outras pessoas. Trata-se, portanto, de exemplo de como uma produção subjetiva é determinada por um conjunto de condições objetivas, mas não de forma direta ou imediata.

Outra questão que Marx aponta é a mediação fundamental exercida pelo Direito na justificação da opressão de gênero. Aponta que a relação de escravidão a que é submetida uma das mulheres é amparada socialmente por uma forma jurídica que não reconhece nestas o status de sujeitos com direitos garantidos. Trata-se apenas de ―uma mulher, aquele ser que o legislador cerca com as menores garantias‖ (MARX, 2011d, p. 41). Não se trata de identificar na forma jurídica que nega direitos às mulheres a origem da opressão que lhes é infligida, mas de perceber que este campo jurídico compõe um campo de valores que serve de referência para a ação cotidiana. Com isso, Marx aponta exemplo de situação concreta cuja mediação direta é fundamentalmente superestrutural, ideológica.

Por fim, destacamos a maneira como Marx aponta a tirania familiar como uma expressão de autoritarismo que a revolução burguesa com sua promessa de indivíduos livres e iguais não foi capaz de eliminar automaticamente, permanecendo como vestígio de uma organização social anterior. A questão

interessa na medida em que indica que a alteração das condições materiais, mesmo no caso de transformações revolucionárias, não necessariamente corresponde a alterações na subjetividade social.

Para avançar na compreensão de que como se dá este relativo descolamento e de como esta dimensão subjetiva, inseparável da dimensão objetiva da realidade, mas com desenvolvimento categorial próprio, serve de mediação para a consciência e a atividade humana, buscaremos definir como no cotidiano está a origem das representações ontológicas que interagem de forma ininterrupta com a práxis cotidiana (LUKÁCS, 2012b). Como aponta Duayer (2001), a práxis simultaneamente pressupõe e produz uma ontologia. Toda ação teleologicamente orientada se orienta por alguma forma de representação ontológica que

chancela e pressupõe um horizonte de inteligibilidade, um horizonte licitamente apreensível, um horizonte enfim legitimamente cognoscível e, portanto, um horizonte de práticas legítimas e plenamente justificáveis (DUAYER, 2001, p. 23).

No mesmo processo, o pensamento tende a ―congelar‖ e assim hipostasiar este conhecimento, produzindo uma concepção de realidade, uma ontologia.

Na discussão sobre como a práxis cotidiana determina na realidade a cisão entre aparência e essência, apontamos que entre as determinações ontológicas fundamentais do pensamento cotidiano estão a ação orientada por probabilidade e a ultrageneralização, ambas determinadas pela necessidade cotidiana de dar conta de um conjunto heterogêneo de tarefas de forma imediata, pré-reflexiva. Apontamos também que o êxito desta forma de práxis depende, em alguma medida, de se guiar por um conjunto em algum grau rígido de referências que tende a ser questionado apenas quando deixa de funcionar adequadamente. Mesmo o agir orientado por probabilidade prescinde de qualquer forma mais aprofundada de cálculo probabilístico, bastando, menos do que ser provável, apenas parecer ser provável e aí entram os hábitos, costumes, tradições, regras e normas como parâmetros de referência, cujo atendimento aumenta a probabilidade de êxito da ação (HELLER, 1992). Na práxis cotidiana operam, assim, formas de subsunção imediata do caso singular que precisa ser resolvido (e se possível da forma mais econômica) a alguma forma de

universalidade. Entre estas formas, Lukács (1966) destaca a analogia e a inferência analógica, que reúnem traços característicos com alguma semelhança entre os objetos para generalizá-los e extrair deles alguma consequência prática imediata. Heller (1992) discute também outras formas, como o uso de precedentes (exemplos extraídos da experiência pessoal ou de alguma forma legados e disponíveis como experiência de outrem, individual ou coletiva), a entonação (o meio em que o objeto ou indivíduo aparece ―dá o tom‖ a ele, permitindo inferir de forma rápida alguma informação sobre o desconhecido) e a imitação. Em seu conjunto, estas formas típicas de pensamento cotidiano, determinadas pela estrutura ontológica trans-histórica e histórica da cotidianidade, produzem representações instrumentais da interação do indivíduo com o mundo (NETTO, 1989). Generalizando de forma abstrata as experiências cotidianas, forma-se o senso comum, ontologia cotidiana que serve de guia imediato das ações (LUKÁCS, 1966)

Desta forma, a dimensão subjetiva do cotidiano é fundamentalmente utilitária. A economia do pensamento na vida cotidiana exige que o critério da utilidade prevaleça sobre qualquer precisão a respeito da verdade material ou da gênese histórica dos objetos. Do senso comum importa que ―funcione‖, que garanta a reprodução da vida cotidiana, que tenha efetividade social. Ou como formula Lukács (2012b), determinadas formas de consciência, não importa se ontologicamente verdadeiras ou falsas, desempenham um papel relevante no ser social por conta de sua função prático-social. Em seu argumento, Lukács recorre à questão dos ―cem thalers imaginados‖8, discutida por Marx em sua

dissertação de doutoramento9, na qual aponta que representações estritamente

falsas do ponto de vista de sua verdade material podem ter efeitos objetivos reais, sendo sua efetiva eficácia histórica o que lhes confere alguma forma de ser social. Afirma Marx que

8

Antiga moeda alemã, também grafada como ―talheres‖ e ―táleres‖.

9 Marx alude ao exemplo usado por Kant (2001, p. 516) na sua refutação do argumento ontológico pela existência de Deus (―cem talheres reais não contêm mais do que cem talheres possíveis‖), ao qual também fizeram remissão Hegel (2010) e Feuerbach (2008) para discutir, cada um a sua maneira, este campo de questões ontológicas.

Se alguém julga possuir cem thalers e se esta representação, em lugar de ser uma representação subjectiva qualquer10, for algo em que