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A Psicanálise: demarcando algumas contribuições sobre o corpo em Freud e Lacan

3. CAPITULO II: A EMERGÊNCIA DO CORPO E SEU ESTATUTO NO CAMPO DA SUBJETIVIDADE

3.3 A Psicanálise: demarcando algumas contribuições sobre o corpo em Freud e Lacan

A psicanálise nasceu com as inquietações de Sigmund Freud (1856-1930), neurologista austríaco que viveu em meados do século XIX e inicio do século XX, entre as duas guerras e sofreu com o anti-semitismo. Inquieto com as descobertas da clínica, apresentadas pela fala de seus pacientes, recuperou a possibilidade de transpor do olhar médico para a escuta analítica as manifestações especialmente corporais tipicamente femininas na Europa de seu tempo. Maurano (2003) nos diz que foi a inquietação da falta que originou a psicanálise. “Freud percebeu que aquilo que fazia sofrerem as mulheres que ele atendia, e lhes fazia produzir sintomas inexplicáveis aos olhos médicos de seu tempo, não eram senão diferentes expressões de um mal inexorável: o mal de amor” (p.12).

A prática médica estrutura-se na consolidação da normalidade e na busca pela saúde, calcada nos ideais e na verdade dada; a prática psicanalítica se organiza diante dos inconvenientes do corpo, da vida, diante das próprias condições humanas, regadas a dificuldades diárias. Sendo assim, volta-se para além da supressão dos sintomas. Negar os sintomas e encobri-los, seja por doses de medicamentos ou pelas mudanças no corpo, por exemplo4, implica na impossibilidade em elaborar as problemáticas que envolvem o

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ecobro aqui, a partir da minha experiência clinica, as Cirurgias Bariátricas como forte exemplo do que estamos tratando. As pessoas cada vez mais procuram o procedimento, mas permanecem com a questão no real do corpo, tendo em vista que muito pouco se elabora sobre a oralidade e a voracidade com que comiam. O consumo, se não é mais de comida, passa a ser dos mais variados objetos, seja álcool, outras drogas, compulsão à compra, ao sexo, dentre outros.

sofrimento e permanecer como doente. Para a psicanálise, a interpretação possibilita que o desejo, muitas vezes fonte de conflito e sofrimento, seja reconhecido.

Para Jorge e Ferreira (2002), assim como a demonstração de que a terra não era o centro do universo e de que o homem não é o centro da criação, realizada tanto por Copérnico quanto por Darwin, respectivamente, o descentramento da razão leva a construção de que há “outra cena que revela que o ser humano não possui domínio sobre si mesmo. A existência de um pensamento inconsciente, operando continuamente, redimensiona de modo radical o cogito cartesiano” (p.7), pois não é mais permitido sustentar a razão com essa outra dimensão, a do inconsciente, algo que opera à revelia da consciência.

As questões que delineiam a corporeidade na teoria psicanalítica estão articuladas à constituição do eu, instância egóica que garante uma sustentação no mundo. Partindo do ponto em que a constituição da imagem do corpo próprio é atravessada pela formação do eu, o corpo aqui subverte a ordem do esquema biológico, meramente orgânico, e rompe as fronteiras da ciência, dando nova roupagem e produzindo então outro corpo.

Rompendo com o modelo tradicional de compreensão do sofrimento, a psicanálise opera um corte epistemológico na cadeia discursiva de então. Mas o que isso significa? Ora, implica dizer, em outras palavras, que se inscreve um discurso diverso, que percorre outra via e leva a construção freudiana ao campo do estranho, do extraterritorial, interrogada inclusive em sua veracidade tendo em vista que toma conteúdos ignorados, rechaçados e negados5 como dados de valor para a vida das pessoas.

Freud não se aproveitou do corpo para fazer valer o inconsciente, mas deu radicalmente sua contribuição ao considerar que não há inconsciente do corpo, mas certo saber sobre o inconsciente que a verdade do corpo se encontra revista. (ASSOUN, 1996). Assim, uma releitura da relação entre corpo e inconsciente coloca aquele numa posição não de portador de sentido próprio, mas nos abre a possibilidade “dos efeitos- de-corpo da linguagem inconsciente”. O corporal forma a materialidade do “psíquico”. É o inconsciente o lugar de interferência onde o corpo se lança, se manifesta.

Alberti e Ribeiro (2004) nos explicam que com Freud o corpo foi retomado como algo intrínseco ao pensamento, pois mesmo um sintoma que se manifesta no

5Sabemos que Freud deu autenticidade aos sonhos, aos atos falhos, aos chistes, incluindo a vida cotidiana e as questões mais corriqueiras como conteúdos importantes para a clínica.

corpo tem sua causalidade no psiquismo. Daí que a psicanálise promove o retorno do exílio do corpo em relação ao pensamento e vice-versa.

Pollo (2004) explica que desde Freud o termo sujeito liga-se ao suporte corpóreo dos pensamentos inconscientes, o que significa dizer que é impossível separar o corpo do psiquismo. Mas o termo corpo tem referentes diversos em Freud: “fonte de ações especificas, sede das pulsões sexuais e de autoconservação; objeto de disputa entre as pulsões de vida e de morte, etc.” (COSTA, 2004 p.72).

Com Assoun (1996), podemos tomar o corpo como Körper, real, material, visível, palpável, concreto, designável por sua extensão e anatomia; mas também como

Lieb, um corpo como principio de vida e de singularidade. Tais concepções permitem nova imagem da corporeidade revista pelo inconsciente. No paradoxo, o corpo se anuncia: “ao mesmo tempo uma profundeza, um dentro insondável, e uma superfície, um horizonte de visibilidade insuperável”. (p.177). O sintoma é o que goza dos poderes de Lieb e modifica o Körper e o corpo é então um momento necessário.

Em O Mal-Estar na Cultura, Freud (1930) revela que a relação do homem com seu próprio corpo não é harmônica e produz muito mais incômodo que compensações ou completude. A felicidade é “restringida pela própria constituição, já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar” (p.84).

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: do nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. (FREUD, 1930, p. 85). (destaque nosso).

Vemos a ênfase que Freud dá ao corpo e sua participação direta em todos os aspectos da vida. Quando coloca que não temos como fugir dessa decadência e decrepitude, dá ao corpo a textura da fragilidade, pois que não basta a mais renomada tecnologia para parar o tempo e sua ação, porque certamente o corpo perecerá. Mas, além disso, há o mundo externo, as intempéries da natureza, como assistimos quase que diariamente nos veículos de informação, os terremotos, avalanches, derrubadas de prédios, secas, geadas, e toda sorte de manifestações naturais. Óbvio que é com o corpo que tudo isso é sentido. Freud fala ainda das relações com os outros, esteira de conflitos e impossível de contornar, tendo em vista que a condição humana esta articulada com o outro.

Assim, via de mal-estar pela condição de fragilidade ou pelo risco permanente de sucumbir a ele próprio através da pulsão de morte, o corpo revela-se ao mesmo tempo como a possibilidade de consistência e ponto de ancoragem do sujeito.

Se o pai da psicanálise diz que a vida como é tem se colocado árdua demais, gerando muita dor e sofrimento, com decepções e desafios muitas vezes insuperáveis, também considera que existam medidas para tentar contornar essas situações. Estão incluídos aí derivativos poderosos, como a atividade científica, satisfações substitutas como a arte e substâncias usadas ao longo dos tempos, como as ervas, nos rituais de passagem ou mesmo as drogas por demais utilizadas hoje. Enumerá-las nos levaria a outros caminhos. Enfim, é com o corpo que partilhamos desses alívios ou das dores.

Diante da falibilidade do corpo, se inscreve a possibilidade da linguagem, na tentativa de resgatar o que se perdeu para sempre por nunca ter existido e ser, então, mítico: a completude, a essência do ser. Talvez por isso mesmo as pessoas nunca se dão por satisfeitas e permaneçam desejando mudar, transformar seus corpos para novos olhares, subsequentes e pontuais satisfações, afinal de contas, junto à nova ciência, como nos diz Mucida (2006), inaugura-se o imperativo do novo, mas com caras diferentes, e envelhecer é obsoleto, “envelhecer torna-se também obsoletar” (p.80). Porém, mesmo que com o assédio do capitalismo moderno através da publicidade, que está sempre prestes a vender a mais nova porção da juventude e decapitar do corpo sua história, corpo sede, permanentemente frágil e perecível nessa relação onde é sempre perdedor.

O poeta fala das contradições do corpo ao dizer que o corpo nunca é totalmente nosso, sempre nosso, pois que se apresenta como “ilusão de outro ser, sabe a arte de esconder-me e é de tal modo sagaz que a mim de mim ele oculta. Quero romper com meu corpo, enfrentá-lo, acusá-lo, abolir minha essência, mas ele sequer me escuta, e vai pelo rumo oposto” (DRUMMOND, p.7). Nessa contradição, o corpo opera uma dupla função, a de ser superfície de incertezas, de indeterminações, ao mesmo tempo em que é o campo das identificações, de onde o sujeito se diz, se refere ao mundo, aos outros, de ao menos tentar demarcar um limite entre o que nele bordeja.

Retomando as construções teóricas do corpo na obra psicanalítica, perguntamos então como essa imagem do eu se forma. Como essa imagem que me delimita e me atormenta e que por muitas vezes não me reconhecer em mim, se elabora? Para a psicanálise é necessariamente na relação com um outro constituinte e alienante a um só tempo, que a imagem do Eu se estrutura.

O organismo é uma estrutura ligada ao registro do biológico ao passo que o

corpo é da ordem sexual e pulsional, ainda que relegado por longos séculos ao estatuto de resto. Mas mesmo como resto, permaneceu. A leitura psicanalítica do corpo, segundo Birman (2001), “se realizou sobre esse resto, procurando se indagar sobre a dimensão carnal que funda a experiência corpórea do sujeito.” (p.58). Assim, a psicanálise, muitas vezes acusada de negligenciar o corpo, na verdade, promoveu outra concepção de corpo desde seus artigos inaugurais, numa cartografia do corpo que considera a um só tempo o seu aspecto libidinal tanto representado quanto imaginado. Os diferentes registros provêem de diversos níveis de organização da subjetividade.

Lacan foi um psicanalista frânces de renome, especialmente, por promover o resgate da obra freudiana, bastante deturpada pelas inúmeras reedições para outras línguas e alterações dos estudiosos americanos, desdobrando a metapsicologia até uma psicologia do Eu, absolutamente distante do que propunha Freud.

Ao opor carne e corpo, a psicanálise lacaniana adverte que ser carne não garante o atravessamento pelos significantes, de tal forma que o corpo é aquele que foi habitado pela fala, corpsificado pela linguagem. No divórcio do corpo que a medicina cientifica proclama, entre corpo e pensamento, Lacan diz tratar-se de uma falha

epistemo-somática. Quando mais a ciência progride, mais essa lacuna se amplia, demonstrando, por outro lado, que nenhuma evolução dá conta dos corpos inteiramente.

Lacan introduziu um conceito que é indispensável para articular as concepções do corpo em psicanálise, qual seja o de imagem especular, que se refere à imagem do espelho e seu grande poder de cooptação, de fascínio.

Lacan, (1966/1998), teorizou sobre a imagem que constitui o eu no texto sobre o Estádio do Espelho, vivência onde a criança experimenta a assunção da imagem refletida no espelho como sendo a sua própria imagem. Assim, o estádio do espelho é então o momento original onde se apreende a unidade corporal e onde o corpo e mundo exterior se estabelecem.

Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação assumida no sujeito quando ele assume uma imagem (...). A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans, parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de si objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua , no universal, sua função de sujeito. (LACAN, 1966/1998, p. 97).

A função desse momento lógico é a de possibilitar o fechamento da imagem, estabelecendo uma relação do corpo com a sua realidade. Lacan diz ainda que é um drama em que o impulso interno antecipa-se. Como um cinturão, uma muralha fortificada, dois campos de lutas conflitantes, tem-se a formação do eu, certamente imaginário, mas sempre em dissonância com o isso, o inconsciente.

Como paradigma do imaginário, o estádio do espelho diz respeito à forma como a imagem do corpo próprio, a partir desse outro, exerce fundamental importância na formação do eu e na imagem assumida pelo sujeito. O estádio do espelho, muito mais que um momento desenvolvimentista, exerce a função exemplar de revelar o modo com o sujeito se relaciona com sua imagem.

Como o corpo aparece hoje, diante da cena midiática e das condições de publicidade do que é um corpo idealmente belo, desejado e buscado? O encadeamento dos significantes belo-jovem e saudável se coaduna numa tal fixação que o corpo torna- se a cena principal, a própria coisa sobre a qual parece não haver mais o que dizer, pois que aos olhos tudo já se revela. Faltam ou sobram significantes que deslizem por aí, posto que a imagem pretende ser tudo!

A questão que parece se apresentar hoje na relação entre imagem e coisa é a de que a imagem passou a ser coisa. Com o continuo aprimoramento das técnicas de imagem, a migração do que era dentro para fora do corpo e a incorporação do campo da saúde abastecem os campos jurídicos, político e social. Quando tudo se torna uma questão de saúde; quando a tecnologia se alia para garantir a precisão do olhar sobre os corpos; quando o discurso médico é incorporado à lógica cotidiana, a senha de inserção é acessada quando assumimos o lugar de peritos sobre nossas vidas e as vidas alheias. Não aceitamos o ócio, o fumante, o sedentário, e assim vamos tiranizando as escolhas.

O corpo desejado de hoje é um corpo sintético, milimetricamente calculado e projetado para a eficiência, que não vacila, não cheira mal, nem bem, pois simplesmente não exala vida. É um corpo sintético, tecnológico, que ainda será feito e isso é o que garante a possibilidade de permanecer sendo desejado. A grande jogada do capitalismo está aí, na descoberta de que o desejo não pode ser saciado, sob o risco de desmantelar a sociedade de consumo.

Mais importante que a roupa ou os adereços que o enfeita, o corpo é a verdadeira vestimenta onde tudo se revela: o lugar social ao qual o encorpado pertence, seu estilo de vida, seus gostos e seus comportamentos. Exibido, costurado, enfeitado, customizado, leve, reformado, repuxado, é ele que deve sempre estar na moda. O corpo

que se ostenta é, então, o que diz quem você é e de que lugar você pode ser visto. A questão é que o corpo insiste em deflagrar o irrecuperável do passado e o incorrigível da condição humana.

No seu texto denominado Com que corpo eu vou Kehl (2007) questiona que imagem tem sido oferecida ao olhar alheio por parte do sujeito para que este garanta um lugar no palco das visibilidades do espaço público?

Mais que a sede pulsante da vida, a superfície sensível ao toque e ao prazer, o espaço onde as emoções são expressas, o corpo é o objeto privilegiado do amor próprio, é o que se tem para ostentar no mundo onde o narcisismo é imperativo e a autoestima deve manter-se sempre no topo

Nesses termos, o corpo é ao mesmo tempo o principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros - promovida, nas últimas décadas, ao mais fiel indicador da verdade do sujeito, da qual depende a aceitação e a inclusão social. O corpo é um escravo que devemos submeter à rigorosa disciplina da indústria da forma (enganosamente chamada de indústria da saúde) e um senhor ao qual sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres, nossos investimentos e o que sobra de nossas suadas economias. (KEHL, 2007, p. 01).

A busca pelo corpo autorizado socialmente como belo está sempre num movimento descompassado com a versão que se desdobra do mesmo corpo, a versão erógena, indisciplinada, que reclama e evidencia a impossibilidade mesma de atingir ideais, de fatalmente tornar-se démodé.

Escravo e senhor, o corpo vai dando mostras de que ao mesmo tempo em que se objetaliza para ser superfície de lapidação, se impõe ao renunciar sempre ao trabalho incessante de cuidados estéticos. Submetido à rigorosa disciplina da forma, ele ganha contornos precisos e, não muito depois, numa questão de tempo mesmo, perece e, mais uma vez, obriga os sujeitos a novos investimentos, novas economias a serem gastas para, outra vez, esculpi-lo, sacrificando o tempo e o prazer, num circuito que se fecha sobre si mesmo. Mais uma vez, a autora nos ajuda a pensar sobre essas questões e considera que a vida assim, fechada diante do espelho, parece vazia e perigosa.

Consideramos que como um texto de cultura, o corpo tem sido desmemoriado, como um caderno que pode ser, a cada nova escrita, apagado; como uma tela do computador, que a cada digitação indesejada, a tecla delete é acionada. Mas o corpo fala e dizer isso é considerar sua submissão à primazia do significante. Lacan determina o corpo como leito do Outro pela operação significante. Dessa forma, o corpo pronuncia

que há desejo. As intervenções no corpo, que vão desde as mais recentes tecnologias de preenchimento, passando pela introdução de próteses e retiradas de gordura não seriam práticas que desmantelam o circuito discursivo, operando aí a tentativa de apagá-lo e torná-lo meramente organismo?

Em Psicanálise e Medicina (1966) Lacan considera que a transformação do corpo em objeto da ciência o reduz a condição de organismo na medida em que pode ser diagramado, fotografado, radiografado, calibrado. Dos tranqüilizantes aos alucinógenos, dos tecnocosméticos aos alimentos funcionais, dos exercícios para manter a forma aos remédios para emagrecer e manter a energia, numa verdadeira toxicomania autorizada e autenticada pelo saber médico, a morte se anuncia a cada tentativa de afastá-la. Na verdade, o aumento do controle e da atenção sobre o corpo acaba por produzir paradoxalmente uma maior incerteza sobre ele.

Assim como em O retrato de Dorian Gray a fixação no ideal de juventude eterna, na imagem que nunca se modifica, sustentada no delírio da imutabilidade, como nos diz Mucida (2009), se iguala a própria morte.

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