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6. CAPITULO IV: O CORPO EM CONFECÇÃO NA ENGREMAGEM ENTRE SAÚDE E MÍDIA.

5.1. Discurso biomédico: de qual corpo que trata?

O discurso biomédico ou da biomedicina, como o nome indica, volta-se para a compreensão do processo saúde/doença, levando em consideração apenas as questões orgânicas envolvidas, cabendo a outros campos de saber a função de pensar e falar sobre os demais aspectos que envolvem a questão. Poderíamos dizer que está obsoleto, mas continua sendo o referencial maior das atuações em saúde, um paradigma que ainda não tão superado assim e acaba tendo muito espaço, especialmente na assistência à saúde, onde os recém-formados especialistas mantêm o modelo do organismo a ser auscultado para que os órgãos suprimam a fala e os afetos.

Trabalhar com índices de saúde é levar em conta graus de prevalência e incidência e, mesmo com a saúde sofrendo influencias dos saberes das ciências sociais, quando Almeida Filho (2000) resgata o conceito de saúde ao longo da história, constata

que ainda prevalece certa produção de modelos biomédicos com olhar mecanicista, deixando de lado a reflexão que o conceito pede e, muitas vezes, obriga, por sua complexidade. É forte ainda a onda de pesquisas e estudos que compreendem saúde como o silêncio dos órgãos, a ausência de doenças, apagando o sujeito do processo. Neste sentido, entendemos como um grande desafio discutir saúde e ainda insistir em articulá-la ao campo midiático, envolta em estratégias de produção de verdades e como um dispositivo de poder. Mas concordam conosco os debatedores do encontro sobre Medicalização da Saúde13 ocorrido em dezembro de 2009, onde o conceito de saúde foi apenas o mote para desdobrar no âmbito da indústria de informação em saúde, de Políticas Públicas e Sociologia. Camargo (2009) palestrou, fazendo sérias criticas ao modelo vigente que acaba por gerar demandas no campo médico, centralizando os discursos de verdade e reforçando o fenômeno da medicalização.

A introdução de lógica comercial na área de saúde, com o poder concentrado em certos atores, é um dos motores da medicalização. Há também as estratégias da indústria para fortalecer esses casos, como a distorção de dados experimentais para produzir resultados favoráveis aos medicamentos, utilização da imagem de médicos importantes para endossar novas drogas, lobby para enfraquecer regulação desse conteúdo e o controle do conteúdo da educação continuada para profissionais (s/p).

Esse modelo de medicalização se estende para a vida, onde tudo se resolve não apenas com o remédio (medicalização da vida), mas com a engrenagem discursiva do campo se ramificando de forma tão capilar que dificilmente algum campo de saber não sofra influência do discurso médico. Entranhado na fala das pessoas, quando dão tom de verdade a tudo que vêm da ciência médica, esse modo de operar também se estende aos programas jornalísticos televisivos, impressos, gerando cada vez mais demandas para a saúde.

Durante todo o mês de novembro de 2011 a revista eletrônica Fantástico, veiculada pela Rede Globo, lança campanha Brasil sem Cigarro em parceria com o Serviço Social do Comércio - Sesc e o Inca, o Instituto Nacional do Câncer. A grande visibilidade é dada pela transmissão dominical que tem garantido altos índices de audiência.

Percorrendo as principais capitais do país e estimulando o público a parar de fumar, desde a orientação passo a passo até o ato mesmo de jogar os maços num

cinzeiro gigante localizado nas praças, a caravana contra o tabaco ainda tem como garoto propaganda o médico oncologista brasileiro Dráuzio Varela, mais conhecido como Dr. Dráuzio. O referido profissional da saúde também já foi apresentador de outras séries no mesmo veículo televisivo quando travava de uma viagem ao interior do corpo, desde o nascimento até à morte. Essa série visava, com a ajuda da alta tecnologia e das imagens em alta definição, saber tudo o que acontece com o corpo por dentro nos detalhes microscópicos. O especialista tratou em outras ocasiões de temas como os perigos da hepatite, os riscos dos tratamentos medicinais tradicionais com o uso de ervas sem comprovação científica ou mesmo dos riscos da gripe suína.

Você é o que você come é um programa de televisão inglês transmitido pelo canal GNT, integrante da rede de canais fechados. Em cada episódio, a nutricionista Gillian Mckeith faz avaliação dos hábitos alimentares de uma pessoa ou família sempre acima do peso. Em seguida, a especialista prepara um programa de reeducação alimentar e exercícios físicos para, segundo o programa, melhorar a saúde e a vida em geral dos participantes. Após oito semanas, ela retorna para verificar o resultado que eles alcançaram, não sem comemorar ou retaliar, dependendo do caso e da dedicação. A nutricionista também lançou livro com o mesmo titulo do seu programa.

Perder pra ganhar é um reality show do canal Discovery Home & Health que se encontra na quarta temporada. Desde 2004, no ar mostra o que acontece com um grupo de pessoas obesas dispostas a perder peso com o objetivo de ganhar uma alta quantia em dinheiro. Quem perde mais quilos é o vencedor da prova. Num cardápio hipocalórico, os indivíduos precisam realizar provas de grande esforço físico, resistindo às inúmeras “tentações” a que são submetidos, tais como sorvetes, hambúrgueres, chocolates, tortas, pizzas e mais um grupo de alimentos considerados proibidos e que ameaçam o objetivo final. A dieta é desenvolvida por um nutricionista e todos os participantes são acompanhados por educadores físicos concorrentes, que subdividem a equipe para que o objetivo seja atingido.

No Brasil, uma versão mais leve e não menos insidiosa, também propõe um programa de emagrecimento e mudança de estilo de vida onde a apresentadora é a essência do programa, jornalista e formada em direito, Cynthia é bonita, saudável, praticante de muitas modalidades esportivas e que tem como foco apoiar seus selecionados para que em dez semanas de programa de dieta eles cheguem à meta

estabelecida pelos diversos especialistas que colaboram como o programa. É possível entender a proposta do Perdas e Ganhos14 no explicativo do site:

Reality show onde Cynthia Howlett acompanha o processo de emagrecimento que transformará para sempre a vida de nossos 3471 personagens e das pessoas que o cercam. A cada programa, um personagem com uma meta de peso a ser atingida através de dieta, exercícios e muita perseverança. (s/p)

As dietas de cada programa, juntamente com muitas informações ficam disponíveis no site do canal para que todos possam acessar, além do contato com os especialistas, para possíveis consultas e adesões à proposta de emagrecimento e “transformação da vida”.

Assim, vemos uma lista de programas de televisão que assumem uma marca identitária, qual seja, a voz e o olhar do especialista opinando, ou mesmo, interferindo na vida dos sujeitos, seja nas tarefas mais simples do dia a dia ou nas tomadas de decisão que se desdobram em novas escolhas e novos processos de subjetivação. Mas a pergunta que nos fazemos é então o que vem a ser saúde, pois que com todas essas propostas de mudar de vida, de perder peso, de organizar as relações afetivas, enfim, de tornar-se outro, parece essencial compreender ou ao menos discutir o que vem sendo definido e desenhado como saúde.

Certamente não vamos entrar numa discussão sobre o conceito oficial de saúde, pois muitos trabalhos já se prestaram a esse trabalho, catalogando de forma exaustiva o percurso histórico que tomou até ser considerado um conceito (portanto, no campo da teoria) complexo que envolve determinantes e condicionantes sociais, econômicos e políticos. Ao mesmo tempo em que é recobrado, o conceito se perde nele mesmo, porque sabemos que na prática, dificilmente é possível abordá-lo assim.

Scliar (2007) compreende saúde como aquilo que reflete “a conjuntura social, econômica, política e cultural” (p.2). Saúde necessariamente se relativiza quando não representa o mesmo para todos os indivíduos, dependendo de valores individuais, concepções científicas, religiosas, morais, enfim, ligada ao modo como se vive.

Podemos nos questionar sobre o que tem influenciado na compreensão do que é saúde hoje, já que o conceito de saúde não tem impacto senão pensado na sua execução e no modo como é tomado pelos sujeitos. A busca pela saúde é considerada o

aspecto fundamental e tem sido quase que mandamento para os cidadãos. Luz (2007) diz que examinando de perto a variedade de sentido nas práticas de saúde, seja em qual modelo for, a afirmação é a de que o mais importante é ter saúde, com práticas que garantam promover e conservar ou mesmo evitando riscos. Como nos exemplos que citamos no inicio desta discussão, trata-se de um imperativo.

Polissêmico, o conceito de saúde perde cada vez mais precisão ao mesmo tempo em que é tomado como um modo de ser, de agir, de sentir, de viver. Ortega (2008) considera que na atualidade os modos de existir que ele denomina formas de sociabilidades surgem da interação da medicina e biotecnologias com o capital: as

biossociabilidades. O critério para os agrupamentos, para as identidades atuais estão pautados no referencial de saúde que se orientam por critérios de desempenhos do corpo, grupo de doenças específicas, longevidade.

Na biossociabilidade criam-se novos critérios de mérito e reconhecimento, novos valores com base em regras higiênicas, regimes de ocupação de tempo, criação de modelos ideais de sujeitos baseados em desempenho físico. As ações individuais passam a ser dirigidas com o objetivo de obter melhor forma física, mais longevidade, prolongamento da juventude, etc. (ORTEGA, 2008, p.31)

O objetivo de seguir na conquista da saúde envolve a construção do discurso

pautado no risco à saúde e na feitura de um corpo que represente esse distanciamento: quanto mais saudável, livre de aspectos que representem problemas de saúde, corpo ágil, leve, com mobilidade, que trabalhe, execute bem as atividades do dia a dia, que aparente bem-estar e “qualidade de vida”. Portanto, o discurso do risco gera a busca para evitar tais riscos, alimentando-se de forma saudável, praticando exercícios físicos, enfim, mantendo bons hábitos para prolongar a vida de modo protegido. O discurso do

risco trabalhado por Castiel (1999) é tomado como parâmetro da vida e organizador no mundo dos indivíduos. Se não precisamos demonizar essa expressão, como considera o autor, por outro lado, ela tem se tornado algo obsessivo, uma verdadeira ditadura.

Por outro lado, essa a imagem de que falávamos advém também de um corpo que pode ser fotocopiado por dentro, nas entranhas, com tecnologias de visualização médica. Colesterol, ácido úrico, triglicerídeos, taxas hormonais, fotografias do coração, com imagens precisas, enfim, um leque de tecnologias que possibilitem visualizar o corpo.

Essas tecnologias extrapolam o campo estritamente médico e se introduzem no campo sociocultural e jurídico. Na cultura popular as imagens médicas exercem também uma atração singular. Mesmo quem nunca tenha se submetido a uma tomografia computadorizada ou a uma ressonância magnética se encanta com as imagens medicas na televisão, na tela de computador ou nas revistas de divulgação. (ORTEGA, 2008, p. 71).

Cada vez mais voltado para a leitura do corpo como código de barra, produto e organismo, o saber biomédico apaga as especificidades. O corpo não é um dado passivo, mas uma potência, que sempre na iminência de aprisionamento, se lança novamente a outros controles, numa linha de fuga ininterrupta, atravessada pelos aspectos estéticos, sexuais, sociais, políticos, econômicos, enfim, em feitura.

O modelo visual que se opõe aos aspectos subjetivos, que distinguem e apreendem a subjetividade precisa ser cada vez mais deixado de lado. Para Ortega (2005), a materialidade corporal é a incondicional posição física na história. É com o corpo que marcamos um traço de existência. Ao mesmo tempo em que modela, dá os limites, permite exprimir nossa existência, extrapolando o visual. A “corporificação imaterial é um contra–senso, é uma pseudocorporificação, na qual o que se perde é a substância, o corpo”. (p.253).

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