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O problema epistemológico do método

A DIMENSÃO SUBJETIVA DA REALIDADE: FUNDAMENTAÇÃO ONTOLÓGICA E DECORRÊNCIAS METODOLÓGICAS

1.3 O problema epistemológico do método

Como aponta Chasin (2009), a resolução, em Marx, do problema de como é possível conhecer e compreender a realidade reside na fundamentação ontoprática do conhecimento.

Identificado como atividade sensível, o homem é duplamente ativo efetiva e idealiza: se é capaz de efetivação sensível, então está capacitado também a antecipar idealmente sua efetivação; e se a forma ideal é permutável em mundo sensível, então leva em conta a lógica intrínseca ao objeto moldado, ou seja, o sujeito a usa e respeita enquanto tal, o que só é possível porque a conhece. O homem se faz ou é um ser prático, então, é capaz de conhecer, ao menos, o que permite fazer, confirmar sua natureza prática. (...) A prática subentende, traz embutida em si, indissoluvelmente, ao contrário da negação da atividade do pensamento, a presença de dois de seus momentos exponenciais: a subjetividade proponente – teleologia, e a subjetividade receptora – capacidade cognitiva (CHASIN, 2009, p. 100, grifos no original).

Nenhum ato teleológico é possível sem algum grau de apreensão da realidade, sem alguma ―captura, pela subjetividade, dos nexos e categorias ontológicas do ser-precisamente-assim existente, na medida minimamente necessária para a transformação almejada da causalidade em causalidade posta‖ (LESSA, 2012a, p. 88), pois ―somente sobre a base de um conhecimento ao menos imediatamente correto das propriedades reais das coisas e dos processos é que o pôr teleológico (...) pode cumprir sua função transformadora‖

(LUKÁCS, 2012b, p. 288). Teleologia não é ―vaga aspiração ou mero desejo‖ (CHASIN, 2009, p. 121) – a realização da finalidade pressupõe algum grau de apreensão da legalidade própria da malha causal na qual se quer intervir, assim como efetivas possibilidades de realização.

Por sua vez, é exatamente a objetividade da realidade que permite que o sujeito se aproprie dela idealmente. Somente é possível conhecer sobre um objeto o que é, como se formou, como se desenvolveu e como ir além, porque este existe objetivamente e possui, portanto, história (MOREIRA NETO, 2008). Neste sentido, o conhecimento se submete ontologicamente ao objeto conhecido, ou, como formula Lukács (2012b, p. 304), ―é a própria essência da totalidade (...) que prescreve o caminho a seguir para conhecê-la‖.

Porém, a delimitação correta deste complexo implica a resolução de dois de seus desdobramentos principais: [1] o conhecimento não é a reprodução exata do real no pensamento, o que significa dizer que a necessária relação entre conhecimento e realidade não é uma relação de identidade, mas uma relação de unidade que preserva seus estatutos ontológicos específicos; [2] o conhecimento, ainda que implique algum grau de apreensão da realidade, não garante uma compreensão adequada da objetividade que busca conhecer, podendo não superar a objetividade imediatamente aparente, o que implica na diferenciação entre o conhecimento cotidiano e o conhecimento científico.

Não há relação de identidade entre o conhecimento e a realidade conhecida, ainda que as categorias possam estar presentes ―tanto na realidade como na cabeça‖, o que lhes permite expressar ―formas de ser, determinações da existência‖ (MARX, 2011c, p. 59). Não há coincidência porque ―o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental (...), de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto‖ (ibidem, p. 54 – 55).

Para Lukács (1966, 2013), a reprodução da realidade pela consciência tem caráter de reflexo/espelhamento. Ciente do potencial de incompreensão do termo ―reflexo‖, por remeter ao determinismo apregoado pelo marxismo vulgar, Lessa (2012a) esclarece que por reflexo não se entende a submissão mecânica da subjetividade ao real, mas uma forma ativa de apropriação do real pela consciência, que em um processo de constante aproximação não se converte em identidade ou em mera cópia do real. Como afirma Lukács,

No espelhamento da realidade como condição para o fim e o meio do trabalho, se realiza uma separação, uma dissociação entre o homem e seu ambiente, um distanciamento que se manifesta claramente na confrontação entre sujeito e objeto. No espelhamento da realidade a reprodução se destaca da realidade reproduzida, coagulando-se numa ―realidade‖ própria da consciência. (...) Não é possível que a reprodução seja semelhante àquilo que ela reproduz e muito menos idêntica a isso. Pelo contrário, no plano ontológico o ser social se subdivide em dois momentos heterogêneos, que do ponto de vista do ser (...) são até mesmo opostos: o ser e o seu espelhamento na consciência. Essa dualidade é um fato fundamental no ser social (LUKÁCS, 2013, p. 66).

A dualidade entre o real e o pensado que se dá no fenômeno social que Lukács assim denomina reflexo é um traço ontológico essencial da processualidade social, que realiza a distinção entre sujeito e objeto na relação gnosiológica. Neste sentido, o conhecimento não é aproximação do subjetivo ao objetivo, muito menos sua submissão, mas a plena reprodução de sua distinção ontológica (LESSA, 2012a).

Contudo, a despeito de todo o esforço feito por Lukács para garantir a dinâmica dialética desse processo, sua denominação como um reflexo da realidade pela consciência é problemática. Como aponta Mészáros (2011a), esta é uma metáfora, assim como as de ―base e superestrutura‖ e ―ação recíproca‖, que, se tomada literalmente, acaba por imprimir uma direção mecânica e prejudica o entendimento da complexidade das determinações. Fazendo-se necessária enquanto construção conceitual provisória, deve assim ser descartada em algum momento da análise conforme esta avança na apreensão das determinações e sua articulação. Trata-se, portanto, de ―símile provisional em si, que pode somente servir de ponto de partida para a explicação flexível e dinâmica requerida‖ (MÉSZÁROS, 2011a, p. 45). Sem resolver por completo esta questão, basta apontar, neste momento, que o essencial aqui é

como se dá essa apropriação a partir das bases materiais concretas, garantindo que a produção subjetiva não se constrói independentemente dessa base material. Ao mesmo tempo garantindo a (relativa) autonomia da construção subjetiva que permite pensar o mundo e sem a qual não haveria possibilidade de ação teleológica (FURTADO, 2011, p. 72).

As reproduções da realidade pelo pensamento não são ―cópias quase fotográficas, mecanicamente fiéis da realidade‖ porque a atividade de conhecer é sempre interessada, determinada ―pelos pores de fim, (...) pela reprodução social da vida‖ (LUKÁCS, 2013, p. 67). Também porque esta dimensão subjetiva

age efetivamente sobre a dimensão objetiva da realidade, se constituindo no instrumento que permite o surgimento de novas objetividades no ser social, com caráter de possibilidade e de alternativa (ibid.). É desta forma que a consciência se constitui em mediação sem a qual não há qualquer continuidade do ser social, sem que seja, porém, sua categoria fundante (LESSA, 2012a). Em suma, retomando a formulação de Marx e Engels (2012),

Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos (...). A consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real (p. 94).

A relação de não-identidade entre a realidade e o conhecimento se expressa também no fato de que, ainda que este necessariamente implique em algum grau de apreensão da objetividade que se busca conhecer, pode não ser mais do que a apreensão do que está imediatamente dado, da aparência da realidade e não de sua essência. O reconhecimento da diferenciação e da necessária relação entre estas duas formas de apresentação da realidade é imprescindível para a resolução do problema de como é possível conhecê-la.

Aparência e essência se distinguem na medida em que

as formas fenomênicas da realidade (...) como conjunto de representações ou categorias do ―pensamento comum‖ (...) são diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com o seu núcleo interno essencial e o seu conceito correspondente (KOSIK, 2011, p. 14).

Esta distinção não significa, contudo, que a aparência corresponda a uma camada mais superficial da realidade, sob a qual se esconderia a essência enquanto verdade oculta a ser descoberta (KOSIK, 2011). A relação entre aparência e essência não é imanente. Tampouco deve se tomar aparência como sinônima de falsidade e essência como sinônima de verdade. Aparência e essência possuem o mesmo estatuto ontológico, são igualmente reais e verdadeiras (LESSA, 2012a).

A emergência da aparência e da essência enquanto formas distintas de apresentação da realidade se fundamenta na práxis, a partir de formas distintas de apreensão da realidade objetiva pela atividade prático-sensível humana. Não se trata, portanto, de apenas duas formas e dois graus de conhecimento

distintos, ―mas especialmente e sobretudo duas qualidade da práxis humana‖ (KOSIK, 2011, p. 13).

A práxis cotidiana e o senso comum que lhe corresponde ―colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las‖ imediatamente e determinam nos fenômenos uma aparência concreta que deve, contudo, ser apropriadamente denominada pseudoconcreticidade, formada pela práxis fetichizada que oculta nos objetos o seu caráter de produto da atividade social humana, fixando nestes a aparência de objetos naturais, e pelos reflexos dos fenômenos na consciência na forma de representações comuns (KOSIK, 2011, p. 14 – 15). Desta forma,

os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana. A práxis utilitária cria ―o pensamento comum‖, (...) forma ideológica do agir humano de todos os dias (ibid., p. 19).

Para a definição deste problema, é preciso, portanto, definir anteriormente como se pode entender, de forma materialista, histórica e dialética, a cotidianidade – a qual corresponde formas específicas de práxis e de reflexo da realidade nas quais aparência e essência se apresentam cindidas.

O cotidiano, a vida do dia-a-dia, ―o alfa e o ômega da existência de todo e cada indivíduo‖ (NETTO, 1989, p. 67), o ―mundo da intimidade, da familiaridade, da experiência, da repetição, do cálculo e do domínio individual‖ (KOSIK, 2011, p. 81), é o nível de reprodução da realidade em que se dá o processo de reprodução direta do indivíduo enquanto tal e, consequentemente, de reprodução indireta da sociedade como um todo (HELLER, 1992). O cotidiano não é, portanto, uma vida privada em oposição a uma vida pública, uma vida profana em oposição a uma nobre ou o comum em oposição ao histórico (KOSIK, 2011), mas o nível indispensável de tarefas necessárias à reprodução direta da vida individual. A vida cotidiana é, portanto, insuprimível e somente pode ser suspensa temporariamente (NETTO, 1989). Mesmo as formas não cotidianas de práxis e de reflexo emergem da cotidianidade, quando esta se torna de alguma forma problemática (KOSIK, 2011), e necessariamente retornam a ela (LUKÁCS, 1966; HELLER, 1992).

O cotidiano apresenta tanto características gerais (que são, contudo, trans-históricas e não meta-históricas), oriundas daquela relação específica entre causalidade e teleologia no ser social que determina o ser humano como ―ser que dá respostas‖ (LUKÁCS, 2009, 2010b), quanto uma forma histórica específica, que no modo de produção capitalista, torna a cotidianidade a dimensão por excelência da alienação (HELLER, 1992). Esta advertência é necessária para esclarecer que ainda que a exposição que faremos, ao se orientar pelo objetivo estabelecido, privilegie os aspectos gerais, esta não desconsidera que a forma histórica específica da cotidianidade na sociabilidade capitalista exacerba estes aspectos que determinam a cisão, na práxis, entre aparência e essência da realidade.

Enquanto campo de atividades necessárias à reprodução direta do indivíduo, com a especificidade histórica do modo de produção capitalista, a cotidianidade é estruturada ontologicamente por apresentar um conjunto heterogêneo de tarefas cuja resolução demanda uma forma de pensamento e um comportamento pragmáticos (HELLER, 1977, 1992). O pragmatismo – unidade imediata entre teoria e prática (LUKÁCS, 1966) – torna-se uma exigência no cotidiano ao passo que este conjunto heterogêneo de tarefas exige a participação do ―homem inteiro‖, de todos os aspectos da individualidade, demandando a mobilização de um conjunto de capacidades que, por esta heterogeneidade, não podem ser realizadas em toda a sua intensidade (HELLER, 1992). O pragmatismo que emerge assim da heterogeneidade do cotidiano implica, por sua vez, que seja desnecessário ou mesmo inviável questionar sobre a realidade quais seus motivos e sua gênese histórica. A atividade cotidiana, a operação dos objetos no cotidiano, prescinde de uma elaboração teórica. Mais do que desnecessária, porém, esta elaboração pode mesmo impossibilitar a ação cotidiana, como aponta Heller (1977) citando Espinosa: ―O homem morreria de fome e sede caso se negasse a comer e a beber antes de ter alcançado uma demonstração perfeita da utilidade da comida e da bebida" (p. 296). Desta forma, a práxis cotidiana é fundamentalmente utilitária e economicista, tendendo os padrões de pensamento e de comportamento a ser mantidos na medida e apenas na medida em que se avalia que funcionam adequadamente (LUKÁCS, 1966). Mesmo as formas não-cotidianas de apropriação da realidade mantêm, de certa forma, esta

fundamentação pragmática: a atividade teórica começa ali onde as formas cotidianas de pensar e agir deixam de resolver com êxito as tarefas necessárias (HELLER, 1977).

Estas determinações fundamentais da vida cotidiana atribuem-lhe, como aponta Heller (1992), características como a espontaneidade (a realização das atividades cotidianas imprescindíveis à produção e reprodução da vida social dificultam, ou mesmo impedem, a reflexão sobre o conteúdo de cada uma), a ação orientada probabilisticamente (não há tempo ou necessidade de calcular, com segurança, as possíveis consequências de cada ação, bastando que se estabeleça entre ação e consequência uma relação, ainda que incorreta, de probabilidade) e o ―manejo grosseiro do ‗singular‘‖ (não havendo tempo para analisar todos os aspectos das situações singulares que precisam ser resolvidas, os casos singulares são rapidamente subsumidos a alguma universalidade). A orientação probabilística e a ultrageneralização (que subsume o singular ao universal) dependem, portanto, de alguma forma de referência para a ação cotidiana e, desta forma, como aponta Lukács (1966), nesta o reflexo subjetivo da realidade é determinado, por um lado, pela necessidade de decisões instantâneas e fugazes e, por outro, pelos fundamentos rígidos das tradições e costumes.

O pensamento cotidiano se caracteriza, assim, por ocultar as mediações que o constituem, vinculando imediatamente alguma forma de teoria (de concepção e compreensão da realidade) e de prática. Mesmo as formas mediatizadas de compreensão e ação sobre a realidade, ao se estabelecerem no cotidiano, perdem seu caráter de mediação e assumem aparência de dados imediatos (LUKÁCS, 1966). A apreensão subjetiva do mundo necessária à economia da vida cotidiana, a das representações comuns, se dá ―com base em seu funcionamento prático (e não com base em sua essência objetiva)‖ (ibid., p. 45). A distinção entre sujeito e objeto, fundada no trabalho por necessidade ontológica (o trabalho pressupõe alguma forma de reconhecimento, por parte do sujeito que trabalha, de que sua atividade se direciona para algo que lhe é externo e distinto), determina no pensamento cotidiano um ―materialismo espontâneo‖:

Todo trabalho supõe um complexo de objetos, de leis que o determinam em sua espécie, em seus movimentos necessários,

operações, etc., e a consciência humana trata espontaneamente tudo isso como entidades que existem e funcionam independentemente dela (LUKÁCS, 1966, p. 46).

Esta forma específica de práxis, no cotidiano, permite assim que a realidade possa ser percebida de forma relativamente descolada de sua objetividade histórica. Permite que se atribua à realidade uma concreticidade que é pseudoconcreta, aparente, por não corresponder a esta objetividade histórica. Neste sentido, a distinção entre aparência e essência na realidade objetiva é produto da práxis humana.

A essência reside na objetividade histórica. Longe de ser a verdade última sobre o fenômeno, é ―o complexo de determinações que permanece ao longo do desdobramento categorial do ser; (...) o lócus da continuidade‖ (LESSA, 2012a, p. 45), sua historicidade. Esta relação de continuidade, que pode ser apreendida pela práxis crítica, é o que a distingue da aparência. Isto não significa, contudo, que a aparência é mero desdobramento da essência, pois entre as duas formas existe uma relação necessária, de determinação reflexiva, na medida em que ―a essência apenas pode se desdobrar concretamente através da mediação do ser-precisamente-assim das formas fenomênicas a cada momento existentes‖ (idem) e que ―as formas singulares, fenomênicas, (...) são também (portanto, não são apenas) portadoras das determinações mais genérico-essenciais‖ (ibidem, p. 47).

A negação da diferença entre aparência e essência e de sua necessária relação de determinação reflexiva, conforme produzida pela práxis utilitária cotidiana que toma a aparência imediata do fenômeno como sua totalidade, é o que determina na aparência o seu caráter pseudoconcreto.

No mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece. (...) A realidade é a unidade do fenômeno e da essência. Por isso a essência pode ser tão irreal quanto o fenômeno, e o fenômeno tanto quanto a essência, no caso em que se apresentam isolados, e em tal isolamento, sejam considerados como a única ou ―autêntica‖ realidade (KOSIK, 2011, p. 16).

Compreender a realidade em sua essência, em sua concreticidade, passa, portanto, por destruir sua pseudoconcreticidade, afirma Kosik (2011), isto é, por delimitar adequadamente a distinção entre aparência e essência e sua necessária relação de determinação mútua. Para isso, é necessário apreender

nos fenômenos o seu caráter mediato, enquanto momento no interior da totalidade concreta do ser social, enquanto produto da práxis humana. Essa necessidade implica o método. Como pontua Marx (1986, p. 271), a necessidade da ciência decorre exatamente de não haver coincidência imediata entre a forma de manifestação dos fenômenos (sua aparência) e sua essência.

O método que permite destruir a pseudoconcreticidade produzida pela práxis cotidiana e apreender os fenômenos em sua essência não pode ser mera contemplação, mas atividade prático-sensível, modalidade específica de práxis que permite compreender a realidade (KOSIK, 2011). Reafirma-se assim a fundamentação ontoprática de toda forma de conhecimento, incluindo o científico. Subordinado o procedimento de conhecer ao próprio objeto a ser conhecido, isto é, considerando que a questão gnosiológica do método se subordina à questão ontológica, o método que permite apreender a essência dos fenômenos deve possibilitar a reprodução ideal dos nexos próprios ao objeto que se busca conhecer, em seu caráter concreto enquanto ―síntese de múltiplas determinações‖ (MARX, 2011c, p. 54). Enquanto tal, o método deve ser ―o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental‖ (idem).

Antes de avançar na delimitação do método que permite a reprodução ideal do concreto como concreto pensado, um breve parênteses para abordar a primazia ontológica do objeto sobre o conhecimento. Como já apontamos, as categorias devem exprimir ―formas de ser, determinações de existência‖ (ibidem, p 59). Isso aponta o caráter histórico das categorias, produzidas no desenvolvimento histórico objetivo, ―manifestas nas inter-relações práticas do mundo social antes de poderem ser conceitualizadas‖ (MÉSZÁROS, 2011a, p. 33). Isso significa dizer que as abstrações construídas neste percurso de apreensão do concreto não são determinadas pelo sujeito do conhecimento, mas pelo próprio objeto, isto é, ―o pensar, por meio de suas representações, (...) isola na totalidade do real aspectos que essa própria totalidade diferenciou‖ (GIANNOTTI, 2013, p. 62). Para elucidar esta questão, recorremos novamente ao exemplo da categoria ―trabalho‖.

Como aponta Marx (2011c), o trabalho pode parecer uma categoria muito simples. Poderíamos dizer que é uma categoria de identificação empírica aparentemente óbvia, mesmo autoevidente. Além disso, o entendimento da

universalidade do trabalho, enquanto ―trabalho em geral‖ e não enquanto gênero específico de atividade de trabalho, é ideia muito antiga. Contudo, somente atendidas duas condições sociais, em um desenvolvimento histórico específico, foi possível conceber as diversas atividades que entendemos como trabalho como sendo simplesmente ―trabalho‖. A primeira destas é a existência de ―uma totalidade muito desenvolvida de tipos efetivos de trabalho, nenhum dos quais predomina sobre os demais‖ (MARX, 2011c, p. 57), do que se conclui que as abstrações mais gerais requerem um desenvolvimento concreto a tal ponto rico que possibilite que cada caso deixe de ser pensado como uma forma particular e que se abstraia, assim, aquilo que aparece como comum a todos. O desenvolvimento da abstração não é, porém, mera atividade lógica ou gnosiológica, o que nos leva à segunda condição apontada por Marx: um contexto sócio-histórico em que as atividades de trabalho se tornaram concretamente indiferentes e que, por isso, puderam ser abstraídas.

A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo determinado de trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação da riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em uma particularidade (MARX, 2011c, p. 57 – 58).

Portanto, somente no modo de produção capitalista, em que efetivamente é indiferente ao trabalhador o gênero específico de sua atividade de trabalho, a abstração do trabalho enquanto categoria pôde se constituir como verdade prática.

Esse exemplo do trabalho mostra com clareza como as próprias