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Pôr teleológico primário, pôr teleológico secundário e a mediação da ideologia

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2014 (páginas 108-116)

A DIMENSÃO TELEOLÓGICA DA PRÁXIS: A RELAÇÃO ENTRE CONSCIÊNCIA E ATIVIDADE

2.1. Pôr teleológico primário, pôr teleológico secundário e a mediação da ideologia

Como aponta Lukács (2013), o trabalho – processo em que ―o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza‖, através do qual ―agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza‖ (MARX, 2013, p. 255) – é fundante do ser social, o que significa dizer que esta é a categoria claramente intermediária entre o ser orgânico e o ser social. O trabalho é a ação através da qual a humanidade cria e continuamente repõe, enquanto necessidade ontológica ineliminável, as condições materiais que permitem que o ser social apresente um desenvolvimento distinto (crescentemente social), ainda que dependente, do ser orgânico, assim como cria subjetivamente a condição propriamente humana. Portanto, ―todo fenômeno social pressupõe, de modo imediato ou mediato, eventualmente até remotamente mediato, o trabalho com todas as suas consequências ontológicas‖ (LUKÁCS, 2013, p. 159). Assim ocorre porque o trabalho exerce determinação reflexiva (o que significa que na relação mutuamente determina e é determinado) sobre a reprodução social. A partir desta relação – entre trabalho e reprodução social – é possível apreender como se constituem as distintas formas de práxis social, incluindo aquela forma específica de práxis que aqui nos interessa diretamente, o fazer profissional de psicólogas(os). Seguindo o caminho genético de compreensão ontológica, o essencial aqui é identificar

como estas distintas formas de práxis social compartilham com o trabalho traços comuns e como deste se diferenciam por determinações específicas.

O que permite o trabalho se constituir em meio de reprodução social (e não meramente orgânica) é sua possibilidade de remeter para além de si mesmo, de ―produzir mais que o necessário para a simples reprodução da vida daquele que efetua o processo do trabalho‖ (LUKÁCS, 2013, p. 160). Rigorosamente, o trabalho não é (e por muito tempo na existência do homo sapiens efetivamente não foi) necessário para a reprodução da espécie. Sem o trabalho, sem transformação consciente da natureza com a intenção de produzir os meios de manutenção da vida, a reprodução da espécie é possível nos mesmos termos em que se dão os processos de reprodução dos seres orgânicos no geral. Mas, a possibilidade de que cada indivíduo não precise necessariamente executar todas as ações necessárias à reprodução de sua vida, possibilidade que está dada no trabalho, é imprescindível para o desenvolvimento de formas crescente e especificamente sociais de reprodução. Umas das consequências mais importantes deste traço constitutivo é a divisão social do trabalho, da qual decorre o fato de que as ações singulares se tornem necessariamente parciais e somente adquiram sentido no interior do processo do qual são parte, tornando a reprodução de cada indivíduo dependente da reprodução da sociedade. Em razão disso, o ser social se estrutura como um ―complexo de complexos‖, isto é, totalidade social organicamente estruturada, na qual complexos parciais se reproduzem com autonomia relativa tendo o seu momento predominante na reprodução do complexo total, que, por sua vez, somente se dá através de variadas e múltiplas interações na reprodução dos complexos parciais.

A divisão social do trabalho foi fundamental também para o desenvolvimento das formas de linguagem especificamente humanas. Constituindo-se em ―instrumento para a fixação daquilo que já se conhece e para expressão da essência dos objetos existentes, (...) instrumento para a comunicação de comportamentos humanos múltiplos e cambiantes em relação a esses objetos‖ (LUKÁCS, 2013, p. 161), o desenvolvimento da linguagem e da cultura – desenvolvimento fundado no trabalho – possibilitou, na perspectiva filogenética, que o ser social adquirisse a continuidade histórica sem a qual não

teria sido possível avançar em suas formas especificamente sociais de reprodução.

O desenvolvimento da linguagem permitiu ainda o crescente desenvolvimento de uma forma de posição teleológica distinta daquela originalmente presente no trabalho. Cria a possibilidade ontológica de um tipo de práxis social que não visa alguma forma de transformação nas cadeias naturais de causalidade segundo finalidades humanas, mas sim induzir em outros sujeitos uma nova posição teleológica desejada e pré-determinada (LUKÁCS, 2009). Lukács (2013) denomina esta nova forma de pôr teleológico secundário, distinto, portanto, do pôr teleológico primário, aquele dirigido à transformação da natureza através do trabalho.

Trata-se de uma determinação essencial para a autonomização relativa entre planejamento e execução do trabalho (ou entre trabalho intelectual e trabalho manual). Como aponta Lukács (2009), o trabalho concreto, enquanto ato teleologicamente orientado, que envolve uma prévia ideação do resultado a ser alcançado, pressupõe alguma separação entre planejamento e execução, entre o conhecimento, de um lado, e, de outro, as finalidades e os meios, enquanto momentos distintos da ação, a princípio dominados e executados integralmente pelo sujeito que age. Contudo, ao passo que estes momentos preparatórios se desenvolveram até se tornarem campos autônomos de conhecimento e que também se desenvolveram os pores teleológicos secundários, este traço ontológico constitutivo do trabalho se desdobrou na distinção entre os sujeitos que planejam e os sujeitos que executam. Isso, por sua vez, alavancou o aprimoramento técnico do trabalho e possibilitou a organização de um modo de produção cujo fundamento está na exploração do trabalho através da instauração de formas de domínio de classe.

Assim, a divisão do trabalho e sua crescente complexificação, ao criar novas necessidades e novas formas de satisfazê-las, e também através de seu aprimoramento técnico e do desenvolvimento das forças de produção, fazem com que distintas formas de práxis social sejam demandadas cada vez mais para organizar as relações envolvidas na reprodução social e, em última instância, a forma particular de organização do trabalho. A consequência deste processo é a divisão técnica do trabalho, através da qual certas ocupações se autonomizam em profissões, o que somente se torna possível, portanto, a partir

das premissas de que um indivíduo possa obter tudo aquilo que precisa para viver sem necessariamente precisar produzi-lo diretamente, que um indivíduo possa se dedicar à execução de tarefas que somente adquirem sentido no interior do processo social total em que se inserem e de que se desenvolvam crescentemente as formas secundárias de pores teleológicos.

Como aponta Lessa (2012b), esta possibilidade adquiriu outro sentido com o desenvolvimento ulterior das forças produtivas. Desde o desenvolvimento das formas primordiais de linguagem e de divisão do trabalho estão dadas as possibilidades do desenvolvimento de formas de práxis sociais simultaneamente distintas e articuladas com o trabalho e de delimitação de certas atividades em ―profissões‖. Mas, o que permitiu que estas adquirissem autonomia relativa enquanto complexos parciais, assim como sua ampliação e diversificação, foi a crescente produtividade do trabalho que resulta do desenvolvimento das forças produtivas, ao possibilitar que um número proporcionalmente menor de pessoas se envolva diretamente nas atividades de transformação da natureza e liberar em contrapartida cada vez mais pessoas para a dedicação a atividades de outro tipo. Porém, não somente possível, o desenvolvimento das forças e a estruturação de sociedades de classes tornou este processo necessário. Lessa (2012b) aponta, neste sentido, que uma das primeiras demandas que o domínio de classe requereu foi um mecanismo específico de repressão, o Estado. Com a constituição do Estado, determinadas profissões se tornam necessárias não diretamente na produção, mas indiretamente para tornar a atividade produtiva possível na forma historicamente determinada: a burocracia do funcionalismo público, policiais, soldados, magistrados, etc. Esta é, segundo Lessa ainda, uma das determinações ontológicas mais universais nas sociedades de classes: a existência de uma camada de assalariados que não produz riqueza, mas também não a explora diretamente por não deter o poder econômico e político para isso e sim apenas indiretamente na forma da repartição da riqueza expropriada daqueles que trabalham. A cota da riqueza social destinada a estas camadas é, portanto, admitida como um gasto necessário à produção, desde o ponto de vista da classe dominante. Ainda que sua atividade não realize aquela condição ontológica imprescindível, a de produção das condições materiais de reprodução da vida através do intercâmbio com a natureza, ela é tão necessária quanto para que este intercâmbio se dê da forma historicamente determinada e,

portanto, para o concreto ser-precisamente-assim da reprodução social. De qualquer forma, a prioridade ontológica permanece sendo do trabalho e a relação entre este e as demais práxis sociais fundadas nele é de necessidade, de articulação necessária que não implica identidade. Lessa (2012b) cita como exemplo o Direito, extensível, desde que consideradas suas especificidades, a todas as formas de prática profissional.

O caso do direito é exemplar: surgido para atender à necessidade de organizar uma sociedade dividida em classes sociais e, deste modo, garantir a propriedade privada e a exploração do homem pelo homem, cumpre uma função tão importante nas sociedades de classe que, na sua ausência, nem poderíamos ter o trabalho escravo, nem o trabalho servil medieval, nem ainda o trabalho operário. O direito é uma práxis social imprescindível para que o trabalho seja realizado com base na exploração do homem pelo homem. Contudo, esta inegável relação histórica entre o direito e o trabalho não os identifica, apenas os articula. Se o direito cria as condições necessárias para que o senhor de escravo force o escravo a trabalhar, para que o senhor feudal extraia o mais-trabalho do servo e para que o capitalista explore o trabalho assalariado, não menos verdadeiro é que o direito não produz sequer os bens materiais necessários à sua própria reprodução, para não falar da reprodução da sociedade como um todo. Se o trabalho realiza o metabolismo entre o homem e a natureza, o direito compõe uma força especial de repressão que auxilia a classe dominante a organizar a sociedade de modo a levar adiante a exploração daqueles que trabalham. O mesmo, mutatis mutandis, pode ser dito da educação, (...) do serviço social, da arte, da filosofia, da política, (...) etc. (p. 88).

Desta forma, em uma cadeia de mediações cada vez mais extensa e complexa na medida em que as relações sociais de produção se tornam também mais complexas com o desenvolvimento das forças produtivas, toda a práxis social também (e, portanto, não apenas) se orienta para produzir a particular forma histórica de realizar a necessidade ontológica insuperável do ser social, a de fazer o intercâmbio com a natureza através do trabalho. Desta forma, o trabalho é determinado pela reprodução social (pois é a maneira concreta em que esta reprodução se dá o que determina a forma histórica do trabalho) no mesmo processo em que a determina (pois a realização do trabalho não apenas foi condição para que a reprodução tipicamente social pudesse surgir e se diferenciar da forma tão somente orgânica, mas sua continuidade é condição necessária sem a qual a reprodução social finda). Assim, todas as práxis sociais envolvidas na reprodução social são determinadas pelo trabalho e determinantes dele. É por isso que entre o trabalho e todas as outras formas de práxis social existe uma relação de necessidade (de sua determinação

reflexiva), mas não de identidade (ontologicamente, o trabalho é forma específica de práxis social, que funda as demais).

Se esta diferenciação das formas de práxis social é necessária em todas as sociedades de classes, é, porém, na sociedade capitalista – forma plenamente social, em que a relação mercantil requerida pela divisão do trabalho logrou tornar ―universal e dominante da mediação do comércio entre os homens [o] valor de troca puramente social‖ (LUKÁCS, 2013, p. 166 – 167) – que este processo atinge seu ápice. As forças produtivas atingiram tal nível de desenvolvimento que é possível reduzir a parcela da população que precisa se dedicar diretamente às atividades de trabalho no sentido estrito. Alteraram-se as relações mercantis de tal forma que se ―autonomizou‖ a esfera comercial e a esfera bancária da esfera produtiva: com o desenvolvimento da indústria, por exemplo, seu proprietário não consegue mais executar diretamente os atos de venda dos produtos, atividade que é ―terceirizada‖, criando um circuito econômico próprio, relativamente autônomo, ainda que necessariamente conectado ao produtivo. As próprias atividades produtivas se tornaram mais complexas e passaram a demandar atividades especializadas outrora executadas diretamente pelo proprietário, como as de contratar trabalhadores, organizar a produção ou controlar as finanças. Ocorreu o mesmo no interior do Estado, com a expansão e diversificação de suas atribuições, processo através do qual, por exemplo, psicólogas(os) são convocadas(os) a atuar naquela importante mediação nas sociedades capitalistas contemporâneas que é o campo das políticas sociais. Contribuiu também para este quadro de complexificação das atividades profissionais a possibilidade de acumulação de riqueza, na forma de capital, através da exploração econômica de atividades que não produzem riqueza, mas produzem mais-valor. Desta forma, o controle do metabolismo social (dos mecanismos de sua reprodução) passou a exigir um conjunto nunca tão complexo e diversificado de atividades, tendencialmente reduzidas a uma relação de assalariamento, que permite equipará-las todas, abstratamente, como ―trabalho‖.16

16 Abstração que atende à perspectiva do capital, cujo movimento de autovalorização torna indiferente as específicas funções exercidas pelas distintas práxis sociais, cujas diferenças ontológicas podem ser assim desconsideradas, importando tão somente sua lucratividade, sua capacidade de produzir mais-valor.

Tornam-se assim evidentes alguns dos aspectos comuns compartilhados pelo trabalho e pelas demais formas de práxis nele fundadas, na particularidade histórica das sociedades capitalistas: são atividades assalariadas e os sujeitos que as executam dependem da venda da sua força de trabalho para sua reprodução individual. Trata-se, em maior ou menor intensidade, de uma atividade estranhada. A mais importante característica comum, contudo, se encontra naquele aspecto formal apontado por Marx (2013) quando afirma que ―no final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, logo já existia idealmente. (...) A atividade laboral exige a vontade orientada a um fim‖ (p. 256). Este é o traço comum a todo ato concreto humano, que fundado no trabalho permite afirmar que este é a protoforma de todas as formas de práxis sociais: ser a objetivação de teleologias que agem sobre relações causais. Neste traço comum se revelam aquelas que Lessa (2012b) aponta como sendo as ―conexões ontológicas inerentes ao trabalho‖:

1) a ação sobre a natureza e seu resultado são sempre projetados na consciência antes de serem construídos na prática; 2) esta capacidade de idealizar (isto é, construir na ideia) antes de objetivar (isto é, construir objetivamente) possibilita a escolha entre as alternativas de cada situação e; 3) escolha feita, inicia-se a objetivação, que é sempre uma transformação da realidade; por isso toda objetivação produz uma nova situação, pois a realidade já não é mais a mesma (em alguma coisa ela foi transformada) (p. 32 – 33).

Por sua vez, entre o trabalho (pôr teleológico primário) e as demais formas de práxis social (pores teleológicos secundários) existem diferenças ontológicas essenciais. No trabalho, a ação teleológica se direciona para a causalidade dada naturalmente, com a função teleológica de alterar determinadas relações causais naturais para que da modificação destas resulte um produto. Assim, o trabalho reproduz a relação da humanidade com a natureza. No tipo de práxis social que é o fazer profissional de psicólogos, a ação se direciona à causalidade especificamente social, posta por atos teleologicamente orientados, com a função teleológica de influenciar os atos teleológicos de outros sujeitos para que da modificação destes resulte outra ação teleologicamente orientada a uma finalidade ou direção desejada. Assim, neste tipo de práxis social, se reproduz a relação dos seres humanos entre si. A delimitação destas diferenças ontológicas, a partir da função social distinta de

cada forma de práxis, é necessária para a precisa apreensão ontológica da sociedade capitalista, que passa pela compreensão da centralidade do trabalho, de que como este fundamenta a formação das classes sociais e de como isto determina as potencialidades e impossibilidades históricas, os interesses materiais e o horizonte ideológico de cada uma delas (LESSA, 2012b). No limite, é esta distinção que nos permite entender como a história humana é resultado exclusivo da ação humana em sociedade.

Porém, ainda que esta precisa distinção seja importantíssima, o que nos interessa diretamente nesta discussão é a maneira pela qual se distinguem entre os pores teleológicos primários e secundários aqueles três elementos que Marx (2013) aponta como os ―momentos simples do processo de trabalho‖: a atividade orientada a um fim, seu objeto e seus meios. No pôr teleológico secundário, caso do fazer profissional de psicólogas(os), cada um destes momentos é decisivamente mediado pela ideologia, tanto em sua função de orientação e explicação da vida quanto em sua função de instrumento nas lutas de classes.

Desde o princípio, o caráter concreto da ação é condicionado pela compreensão que o sujeito que age tem de qual é sua tarefa, de qual a finalidade a que se propõe, compreensão que é decisivamente determinante da percepção que tem das alternativas e possibilidades existentes e dos meios que serão mobilizados para atingir a finalidade fixada. Esta compreensão passa necessariamente pelo conjunto de ideias que ―auxiliam os homens na tomada de posição diante dos grandes problemas de cada época, bem como ante os pequenos e passageiros dilemas da vida cotidiana‖ (LESSA, 2007, p. 64). É assim no caso do operário e do psicólogo. À diferença do operário, porém, para o psicólogo a ideologia é uma mediação não apenas no polo do sujeito, mas também no do objeto da pôr teleológico: "o homem, suas relações, suas ideias, seus sentimentos, sua vontade, suas aptidões" (COSTA, 2006, p. 4). Como aponta Lessa (2012b), se para o operário ―está completamente fora de questão ‗convencer‘ a chapa de ferro a se comportar como carro‖ (p. 49), naquele tipo de práxis social que visa influenciar as escolhas alternativas assumidas por outros sujeitos, por sua vez, atua-se ―sobre relações sociais cuja forma e conteúdo dependem, também, daquilo que os próprios indivíduos pensam e sentem, da reação dos indivíduos a cada fato histórico‖ (p. 66). Aqui, portanto, a dimensão subjetiva da realidade é mediação decisiva em todos os momentos do processo.

Para avançar na compreensão desta questão – e adentrar na discussão sobre a relação entre atividade e consciência na dimensão teleológica da práxis – consideremos a problemática ontológica das formas de captura do real pela consciência que Lukács (2012b, 2013) denomina, seguindo Nicolai Hartmann, de intentio recta e intentio obliqua, que nos remete, por sua vez, à questão da necessidade de conferir sentido à vida cotidiana.

2.2 Intentio recta, intentio obliqua e a produção de sentidos sobre a

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