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4.2 Fundamentos para a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais

4.2.3 Direitos fundamentais enquanto princípios objetivos

Um terceiro fundamento, com grande força dogmática, é o que equipara os direitos fundamentais à condição de princípios objetivos.

Muito bem, as constituições democráticas contemporâneas preveem de modo geral em seus textos, um catálogo de direitos fundamentais, que têm natureza de direitos públicos subjetivos, como também de valores da comunidade juridicamente objetivados. Desse modo, a eficácia desses direitos fundamentais entre particulares, encontra fundamento na sua dimensão objetiva, na medida em que os direitos fundamentais exatamente pelo seu caráter objetivo desvinculam-se da relação imediata estabelecida entre o Estado e o particular, estendendo-se de forma universal, ou seja, em todas as direções e âmbitos do direito.

A forma e conteúdo da vigência universal dos direitos fundamentais é de autêntica norma objetiva, portanto, sem um objeto de regulação definido, nem destinatários delineados de forma precisa178.

É a dimensão objetiva que atribui aos direitos fundamentais a condição de valores objetivos da comunidade, fruto da conciliação de diferentes interesses, próprios de numa sociedade pluralista e democrática que visa o alcance de objetivos comuns.

178 “A teoria da dupla dimensão – a subjetiva e a objetiva – dos direitos fundamentais é, ao que parece, a construção teórico-dogmática mais fértil e útil do Tribunal Constitucional alemão em matéria de direitos fundamentais. É o ovo de Colombo da dogmática dos direitos fundamentais do segundo pós-guerra. A partir dela, fundamenta-se o efeito irradiante dos direitos fundamentais, os direitos fundamentais como direitos à proteção do indivíduo e deveres de proteção do Estado (mandamentos de atuação estatal), a vinculação positiva do legislador aos direitos fundamentais e a vinculação dos particulares a direitos fundamentais.

A teoria da dupla dimensão dos direitos fundamentais é formulada já na clássica sentença sobre o caso Lüth, em 15 de Janeiro de 1958.

Nessa sentença, primeiramente o Tribunal Constitucional alemão reafirma a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais: “sem dúvida, os direitos fundamentais têm por objetivo, em primeiro lugar, assegurar a esfera de liberdade dos particulares ante intervenções do poder público; são direitos de defesa (Abwehrrechte) do cidadão ante o Estado. Isso deriva tanto do desenvolvimento histórico-espiritual da ideia dos direitos fundamentais, como dos fatos históricos que têm levado à recepção dos direitos fundamentais nas constituições dos Estados. E tal sentido é o que têm também os direitos fundamentais da GG (‘Grundgesetz’, Lei Fundamental de 1949), que com sua posição preferente querem afirmar a primazia do homem e de sua dignidade ante o poder do Estado. A isso responde que o legislador haja arbitrado o remédio especial de defesa desses direitos, die

Verfassungsbeschwerde, somente contra os atos do poder público”.

À ratificação dos direitos fundamentais como direitos subjetivos de liberdade do particular ante o Estado, contudo, segue-se a descrição da dimensão objetiva aos direitos fundamentais: “não obstante, é igualmente certo que a GG, que não quer ser neutra ante os valores, no título referente aos direitos fundamentais também instituiu uma ordem objetiva de valores e expressou um fortalecimento principal dos direitos fundamentais. Esse sistema de valores, que tem seu centro no livre desenvolvimento da personalidade humana e sua dignidade no interior da comunidade social, deve reger como decisão constitucional básica em todos os âmbitos do direito; dele recebem diretrizes e impulso a legislação, a administração e a jurisdição. Dessa forma, influi evidentemente também sobre o direito civil; nenhuma disposição jurídico-civil deve estar em contradição com ele e todas elas devem interpretar-se conforme ao seu espírito” (STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais.São Paulo: Malheiros, 2004. p. 105-106).

Quando se diz que os direitos fundamentais consagram uma ordem objetiva de valores, busca-se com tal afirmação, sua retirada do campo subjetivo, em consagração de enunciados valorativos, inerentes a uma comunidade, em determinado momento histórico.

Entretanto, falar de valores objetivamente, no contexto de uma sociedade plural, justifica-se como sustentáculo do argumento de que é exatamente a diversidade desses valores que influenciarão as atuais cartas constitucionais.

O Tribunal Constitucional Alemão segundo Hesse179, quando atribui aos direitos fundamentais um caráter jurídico-objetivo, o faz com supedâneo numa teoria axiológica dos próprios direitos fundamentais, muito embora essa teoria axiológica tenha sido objeto de severas críticas pela dogmática jurídica alemã180.

Muller181 condena a orientação axio-sistêmica como doutrina interpretativa dos direitos fundamentais, que considera irracional e indutora ao pensamento decisionista, por fundamentada em representações valorativas privadas dos juízes.

Para o citado autor, os valores são extremamente controvertidos, sobretudo em uma sociedade pluralista como a atual, de modo que em nome dos valores, garantias jurídicas subjetivas seriam interpretadas como topoi ideológicos. Sustenta ainda que os direitos humanos não são valores, mas normas de modo que subjacentes a eles encontram-se representações de valores como dignidade, liberdade e igualdade de todos os seres humanos. Entretanto, no momento em que são positivados pela constituição, passam a condição de direito vigente, de modo que cabe ao jurista e intérprete observá-los como normas, posto que do contrário, o exegeta incorreria no erro de desvalorizá-los.

179HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha.Porto Alegre: Ed. S. A. Fabris, 1998. p. 239.

180 “Desde um ponto de vista estritamente jurídico, um dos principais críticos foi Forsthoff (1902-1974). Para ele, quem se adentra no campo dos valores aceita um ponto de vista metodológico e sobreordenação, a sub- ordenaçãoea mutação dos valores mesmos. Por isso, o valor é um fator de instabilidade de primeira grandeza: uma interpretação da Constituição orientada aos valores porta consigo a desestabilização do direito constitucional sob o ponto de vista do método” (Apud STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais.São Paulo: Malheiros, 2004. p. 100).

“Substitui-se o uso do método jurídico pelo referimento – em regra, diletante, segundo Forsthoff – à filosofia dos valores; a interpretação jurídica dá lugar à interpretação filosófica. Em outro texto, Forsthoff alerta para o fato de que a interpretação da Constituição e, sobretudo, dos direitos fundamentais como um sistema de valores – modelo de interpretação inspirado no método científico-espiritual de Rudolf Smend – [...] torna inseguro o direito constitucional, dissolvendo [...] a lei constitucional na casuística (FORSTHOFF, 1973,p. 224), porque o caráter formal-normativo do direito constitucional, isto é, a sua positividade jurídico-normativa, é substituída por uma suposta normatividade constitucional estabelecida caso a caso. Dizendo de outro modo, a dimensão jurídico-formal do direito constitucional, o seu status de lei constitucional, é afastada, sem mais, por uma dimensão substancial determinada caso a caso segundo uma hierarquia de valores. O direito constitucional perde a sua estrutura jurídica unitária” (Apud STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais.São Paulo: Malheiros, 2004. p. 107-108).

181

MÜLLER, Friedrich. Interpretação e concepções atuais dos direitos do homem. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 15, 1995, São Paulo. Anais ...São Paulo: JBA Comunicações, 1995. p. 535.

Num contraponto a este pensamento, na década de 80, Alexy182 constrói a teoria estrutural dos direitos fundamentais, com fundamento na teoria dos princípios.

Reabilita a teoria axiológica dos direitos fundamentais, que para ele equivale à teoria dos princípios pelo menos do ponto de vista estrutural, em razão do que o autor converte a primeira na segunda, consagrando os direitos fundamentais como princípios ou normas objetivas de princípios.

Alexy 183 parte do exame da construção jurisprudencial do Tribunal Constitucional Alemão, que inobstante atribua às normas de direitos fundamentais o condão de conferir ao indivíduo, direitos subjetivos de defesa contra o Estado, também contribuem para a formação de um sistema de valores, uma ordem objetiva de valores a incidir em todos os âmbitos do Direito.

Ato contínuo, continua em suas ilações, afirmando que o significado do caráter objetivo dos direitos fundamentais é o que permanece quando se abstrai após a construção de uma tríplice abstração entre o titular do direito fundamental, destinatário do direito fundamental e objeto, o que ele chama de flanco subjetivo dos princípios jusfundamentais. Sugere como exemplo a liberdade de opinião em que o titular é o indivíduo, o destinatário o Estado e o objeto a omissão de intervenção estatal na liberdade de opinião.

Abstraindo-se o flanco subjetivo (titularidade), o destinatário (Estado) e determinadas peculiaridades do objeto (omissão de intervenção estatal) emerge um dever ser de liberdade de opinião. Com isso, os direitos fundamentais passam a condição de princípios flexíveis com nível supremo de abstração, que inobstante as críticas recebidas no sentido de que tornar-se-iam imprecisos, por induzirem a dedução ou derivação de um conteúdo concreto, para Alexy184é exatamente o caráter de abstração suprema dos direitos fundamentais como princípios, autêntico ponto de partida para uma fundamentação racional de sua aplicação.

182

ALEXY, Robert.Derechosindividuales y bienescolectivos: el concepto y lavalidezdelderecho y otrosensayos.rad. Jorge M. Senã. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1997. p. 147.

183

Id., ibid. 184