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Gêneros e estilos da atividade: a atividade como drama, campo de conflitos, de resistência e de criação

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2014 (páginas 133-141)

A DIMENSÃO TELEOLÓGICA DA PRÁXIS: A RELAÇÃO ENTRE CONSCIÊNCIA E ATIVIDADE

2.4 Gêneros e estilos da atividade: a atividade como drama, campo de conflitos, de resistência e de criação

Leontiev (1984) apresenta alguns elementos para apreender como a produção de sentidos e de significados é determinada pela atividade que se

desdobra nas condições ideológicas nas sociedades de classes. Aponta que o significado, enquanto mediação entre a consciência individual e as formas sociais de consciência, possui uma existência objetiva, supraindividual, não psicológica e uma existência subjetiva, individual, psicológica, quando é vinculado por um sujeito concreto ao mundo objetivo no curso de sua atividade prático-sensível. Nesta segunda forma de existir, o significado não deve ser confundido com o sentido (que diz respeito à singularidade de vida do sujeito, seus motivos, suas necessidades, sua atividade). Na consciência individual, o significado não se realiza em si, mas como forma de realização do sentido, é o meio pelo qual o sentido pode se expressar. Neste processo, o indivíduo agrega um tanto de sentido pessoal ao significado compartilhado e é por isso que sentido e significado se engendram como expressões não-idênticas, mas necessariamente articuladas, de um mesmo processo de significação da realidade. O significado existe assim expressando o sentido (subjetivamente, pois objetivamente é um signo linguistico) e o sentido só pode se realizar através de um significado.

Contudo, os sentidos podem não encontrar um significado ―adequado‖ para se expressar, o que é importante nas disputas ideológicas que se produzem em uma sociedade de classes. Como a consciência individual é mediada pela atividade individual e pelo campo de significados (incluindo conceitos, representações, opiniões) compartilhados socialmente, pode haver divergência entre o sentido vivido e os significados disponíveis (ideologicamente formatados).

É assim porque o indivíduo não escolhe os significados. Como discute Leontiev,

O indivíduo não está simplesmente diante de uma ―vitrine‖ de significados entre os quais somente cabe escolher, mas estes penetram com energia em seus vínculos com a gente que forma o círculo de suas comunicações reais. Se em determinadas circunstâncias da vida o indivíduo se vê compelido a escolher, esta escolha não é entre os significados, mas entre posições sociais antagônicas que se expressam e se apreendem mediante estes significados. Na esfera das noções ideológicas, este processo é inevitável (1984, p. 122, tradução nossa).

Por não haver coincidência entre os sentidos que carregam a intencionalidade do sujeito e expressam sua singularidade e os significados através dos quais estes sentidos podem se expressar, e que lhe são

―indiferentes‖, Leontiev indica que a consciência individual é dramática. O drama da consciência se expressa por sentidos que não podem se ―manifestar‖ em significados ―adequados‖, por significados carentes de sua base vital e pela existência de motivos e finalidades conflitivos entre si. Como a consciência é determinada pela atividade, o drama da consciência expressa o drama da vida, sem que um possa ser reduzido ao outro.

A este mesmo caráter dramático se refere Clot (2010) quando aponta que a atividade

(...) é estruturalmente o teatro de um drama, no sentido cênico do termo: a atividade é que vincula ou desvincula o individual e o social, o sujeito e a organização do trabalho, os sujeitos entre si e esses sujeitos com os objetos que os mobilizam. Ela é a arena e a sede em que eles passam de um para o outro, a menor unidade do intercâmbio social (p. 11).

A atividade é uma ―arena‖ de disputa – de submissão, resistência e superação – porque é sempre dirigida, endereçada, em três sentidos distintos: a atividade é simultaneamente dirigida ao objeto, para as outras atividades que incidem sobre esse mesmo objeto e para as demais atividades do próprio sujeito. Nesta relação, a atividade é produzida sob esta tripla determinação, mas também é a apropriação desta determinação pelo sujeito no sentido de resistir a ela e negá-la, transformando-a para superá-la (CLOT, 2007). Para isso, a atividade mobiliza aspectos cognitivos e afetivos e se estrutura como campo de produção de sentidos e também de perda de sentidos, de potencialização e de despotencialização do sujeito, de alienação e também de resistência e criação. Por esta relação, a atividade nunca é apenas um efeito de condições externas nem tampouco apenas resposta a estas condições.

A atividade é, na realização efetiva da tarefa – a seu favor, assim como, às vezes, contra ela –, produção de um meio de objetos materiais ou simbólicos, de relações humanas ou, mais exatamente, recriação de um meio de vida. (...) A atividade – prática e psíquica – é sempre a sede de investimentos vitais: ela transforma os objetos do mundo em meio de viver ou fracasso ao fazê-lo. (...) Ela livra – sempre correndo o risco de fracassar nessa tentativa – o sujeito das dependências da situação concreta e subordina a si o contexto em questão (CLOT, 2010, p. 7 – 8).

Ao apontar que a atividade, no curso de sua realização, pode fracassar na tentativa de objetivar a ideação do sujeito que lhe orienta teleologicamente, Clot propõe alargar a compreensão da atividade para além daquilo que é

efetivamente realizado. Ao fazê-lo, apresenta elementos que entendemos ser fundamentais para compreender a dimensão teleológica da práxis.

Um primeiro elemento é como a atividade realizada se relaciona com a tarefa prescrita. A regulação da atividade na forma da prescrição de tarefas é uma mediação imprescindível do trabalho social e representa a cristalização das operações de planejamento e concepção da divisão do trabalho. A tarefa – prescrição do conjunto de operações e seus nexos que se espera serem realizadas em um determinado processo de trabalho – é a mais imediata referência objetiva da atividade para o sujeito e pode se naturalizar a ponto de aparentar estar, em relação a ele, em uma situação de completa exterioridade, como se o indivíduo fosse ―iniciado‖ em um meio em que a tarefa lhe precede e é indiferente à sua individualidade. Quando se refere à atividade profissional, isso fica muito claro no processo de formação/treinamento. Ao indivíduo que aprende um ofício é apresentado um conjunto de prescrições de conhecimentos, habilidades práticas, comportamentos definidos como necessários para que este possa executar as atividades definida, com sucesso no alcance dos objetivos propostos. Nos contextos concretos de trabalho, a prescrição aparece ainda na forma de regulamentações dos processos laborais, que se relacionam com aquelas prescrições construídas pelos próprios coletivos profissionais (e com isso se aproxima, mas não se confunde, com o gênero da atividade, conforme abordaremos adiante). A atividade prescrita é assim uma mediação decisiva da atividade realizada. No contexto de trabalho que abordamos nesta pesquisa, o da política pública de assistência social, identificamos que a dimensão da prescrição, encontrada nos marcos lógicos e legais que formatavam a política pública e também na forma de documentos de orientações técnicas (produzidos pelo Estado e também pelas corporações profissionais), é uma mediação central.18

Isso não significa, contudo, que a atividade realizada necessariamente se identifique com a atividade prescrita. Sendo verdadeiro que algum grau de

18 Podemos citar como exemplo disto um dos itens na pesquisa de 2010, realizada pelo CREPOP, sobre a atuação de psicólogos nos CRAS (CFP, 2010). Perguntados sobre a utilização do documento de referências técnicas para a atuação dos psicólogos nos CRAS, publicado pelo Conselho Federal de Psicologia em 2007, quase 85% dos participantes da pesquisa afirmaram conhecê-lo ao menos parcialmente e quase dois terços responderam que utilizam estas referências no cotidiano de trabalho.

prescrição tende a estar sempre presente no início da atividade, também é verdadeiro que o próprio curso da atividade, na medida em que é atividade transformadora, remete para além da tarefa. A atividade realizada confirma, renova, repõe, subverte, reorganiza a atividade prescrita. Por isso mesmo, a tarefa prescrita apenas aparenta ser externa e indiferente à atividade concreta dos sujeitos. Como aponta Clot (2007), se entre o prescrito e o realizado não há identidade, a prescrição também

(...) não é o contrário do trabalho; ela é o resultado de outras atividades, o resultado ―esfriado‖ das atividades de gestão e de concepção (...). A tarefa fixa na maioria das vezes, os compromissos firmados entre os projetistas e os gestores no tocante a representações que eles formam do real e dos operadores. De maneira indireta, a prescrição incorpora portanto o histórico das iniciativas desses operadores, incorporando-as ou, pelo contrário, defendendo-se delas. (...) Reutiliza o patrimônio social incorporado pelas técnicas, pelas línguas, pelas regras e pelos procedimentos institucionais, formalizações que ―retêm‖ a memórias das atividades (p. 95).

Contudo, a atividade real também não pode ser reduzida à atividade realizada. Clot propõe que a análise da atividade envolve também aquilo que não é realizado.

O real da atividade é, igualmente, o que não se faz, o que se tenta fazer sem ser bem-sucedido – o drama dos fracassos – o que se desejaria ou poderia ter feito e o que se pensa ser capaz de fazer noutro lugar. E convém acrescentar – paradoxo frequente – o que se faz para evitar fazer o que deve ser feito; o que deve ser refeito, assim como o que se tinha feito a contragosto. (...) As atividades suspensas, contrariadas ou impedidas – até mesmo, as contra-atividades – devem ser incluídas na análise (...). A atividade subtraída, ocultada ou recuada nem por isso está ausente, mas influi, com todo o seu peso, na atividade presente (CLOT, 2010, p. 103 – 104).

Ao incorporar a determinação exercida sobre a atividade por tudo aquilo que resulta não realizado, Clot busca evidenciar a atividade como um campo de conflitos vitais, nos quais se tece a existência dos sujeitos, que procuram reverter tais conflitos em intencionalidades visando se desprender deles. Assim, ao apontar que a atividade é dirigida ao objeto, às demais atividades que incidem sobre o objeto e às demais atividades do próprio sujeito, o que se explicita é que a atividade é o ―o teatro de uma luta‖ (2007, p. 99),

(...) um movimento desarmônico: a unidade de um desenvolvimento cujo equilíbrio transitório aparece ulteriormente, depois de uma luta, no ―ponto de colisão‖ entre vários desenvolvimentos possíveis. (...) A atividade real de trabalho consiste em ultrapassar as contradições existentes no interior desses três pólos de determinação, bem como

entre eles. É preciso partir da análise dos obstáculos da atividade dirigida e buscar compreender como os sujeitos tentam escapar a este empecilho. Os meios de sair dele podem ser encontrados num lugar que não as discordâncias criadoras da própria atividade dirigida, fazendo intervir recursos e restrições. (...) O trabalho consiste, a depender das circunstâncias, em enfrentar tensões entre esses três pólos usando cada um como base para se libertar dos dois outros a fim de permanecer sujeito da situação, sujeito de alguma maneira criativo (CLOT, 2007, p. 99 – 100).

Assim, a atividade humana é simultaneamente continuidade e ruptura. Para apreender a dimensão subjetiva deste seu movimento, Clot propõe as categorias do gênero e do estilo da atividade, buscando construir uma analogia com o que Bakhtin denomina de gênero e de estilo do discurso.

Bakhtin aponta que a relação entre o sujeito, a língua e o mundo não é direta, mas mediada por ―um estoque de enunciados previsíveis, protótipos das maneiras de dizer ou de não fizer‖ (CLOT, 2010, p. 120), através dos quais o sujeito pode organizar sua fala. Este campo de ―proto-significações genéricas‖ conserva a memória transpessoal de um determinado meio social e regula a relação dos sujeitos entre si e de cada um com a língua. Estes são os gêneros do discurso.

De forma análoga, Clot (2007, 2010) evidencia que, no curso da atividade, a mediação entre os sujeitos e entre os sujeitos e os objetos é realizada por um conjunto de respostas genéricas que, por princípio de economia da ação, possibilitam que não seja necessário criar cada uma das atividades a cada vez que o sujeito se coloca a agir. Estas respostas genéricas se expressam em regras não escritas que conservam a história de um grupo e a memória transpessoal e coletiva do trabalho. O gênero da atividade é, assim, um conjunto de proto-significações e proto-operações que compõem uma pré-atividade, um resumo proto-psicológico disponível para a realização da atividade. Os gêneros ―definem a filiação a um grupo e orientam a ação nele, oferecendo, fora dessa ação, uma forma social que re-presenta e a precede, prefigura-a e, desse modo, a significa‖ (CLOT, 2010, p. 12 – 125). Dessa forma, o gênero é também mediação entre os sujeitos da atividade e a tarefa prescrita. O gênero completa a tarefa, é a maneira pela qual um coletivo de trabalho assume uma tarefa, a torna sua e a redefine. O gênero é o conjunto de pressupostos sociais da atividade, de precedentes convocados por uma situação vivida e que antecedem a atividade.

Outra analogia apresentada por Clot (2007) é a do gênero como um entimema: premissa implícita, que não é formulada, mas subentendida.

O gênero é, de algum modo, a parte subentendida da atividade, o que os trabalhadores de determinado meio conhecem e observam, esperam e reconhecem, apreciam ou temem; o que lhes é comum, reunindo-os sob condições reais de vida; o que sabem que devem fazer, graças a uma comunidade de avaliações pressupostas, sem que seja necessário re-especificar a tarefa a cada vez que ela se apresenta. É como que uma ―senha‖ conhecida apenas por aqueles que pertencem ao mesmo horizonte social e profissional. Essas avaliações comuns subentendidas adquirem, nas situações incidentais, uma significação particularmente importante. De fato, para serem eficazes, elas são parcimoniosas e, na maior parte das vezes, nem sequer são enunciadas. Elas estão entranhadas na carne dos profissionais, pré-organizam suas operações e sua conduta; de algum modo, estão grudadas às coisas e aos fenômenos que lhes correspondem. Por isso, não exigem, forçosamente, formulações verbais particulares. O gênero, como intermediário social, é um conjunto de avaliações compartilhadas, que, de maneira tácita, organizam a atividade pessoal (CLOT, 2010, p. 121 – 122).

Clot (2007, 2010) aponta ainda que, enquanto conjunto de significações e operações pressupostas que mediatizam a relação do sujeito em sua atividade, organizando-a, o gênero é simultaneamente restrição e recurso. Os sujeitos agem por meio dos gêneros na medida em que estes satisfazem as exigências da ação. Isso implica que o gênero não é uma rígida determinação sobre a atividade individual: os sujeitos, ao agir, se afastam, ajustam, aperfeiçoam o gênero, o estilizam, o transformam não pela sua negação, mas pelo seu desenvolvimento. Desta forma, o estilo da atividade é o retrabalho do gênero em situação, a transformação do gênero na história real das atividades, sua metamorfose no curso da ação. O estilo é o movimento do sujeito da atividade na direção de uma dupla libertação: de si mesmo, de sua história e memória pessoal, sem deixar de ser seu sujeito; e também do coletivo, da história e da memória coletiva, sem deixar de ser seu agente. Contudo, ser a dimensão singular da atividade não torna o estilo um atributo psicológico privado: o estilo é constituído pelo gênero, pela história social da atividade.

É assim porque entre o estilo e o gênero dá-se necessariamente uma relação de determinação reflexiva. O estilo é determinado pelo gênero, do qual é realização singular em um contexto concreto. Também o gênero é constituído pelo estilo. A expressão concreta do gênero é sempre estilizada, pois o gênero se realiza no estilo, nos ―traços contingentes, únicos e não reiteráveis‖ da situação vivida (CLOT, 2010, p. 126). O estilo renova o gênero. O gênero vive

das contribuições estilísticas que o reavaliam e dinamizam. É no estilo que o gênero se transforma em recurso para agir em atividades reais.

Ao apontar isso, Clot evidencia aquele traço fundamental da atividade, que Lukács define como sendo "sempre atos concretos de um indivíduo concreto dentro de uma parte concreta de uma sociedade concreta" (2013, p. 284). O sujeito age sobre condições que não são absolutamente de sua escolha e estas condições determinam necessariamente as demandas vitais colocadas diante do sujeito e às quais ele é impelido a responder praticamente (determinação objetiva da atividade) e com as generalizações que se desenvolvem a partir destas respostas (determinação genérica da atividade). Isso não elimina, contudo, o caráter alternativo de todo ato concreto humano: este é sempre um sim, um não ou um "voto de abstenção" diante da demanda colocada. Exatamente por ter como base ineliminável as possibilidades objetivas colocadas pelo processo histórico sem se limitar a elas, a práxis humana é, na dinâmica que se dá entre suas determinações objetivas e subjetivas, simultaneamente continuidade e ruptura.

CAPÍTULO 3.

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2014 (páginas 133-141)