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O corpo na Idade Média: a teologia judaico-cristã e suas influências na construção do corpo feminino

2. CAPÍTULO I: ALGUMAS PERSPECTIVAS DA HISTÓRIA DO CORPO FEMININO NO OCIDENTE

2.2 O corpo na Idade Média: a teologia judaico-cristã e suas influências na construção do corpo feminino

O período medieval é um momento significativo da história ocidental, especialmente européia, retratado como tendo inicio com a queda do império romano. A Idade Média se caracteriza, especialmente, no plano religioso devido ao predomínio da Igreja com suas influências sobre os indivíduos no modo de viver e de se relacionar moral, política, econômica e eticamente. Também incluída aí está a forma como o corpo é tomado e retratado. O discurso predominante tende a considerar que o corpo foi esquecido ou desprezado, mas traremos perspectivas que possibilitarão compreender que essas concepções não deixaram de acontecer tensionadas por outros modos de conceber o corpo à época.

Certamente há uma lacuna na história do corpo no período medieval, pois ela é quase sempre desencarnada, relegada ao mundo em preto e branco, obscuro e convencional das “trevas”. Quando retratado, o corpo que aparece é o dos autores da história, sejam reis, santos ou figuras lendárias. Com ênfase nos aspectos espirituais e superiores, elevados do mundo animalesco e pecador ao qual se valia o corpo, tais personagens reforçavam a visão que foi predominante por longos dez séculos. Resgataremos algumas construções que nos permitam ilustrar o uso do corpo durante alguns momentos dessa vasta época, ora destacando esses aspectos, ora apontando outras possibilidades de ilustração e de posição do mesmo corpo.

O corpo de Cristo está numa posição central para o Cristianismo, tendo em vista que é fonte de convergência de todo o dogma e sua alusão implica na aproximação

com o corpo humano. Foi como homem e com um corpo que viveu e morrer, sofreu e amou, mas também na condição de corpo que deixou de sê-lo e perdeu para então ressuscitar. Assim, é dessa dupla construção, entre a imagem e semelhança de Deus e a condição de pecador e vulnerável, que se ergue o corpo na idade média.

O corpo feminino na Idade Média, quando retratado, costuma aparecer de dois modos predominantes: via do amor sagrado e doutrinal, enaltecido nos textos bíblicos, ressaltado pelo moralismo medieval que condenava o prazer não sem autorizar a celebração da beleza, visíveis pelo olhar do esposo; também surge através da imagem profanada pelas composições com franca sensualidade e onde a beleza feminina é enaltecida.

Já aludindo ao amor cortês, o traço do belo no corpo da mulher retratada a partir do século V nos interessa para destacar o aparecimento do ideal de beleza onde o desejo se amplifica pela interdição. Eco (2010) retrata um texto denominado

Sensualidade Medieval, no qual o amado luta e evidencia a dor de contemplação pela amada que o ignora, quando diz: “sofro amargamente e morro da ferida de que me vanglorio. Oh! Se ao menos quisesse curar-me com um beijo aquela que se compraz em transpassar-me o peito com suas doces flechas.” (p.158). Possuir o corpo e ter a dama quase nunca é fato, pois é no adiamento do desejo pela fantasia que um corpo de mulher e um jeito de ser, autorizado e forjado pelos homens, advêm.

A referida visão do corpo não segue exclusiva, pois que caminha de mãos dadas com outras formas de compreender e tomar o corpo. Saindo do lugar de pura e angelical, advinda do mundo pudico, a mulher assume outro lugar, o de impura, malvada e bruxa. Sujeito ao mundo das tentações e dos prazeres, o corpo feminino é uma ameaça à ordem social. A imagem da figura nociva e prejudicial perdurou por toda Idade Média, como grande instrumento do mal, da vaidade e do feitiço, em que a

igreja identificava, nas mulheres, uma das formas do mal sobre a terra. Tanto a literatura sacra, quanto a profana, descreviam-na como um superlativo de podridão. Quer na filosofia, quer na moral ou na ética do período, era considerada um receptáculo de pecados. Os mistérios da fisiologia feminina, ligados aos ciclos da lua, ao mesmo tempo que seduzia os homens, repugnava-os. (DEL PRIORE, 1999, p. 04).

Em arquivos vasculhados também por Del Priore (2009), em obra sobre a condição feminina nas mentalidades do Brasil Colônia, percebemos o ranço histórico- medieval entranhado, como se o tempo estivesse parado e incidindo nos corpos através de relatos de textos dos estudiosos, escritores, teólogos e confessores, engordando “a

mentalidade coletiva que exprime uma profunda misoginia e um enorme desejo de normalizar a mulher” (p.15).

As práticas corporais, que incidem sobre a forma de viver e se relacionar, dizem como uma época, seja sutilmente ou não, impõe aos seus os usos do corpo. Incidir a lente sobre esses modos de corporeidades no período medievo é constatar a ideologia do Cristianismo, tornado religião de Estado e fortemente repressor, ao mesmo tempo em que cola à figura do homem sua imagem e semelhança ao divino.

De um lado o clero reprime as práticas corporais, de outro, as glorifica. De um lado, a Quaresma se abate sobre a vida cotidiana do homem medieval, de outro, o Carnaval se entrega a seus exageros. Sexualidade, trabalho, sonho, formas de vestir, guerra, gesto, riso... O corpo na Idade Média é uma fonte de debates, alguns dos quais ressurgem contemporaneamente. (TRUONG, 2011, p. 31).

Superfície que revela as profundas mudanças sociais através do que nos aponta o autor, temos, a uma só vez, a humanidade do corpo, com seu distanciamento do pecado original, sobretudo, através do corpo sacralizado e a eterna lembrança de que também o traço humano o aproxima de sua abominável condição, resistente à repressão. Ambiguidade que perpassa o discurso cristão sobre o corpo e suas imagens representadas, num duplo movimento de enaltecimento e menosprezo. Gélis (2008) considera que a visão do corpo no referido período é dupla e inconstante e que a Igreja nunca fora unânime ao falar dele, pois “à uma interpretação pessimista do mundo, à uma abordagem negativa do corpo,” advinda de Santo Agostinho, faz contraponto “uma apreciação mais moderada de um corpo que está em equilíbrio, imagem positiva.” (p.21).

Vale ressaltar um aspecto de relevo sobre a compreensão da relação corpo/alma na Idade Média, qual seja, que aquele foi separado desta. Na verdade, trata- se de destacar com Truong (2011) que não foi no período medieval que aconteceu a separação entre alma e corpo de forma contundente. Apontamos que houve sim, a renúncia ao corpo, o que não é o mesmo que dizer que se tratava de separa um do outro. Indicativo dos prazeres pecaminosos, o corpo é também a possibilidade de salvação através dos sacrifícios e das penitências por ele realizadas. Assim, ao invés de operar uma separação, a Idade Média figura a época de renúncia ao corpo por este representar prisão, quando associado ao mundo dos prazeres e da natureza. Com tudo isso, diante do repúdio da carne, esta passa a ser a prisão e o veneno da alma, donde só a

rejeição ao mundo sensível promove ascese. Uma série de hábitos passa a integrar a lista de regulações: sejam pela via da proibição ou da modéstia. Comer, vestir-se, beber, movimentar-se, tudo isso passa pelo crivo dos inquisitores para ser punido aos olhos do divino.

Desaparecem as termas, o esporte também, junto com os estádios, circos e ginásios, locais genuínos de expressão corporal, o teatro grego e romano, risos soltos e gesticulações são reprováveis e as máscaras e maquiagens, condenadas. Entre as práticas temos, por exemplo, a regulamentação da vida através do calendário alimentar compreendendo “abstinência de carne três vezes por semana, jejuns na quaresma, no advento”, nos períodos de inicio de cada estação do ano, “na vigília das festas e nas sextas-feiras” (TRUONG, 2011, p.38), e assim, por meio do controle dos gestos, o corpo é constantemente vigiado pela igreja, tanto no tempo, quanto no espaço.

Ao corpo feminino, misterioso e pecador, impõem-se proibições de toda ordem, merecendo, inclusive, um guia de condenação proposto, estudado e aplicado pelos juízes da Inquisição, o manual de caça às bruxas, Malleus Maleficarum.

A inferioridade e o perigo do corpo da mulher manifestam-se no tabu do sangue, posto que manter relações carnais com esposas durante o período menstrual poderia resultar no nascimento de crias leprosas. O próprio sexo é tomado como tabu e desvalorizado para qualquer fim que não seja o de procriação. Ora, o casamento cristão, invenção datada da Idade Média, surge como possibilidade de institucionalizar um espaço que dê conta da concupiscência. Além do mais, luxúria e gula figuram como os maiores pecados capitais, do mesmo modo que abstinência e contenção são virtudes a serem seguidas.

Pecados da carne caminham juntos com os pecados da boca e nesse sentido, a embriaguez é própria aos bárbaros, homens sem controle que cedem durante a bebedeira também à gula e à luxúria. Há que se conter de tal forma que a quaresma, seguida de outros momentos menores e fragmentados e não com menor sacrifício, torna-se uma quaresma perpétua. E se o corpo feminino já é sem valor, o que dizer do corpo feminino velho e grávido, se não que tem valor algum e muitas vezes, má reputação. Ao contrário dos homens velhos, que aludem ao saber e à tradição, o corpo feminino velho é decrépito física e moralmente, associado às bruxas. A mulher, portanto, de todas as formas, é diabolizada.

Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e traiçoeira, a mulher era acusada pelo outro sexo de ter introduzido sobre a terra o pecado, a infelicidade a morte. Pandora grega ou Eva judaica ela cometera o pecado original ao abrir a caixa que continha todos os males ou ao comer do fruto proibido. (DEL PRIORI, 1999, p.2).

O pecado original, a grande fonte de infortúnio do homem, registrado no Gênesis, indica infração de orgulho e um desafio do homem lançado contra Deus. Sua interpretação original não estava nem um pouco próxima da visão de pecado sexual, como foi propagada por tantos séculos desde então. Foi no período medieval que o pecado original, do homem desafiando o saber de Deus, foi revisitado e transformou-se em pecado sexual. Tal fato produziu uma torção no olhar sobre o corpo na história, com a total desvalorização e desprezo.

O pecado original, que expulsa Adão e Eva do Paraíso, é um pecado de curiosidade e de orgulho. É a vontade de saber que conduz o primeiro homem e a primeira mulher, tentados pelo demônio, a comer a maçã da árvore do conhecimento e a despossuir Deus, de algum modo, de um de seus atributos mais determinantes. A carne permanece fora dessa queda. (p.49)

Ora, tanto pela via da ressurreição da carne, quanto pela possibilidade da carne fazer-se verbo, ou ainda pela salvação através do corpo e do sangue de Cristo, temos a celebração do valor do corpo como possibilidade de resgate de Jesus ao homem, sendo absurdo suspeitar do corpo. A vida se assegura aos que bebem do sangue e comem da carne (pão e vinho) no ritual na Santa Ceia e é pela entronização do discurso moral da Igreja que acontece a reviravolta ideológica, tornada possível pelo pensamento medieval, predominantemente marcado pelo pensamento simbólico. A variação ideológica da interpretação original do pecado do conhecimento pela aquisição de parte do saber divino altera-se à nova compreensão do pecado sexual, impressora de marcas indeléveis ao corpo e ao sexo feminino.

Se o traço feminino retratado por Eva constitui a beleza tentadora e pecadora, num outro pólo temos outra personagem que revela redenção: Maria, mãe de Deus. Não tomada por seu corpo, mas a partir do rosto puro e santo, Maria torna-se objeto de admiração e fonte de inspiração. Espaço de luz e maternidade, essa personagem desvela a beleza sagrada e torna-se ícone a ser referendado.

Com as construções que elaboramos, trazemos então vislumbres de um período extenso historicamente, mas que manteve um padrão de domínio sobre o corpo da mulher, enxergando a carne como impura, fonte de pecado e de desconfiança. Às

mulheres, credibilidade nenhuma. A história do corpo feminino tem se revelado história de dominação através de beleza pudica e virginal, nem um pouco apagada dos tempos atuais, caminhando em paralelo com outros modelos, mais ousados e não menos influenciados pelos padrões de beleza, acompanhados de um intenso trabalho de “domesticação” e controle.

2.3 Concepções de corpo no Renascimento: da medicina popular ao saber

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