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Pobreza e “questão social”

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2014 (páginas 195-200)

OS PERCURSOS DA PESQUISA

PRINCÍPIOS

5.1 Pobreza e “questão social”

Discutimos no capítulo anterior que a ampla degradação das condições de vida dos trabalhadores no período que sucede a Revolução Industrial torna a pobreza um problema que precisa ser explicado pela economia política. O pauperismo se tornou, porém, mais do que uma questão incômoda. Tornou-se também uma questão perigosa. De forma cada vez mais evidente, a pobreza demonstrava demandar alguma forma de intervenção, seja porque evidencia a falência das promessas modernas de progresso e de igualdade (PAUGAM,

2003) ou porque se torna um risco de disrupção da ordem social (CASTEL, 1998).

Para compreender como se configura esta ameaça, é preciso resgatar a questão discutida anteriormente, de como a ação política coletiva dos trabalhadores organizados em sua luta contra o capital pode impor, em cada contexto concreto, barreiras ao desenvolvimento ―puro― das tendências econômicas que, sob este modo de produção, sempre são favoráveis ao capital. Como aponta Marx (2013), se a conformação das relações de produção tipicamente capitalistas se fez possível à base da espoliação e do uso explícito da força, incluindo o aparato repressivo (jurídico e bélico) do Estado, ―assim que a classe trabalhadora, inicialmente aturdida pelo ruído da produção, recobrou em alguma medida seus sentidos, teve início sua resistência‖ (p. 350). A resistência dos trabalhadores significou que o mesmo processo que concluiu a ascensão da burguesia ao poder político também foi marcado pela constituição do proletariado como um novo sujeito político coletivo, organizado em torno de demandas próprias e em oposição à burguesia. Um momento especialmente importante neste movimento de emergência do proletariado enquanto sujeito político, pois marca seu afastamento da burguesia ao lado de quem se posicionava no enfrentamento à aristocracia, foram os movimentos revolucionários de 1848, a ―Primavera dos Povos‖, que contaram com ampla participação de trabalhadores pobres e que tiveram desde o primeiro momento os comunistas na frente da cena, o que assustou os moderados liberais e mesmo alguns dos políticos mais radicais (HOBSBAWN, 1995). Como aponta Marx, os acontecimentos naquele ano produziram o efeito singular de unificar

todas as frações das classes dominantes, proprietários fundiários e capitalistas, chacais das bolsas de valores e varejistas, protecionistas e livre-cambistas, governo e oposição, padres e livre-pensadores, jovens prostitutas e velhas freiras, sob a bandeira comum da salvação da propriedade, da religião, da família e da sociedade! A classe trabalhadora foi por toda parte execrada, proscrita, submetida à [lei sobre os suspeitos] (MARX, 2013, p. 357).

As experiências políticas que se iniciam ali, e às quais se somam, por exemplo, a constituição e o fortalecimento de organizações operárias como sindicatos e partidos, a eleição de socialistas nos parlamentos europeus e a Comuna de Paris de 1871, colocam definitivamente em pauta a necessidade, do ponto de vista dos interesses burgueses, de afastar o espírito revolucionário que

lhe espreita como ameaça de seu fim. Neste processo, ―a classe operária surge como uma ameaça, não somente pela sua importância, mas também pelo risco de subversão do qual é portadora‖ (PIMENTEL, 2012, p. 12).

Este ingresso da classe operária no cenário político, ―exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado‖ (IAMAMOTO; CARVALHO, 1983, p. 77), marcada pela denúncia da cisão entre uma ordem jurídica e política sustentada no reconhecimento de direitos e uma ordem econômica que produz miséria em massa (CASTEL, 1998), levou à formulação da existência de uma ―questão social”, cuja principal expressão naquele momento era o pauperismo, que precisa ser enfrentada sob pena de não ser possível manter a coesão e a paz social. Sob o ponto de vista da governabilidade, ―o antagonismo de classes chegara a um grau de tensão inacreditável‖ (MARX, 2013, p. 363). Neste sentido, como apontado por Castel (1998),

A ―questão social‖ é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tentar conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (...) para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência (p. 30).

Antes de tratarmos das respostas produzidas no âmbito estatal a esta que foi denominada ―questão social‖, faremos apenas um breve comentário sobre seu caráter contraditório. Em sua formulação original – que Castel (1998) aponta ter aparecido pela primeira vez em um jornal francês no ano de 1831 – a ―questão social‖ tem um sentido conservador. Como aponta Netto (2001, p. 44), a própria elaboração da questão como uma ―questão social‖ é expressão de um ―reformismo para conservar‖, uma ―tergiversação conservadora‖ que propõe uma forma de colaboração de classes para combater as manifestações da sociabilidade burguesa sem tocar em seus fundamentos.26 Sua formulação

aparece como produto explícito daquilo que Lukács (2010a) chamou de ―decadência ideológica‖ da burguesia, processo ao longo do qual esta, tendo consolidado seu poder político, abandona seu caráter revolucionário para negar a luta de classes que outrora a levara a triunfar sobre o feudalismo e através da qual o proletariado passara a lhe ameaçar. Neste processo, foram liquidadas as

26

Por esta razão Netto (2001) propõe que se refira à ―questão social‖ apenas entre aspas, sugestão que adotamos aqui.

suas possibilidades de ―compreender as verdadeiras forças motrizes da sociedade, sem temor das contradições que pudessem ser esclarecidas‖, que foram substituídas por uma ―fuga numa pseudo-história construída a bel-prazer, interpretada superficialmente, deformada em sentido subjetivista e místico‖ (LUKÁCS, 2010a, p. 53). Em vez de ―encarar de frente a luta de classes entre burguesia e proletariado, (...) compreender cientificamente as causas e a essência desta luta‖, os ideólogos burgueses na fase de sua decadência recorrem aos ―mais vulgares e insípidos misticismos‖ (ibid., p. 53 – 54). Entre estes misticismos está a negação das contradições. Porém, como sua negação absoluta não pode se sustentar diante de qualquer contato mínimo com a realidade, as contradições aparecem como contraposições superficiais, rígidas e carentes de mediações. Outra importante característica desta decadência ideológica é a fragmentação da realidade a partir da ―especialização mesquinha‖ (ibid., p. 63) como método das ciências sociais:

Os ideólogos burgueses pretendem estudar as leis e a história do desenvolvimento social separando-as da economia. (...) Seria impossível ignorar a luta de classes como fato fundamental do desenvolvimento social, sempre que as relações sociais fossem estudadas a partir da economia. (...) Enquanto na época clássica havia um esforço no sentido de compreender a conexão dos problemas sociais com os econômicos, a decadência coloca entre eles uma muralha divisória artificial, pseudocientífica e pseudometodológica (LUKÁCS, 2010a, p. 64).

É assim que se pode afirmar a existência de uma ―questão social‖ que aparentemente não possuiria história e que não se relacionaria com as questões econômicas das sociedades capitalistas. As expressões das lutas de classes e sua fundamentação nas condições objetivas da economia capitalista são assim ocultadas na afirmação de que compõem uma ―questão social‖. Mesmo quando são afirmadas conexões entre a ―questão social‖ e a ―questão econômica‖, como, por exemplo, na concepção de pobreza enquanto resultado da insuficiência de desenvolvimento econômico, estas não passam de concatenações superficiais e mistificadas na medida em que não as apreende em sua historicidade, enquanto resultado da práxis social humana, enquanto momentos distintos de uma mesma totalidade que é a realidade social.

Contudo, apesar deste sentido conservador, a afirmação da existência de uma ―questão social‖ que é central e estrutural no modo de produção capitalista também pode ser disputada em um sentido que revela a historicidade das

formas de exploração e estranhamento impostas pelo capital e os elementos de resistência, de luta e de ruptura que a elas se contrapõem. Neste sentido, ―esse conceito está impregnado de luta de classes‖ (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 53) e permite compreender os desdobramentos concretos da ação política dos trabalhadores ao longo da história do capitalismo. Colocada desta forma, retornemos à discussão de como se produziram historicamente respostas políticas à ―questão social‖.

Abordamos anteriormente expressões agudas das lutas entre capital e trabalho, como as que se deram, por exemplo, na Comuna de Paris. Contudo, estas foram apenas momentos daquela que Marx (2013) caracterizou como ―longa e mais ou menos oculta guerra civil entre as classes capitalista e trabalhadora‖ (p. 370) e que teve como objetos privilegiados de disputa, no século XIX, a jornada e o valor do trabalho. Como aponta Marx, foi em torno da bandeira por uma ―jornada normal de trabalho‖ que os trabalhadores conquistaram, naquele período, as primeiras regulações legais do trabalho e da atividade industrial.

Tratava-se de questão central para os trabalhadores nas primeiras décadas que sucedem a Revolução Industrial. Como já vimos na descrição feita por Engels (2010) sobre as condições de trabalho na Inglaterra no início do século XIX, a jornada de trabalho podia chegar a 16 horas diárias, sem levar em consideração estratagemas através dos quais os industriais ampliavam de forma ilegal a jornada acordada. Estava ainda em questão o trabalho infantil, o trabalho noturno, o trabalho feminino, que evidenciavam o impulso do capital pela máxima autovalorização através da maior exploração possível do trabalho.

―Que é uma jornada de trabalho?‖ Quão longo é o tempo durante o qual o capital pode consumir a força de trabalho cujo valor diário ele paga? (...) O capital responde: a jornada de trabalho contém 24 horas inteiras, deduzidas as poucas horas de repouso sem as quais a força de trabalho ficaria absolutamente incapacitada de realizar novamente seu serviço. (...) O trabalhador, durante toda sua vida, não é senão força de trabalho, razão pela qual todo o seu tempo disponível é, por natureza e por direito, tempo de trabalho, que pertence, portanto, à autovalorização do capital (MARX, 2013, p. 337).

Neste contexto, a reivindicação de regulação da jornada de trabalho apareceu como um mote que organizava politicamente os trabalhadores, ao lado de outras bandeiras de democratização política que possibilitassem a participação dos operários (como sufrágio universal, remuneração de

parlamentares e fim do critério censitário de candidaturas). Em comum, estas reivindicações buscavam impor ao capital ―os grilhões da regulação legal‖ (MARX, 2013, p. 317); eram reivindicações dirigidas ao Estado e que se traduziam em termos de direitos.

Como discute detalhadamente Marx (2013, p. 305 – 374), em torno destas questões se estabeleceu um campo de lutas, para o qual convergiram os interesses do proletariado e também os interesses de certas frações da burguesia, que foi marcado por diversos avanços e retrocessos, por momentos de resistência passiva e também por momentos de radicalização política, do qual emergiram, entre as décadas de 1830 e 1860, uma sucessão de leis (as Factory Acts inglesas) que incorporaram gradualmente algumas das reivindicações dos trabalhadores, introduzindo mecanismos jurídicos de proteção a crianças e mulheres e limitando a jornada máxima de trabalho assim como definindo as condições para o seu cumprimento. A partir disso, a disputa entre capital e trabalho deixa de ser travada apenas no âmbito diretamente econômico (ainda que nunca o abandone, fique claro) para ser travada também no campo político como disputa no parlamento e na regulação pelo Estado.

Ainda que neste momento não se possa falar exatamente de políticas sociais, podemos localizar nesta legislação fabril inglesa o protótipo da regulação estatal dos direitos sociais, aqui em sua forma de direitos trabalhistas, mas que também seriam reivindicados pelo movimento operário em termos de ―direito à assistência social‖ e ―direito ao trabalho‖, como aponta Marx (2012a, p. 76). É importante destacar ainda que a disputa pela regulação da proteção social não se deu apenas em torno de seu objeto e de alcance, mas também de sua forma. Neste sentido, é significativa a maneira em que a questão da assistência social, que nos interesse aqui mais diretamente, foi tratada pela Comuna de Paris, em uma formulação que se aproxima da sua afirmação como direito e não como ação compensatória relegada ao âmbito privado da filantropia e da caridade:

A assistência comunitária deixará de ser considerada no futuro como caridade. Ela é um dever para nós, agentes do povo, de aliviar sua miséria, de apoiar sua coragem aos nossos esforços contínuos. (...) Sustentar as pessoas sem recursos, não por caridade, mas por justiça (Les Amis de la Comunne de Paris, 2010 apud GRANEMANN, 2011, p. 7).

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2014 (páginas 195-200)