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Intentio recta, intentio obliqua e a produção de sentidos sobre a realidade

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2014 (páginas 116-121)

A DIMENSÃO TELEOLÓGICA DA PRÁXIS: A RELAÇÃO ENTRE CONSCIÊNCIA E ATIVIDADE

2.2 Intentio recta, intentio obliqua e a produção de sentidos sobre a realidade

Como abordamos quando tratamos da determinação ontológica do conhecimento, o trabalho coloca, em sua essência, a necessidade de que o sujeito que trabalha apreenda as cadeias causais envolvidas nos objetos de seu trabalho. Quanto mais for possível ao sujeito do trabalho conhecer o real, ―capturá-lo‖ pela consciência, reproduzi-lo idealmente como concreto pensado, maiores as probabilidades de sucesso em sua ação. Lukács (2012b, 2013), seguindo a pista traçada por Hartmann, denomina esta forma de aproximação pela consciência do objeto em-si de intentio recta. Aponta nela a forma de complexos sociais como a ciência e a possibilidade de construção de uma verdadeira ontologia. É importante ressaltar que se trata de uma aproximação, afinal não é necessário nem possível abarcar a totalidade do real pela consciência. Lukács ressalta ainda que se trata de um complexo que precisa ser apreendido em sua dimensão ontológica: não é o grau de correção ou de erro da apreensão da realidade pelo sujeito (ou seja, a dimensão gnosiológica) o que determina a intentio recta, mas sua função social, cuja gênese remete ao trabalho.

Contudo, o desenvolvimento do trabalho, ao produzir formas crescentes de socialização, cria necessidades que vão além dele, que não podem ser satisfeitas ou reduzidas a ele, ainda que estejam necessariamente ligadas a ele, mesmo se de forma muito indireta. Entre estas, a necessidade que Lukács (2013) denomina como sendo a de conferir sentido à vida. Discutimos anteriormente que a relação entre teleologia e causalidade no ser social é aquela

em que os atos concretos individuais são teleológicos, mas a totalidade social, síntese destes atos individuais em tendências sócio-genéricas, apresenta um desenvolvimento puramente causal. Portanto, para o indivíduo, as relações sociais nas quais se insere apresentam o mesmo caráter objetivo (ainda que se trate de uma forma distinta de objetividade) das relações com a natureza. Como exemplifica Lessa (2007), para o indivíduo as leis de mercado lhe são tão exteriores e independentes quanto uma montanha de minério de ferro. A realidade social assume assim a aparência de uma ―segunda natureza‖, de ser uma determinação externa diante da qual os atos singulares são, em si, pequenos ou impotentes para controlá-la, transformá-la ou direcioná-la a uma finalidade intencionada. A confrontação cotidiana com estas determinações que, em sua imediatiacidade parecem ser externas e arbitrárias do ponto de vista de sua individualidade, isto é, a confrontação com a contraditoriedade de uma realidade social em que o resultado de atos teleológicos é um processo causal no qual os atos individuais parecem ser indiferentes, produz a necessidade de conferir um sentido à realidade que justifique o processo total e nele também os atos singulares.

Há a tendência de perguntar, em toda e qualquer ocasião, ―para que‖ isso teve de acontecer justamente assim. ―Para que isso teve de suceder comigo?‖, ou: ―Para que tenho de sofrer tanto?‖, ―Para que ele teve de morrer tão cedo?‖. A cada ocorrência que de alguma maneira nos ―afeta‖ tendemos a perguntar assim, mesmo que seja apenas uma expressão de perplexidade e impotência. Pressupomos tacitamente que para alguma coisa isso deve ter servido; procuramos captar um sentido, uma justificativa. Como se já estivesse definido que tudo o que acontece deve ter um sentido (HARTMANN, 1951 apud LUKÁCS, 2012b, p. 152).

A resposta diante destas condições assume a tendência, em tudo distinta daquela da práxis que se origina no trabalho, de antropomorfizar a realidade social, atribuindo-lhe enquanto processo total uma finalidade que lhe confira sentido, uma teleologia como a que existe no (e somente no) ato singular. Assim, nas relações cotidianamente vivenciadas está o substrato para o impulso de criação de ―ontologias fictícias‖, que situam o ser humano diante de uma determinada relação com o existente de modo a conferir sentido à realidade, que Lukács, seguindo a distinção feita por Hartmann, denomina de intentio obliqua. Nesta forma de apreensão da realidade, Lukács identifica a origem de complexos como a religião, a filosofia e a arte. Também neste caso é preciso

situar esta forma de apreender subjetivamente a realidade não em termos lógico-gnosiológicos, isto é, em termos de ser esta compreensão do mundo correta ou falsa, mas em termos ontológicos, da sua efetiva função no interior da totalidade social, como forma pela qual os seres humanos tomam consciência das necessidades criadas socialmente pelo desenvolvimento do gênero humano e respondem a estas, como

(...) tendências contrárias no cotidiano que – embora seu conteúdo seja formado pela realidade em geral, embora estejam direcionadas para a realidade enquanto realidade – todavia desviam a atenção da fundamentação de uma ontologia correta, e isso não como ―erros‖ cometidos em casos isolados, mas como tendências necessariamente operantes na vida cotidiana, que, é certo, surgem e desaparecem histórico-socialmente, mas que, entretanto, em nada altera a influência sempre atual que exercem sobre o respectivo pensamento ontológico (LUKÁCS, 2012b, p. 151).

Contudo, não é apenas a objetividade do mundo que demanda ao sujeito um sentido. Pelo mesmo processo, a práxis social cria a necessidade de uma consciência voltada não apenas aos objetos, mas reflexivamente ao próprio sujeito consciente. Como aponta Lukács (2013), ―o homem que trabalha deve planejar antecipadamente cada um de seus movimentos e verificar continuamente, conscientemente, a realização do seu plano, se quer obter o melhor resultado concreto possível‖ (p. 129). Assim, a objetivação da posição teleológica exige que o sujeito controle não apenas as relações causais da objetividade a qual se dirige, mas também seu próprio corpo e seus hábitos, instintos e afetos. Por isso, é possível afirmar que o trabalho transforma o sujeito, não só porque, no trabalho, uma finalidade existe idealmente antes de realizar-se praticamente, mas também porque essa estrutura dinâmica do trabalho se estende a todos os atos singulares. Isso, por sua vez, requer que o sujeito assuma um distanciamento para consigo mesmo que é análogo ao que estabelece na relação com seu objeto. Aqui iniciamos a entrar no campo dos valores, da moral, da ética, da configuração da individualidade e do autocontrole. Mais uma vez, o caminho genético-ontológico evidencia como a práxis produz um campo de significações que justifica a realidade e orienta a ação dos sujeitos.

Segundo Lukács, as opções de autocontrole e de configuração da individualidade que todos os seres humanos, de uma forma ou de outra, necessariamente realizam a cada pôr teleológico, requerem uma justificação/legitimação que apenas pode ser dada, em última análise, por uma concepção de mundo (Weltanschauung). Desse modo, a

práxis cotidiana acaba produzindo, com todas as mediações necessárias, uma concepção genérica acerca do existente que, com maior ou menor consciência, termina por justificar cada uma das opções dos indivíduos. A avaliação de cada um de seus atos e, por extensão, de si próprio enquanto individualidade por último unitária está articulada à concepção mais geral de mundo da qual o indivíduo é portador (LESSA, 2012a, p. 158 - 159).

Em seu conjunto, esta produção ideal responde, portanto, concretamente, a necessidades colocadas pela sociabilidade humana, na forma de ―respostas genéricas que permitam ao indivíduo não apenas compreender o mundo em que vive, mas também justificar a sua práxis cotidiana, torná-la aceitável, natural, desejável‖ e que, nas sociedades classes, assume a particularidade de ―não apenas justificar, tornar razoável, operativa a práxis cotidiana, mas também fazê-lo de modo a atender aos interesses de classe‖ (LESSA, 2007, p. 69).

Em suma até aqui: O trabalho cria, como necessidade para sua realização, o impulso a que o sujeito apreenda idealmente o objeto sobre o qual age. Não se trata, contudo, de reflexo especular do objeto, pois a atividade de conhecer é determinada pela finalidade atribuída à ação pelo sujeito. Esta atividade de conhecer, determinada pelo caráter teleológico do trabalho, que pressupõe uma prévia ideação do resultado, possui inicialmente caráter mnemônico, mas avança para assumir também um especificamente humano caráter de mimese. Trata-se, portanto, de um momento subjetivo que faz o trabalho avançar para além da objetividade existente no início do processo. O trabalho cria, também como necessidade para sua realização, a necessidade de que o sujeito que age apreenda idealmente a si mesmo, pelo mesmo processo que acabamos de descrever. Assim, o trabalho e, por extensão, todas as práxis sociais nele fundadas são mediações que transformam o objeto e o sujeito.

O desenvolvimento cognitivo, incluindo a linguagem, permite que estes juízos sobre a realidade sejam generalizados, compartilhados e avaliados. Sendo o processo de produção de sentidos sobre a realidade uma tarefa social, alguns destes juízos tendem a prevalecer enquanto outros tendem a ser marginalizados e, no limite, descartados. Os motivos para isso são os mais diversos e o importante é destacar que isso conduz a formas de convenção, de consensos sobre a realidade. Sem descartar que objetivamente este campo de significações é contraditório e em constante disputa, estes consensos podem ser consensos genéricos, mas também consensos restritos (a uma classe, a

pequenos grupos, etc.). Sem prejuízo das variadas formas concretas em que isso se dá, o traço comum que destacamos é que a vida em sociedade exige alguma forma de consenso em torno dos sentidos atribuídos à realidade.

O desenvolvimento da cultura (que é inicialmente o desenvolvimento do trabalho, mas que dele assume relativa autonomia) permite que este repertório de respostas genéricas sobre a realidade seja legado, criando a possibilidade de um processo histórico. Cria também a possibilidade de um desenvolvimento relativamente autônomo destes repertórios de significações na medida em que cada vez mais os juízos individuais podem se basear não apenas na experiência individual, no contato empírico direto com a realidade, mas em juízos já existentes, aceitos sem que haja a rígida necessidade de que a cada momento se verifique sua plena comprovação. Neste sentido, um campo coletivo e heterogêneo de significações (que está sempre em movimento) se torna mediação entre os sujeitos singulares e o mundo, sem desconsiderar as distintas formas concretas desta relação.

Por sua vez, o resultado da práxis não necessariamente corresponde ao idealizado, não por "erro" de sua execução, mas por necessidade ontológica, seja porque o sujeito não pode dominar completamente todas as cadeias causais envolvidas (especialmente aquelas da causalidade social, em que ser resultado de atos teleologicamente orientados confere um grau maior de imprevisibilidade) seja porque a síntese dos atos singulares em legalidades sócio-genéricas apresenta um desenvolvimento causal cujo desenrolar pode ser em tudo distinto das intenções individuais de quem os realiza. Assim, a práxis tornada social cria a necessidade de respostas que não se reduzem à atividade de apreensão mais aproximada possível da legalidade própria aos objetos, mas também de conferir sentido ao processo total, que justifique, torne aceitáveis, naturais e desejáveis os atos singulares executados.

Desta forma, direta ou indiretamente, a práxis social – objetivação de teleologias que agem sobre relações causais naturais (pôr teleológico primário) ou relações causais sociais (pôr teleológico secundário) – cria duas formas distintas, mas articuladas, de apreensão subjetiva da realidade, determinada pela necessidade de orientar e justificar a práxis em condições concretas.

Com isso, buscamos assinalar as formas pelas quais uma dimensão subjetiva da realidade se relaciona reflexivamente com a ação humana sobre o

mundo (natural e social), e ainda mais nos pores teleológicos secundários, em que a ideologia é em todos os momentos uma mediação da ação concreta do sujeito. Ao introduzir a importante mediação da significação do mundo por parte do sujeito que age, buscamos assinalar que esta exerce uma função imprescindível e que esta significação não é apenas (o que significa que é também) um processo cognitivo, definido em termos lógico-gnosiológicos, mas, acima e antes disso, uma necessidade ontologicamente determinada pela práxis que se insere no curso do desenvolvimento de formas cada vez mais sociais de vida. Estas considerações permitem apontar, na análise da constituição da dimensão teleológica da práxis, o que consideramos essencial para que seu estudo não se torne um simulacro da realidade: o ser humano não pode ser reduzido a um ser do conhecimento, das ideias e das representações, da manipulação de códigos e signos linguísticos, pois é um ser da práxis – ativo, sensível e criador. Mas, a compreensão destas questões ficaria deformada sem se considerar as determinações essenciais deste processo em sua dimensão singular e, por consequência, como se articulam neste processo individualidade e sociabilidade. É o que passamos a fazer.

2.3. Necessidade, motivo, finalidade, significado e sentido: categorias

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2014 (páginas 116-121)