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Foucault: o corpo, o cuidado de si, o poder e a dietética

3. CAPITULO II: A EMERGÊNCIA DO CORPO E SEU ESTATUTO NO CAMPO DA SUBJETIVIDADE

3.4 Foucault: o corpo, o cuidado de si, o poder e a dietética

Foucault é um autor que nos permite enriquecer as compreensões e construções sobre o corpo de tal modo que se torna inesgotável e, portanto, nos deixa sempre em falta com o volume de sua obra. Dada a sua abrangência e partindo da consideração que tomamos de ler o corpo como constituído no seio das relações de poder, não poderíamos nos furtar de alguns apontamentos que nos ocorrem quando tomamos nosso objeto. Não será possível nem recortar sua vasta obra, num trabalho exaustivo, muito menos dizer tudo o que ele propôs sobre o corpo como partícipe dos processos de subjetivação, mas algumas passagens sobre o cuidado de si, o poder e a dietética serão trazidos à cena de nossa pesquisa.

Não há uma análise linear em Foucault sobre o que quer que seja que ele analise. Temas específicos tomam estratégias e caminhos diferentes. Mas existem três eixos de análises, dito pelo próprio autor, que são o poder, o saber e o sujeito. Utilizando a arqueologia, tratou dos saberes que se alicerçam para sustentar as verdades de cada época, escavando discursos, revirando a poeira na busca de regularidades que sustentam enunciados. O discurso científico, por exemplo, é um conjunto de enunciados. Assim,

“pesquisar discursos científicos não se constitui em buscar a verdade que os fundamenta, mas entender que estes acontecem por meio das dispersões e regularidades que engendram sua formação.” (FURTADO, 2011, p. 158). Os sujeitos são efeitos de discursos e estes só se dão no corpo. A genealogia, por seu turno, trabalha com o poder, desnaturalizando enunciados que de tão repetidos, parece que foram descobertos e não historicamente construídos.

Tomando o corpo como uma superfície de produção de verdades, campo de domínio e de processos de subjetivação, entendemos que os discursos de cada época, os enunciados, tudo o que Foucault denominou de dispositivo, contribui para a feitura desse corpo. Um dispositivo pode ser definido de muitos modos. Tomemos uma das passagens em Foucault (1998):

Através deste termo tento demarcar [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes termos (p. 244).

A expressão dispositivo, de acordo com Agamben (2009), partindo de suas leituras de Foucault e do que nos interessa aqui, pode ser considerada em três vertentes: como uma rede que se estabelece entre discursos, enunciados científicos e instituições; com função estratégica concreta e inscrita com relação ao poder e resultando do cruzamento deste e das relações de saber.

Enraizado ao dispositivo, na sua impregnação mesma, está um desejo de felicidade. Capturar e subjetivar o desejo constitui a potência específica do dispositivo. Isso posto podemos agora conjecturar como certo tipo de corpo, dentre as possibilidades de corporeidades na atualidade, o corpo magro, esguio, com pouca gordura, “chapado”, “sequinho”, “durinho”, “trabalhado”, “lapidado”, assume expressão e torna-se modelo de prateleira a ser vendido pelas revistas de beleza voltadas para o público feminino de classe média urbana.

Herdeiro da concepção onde o corpo se impõe como questão a todo modo de pensar, Foucault, em sua ontologia do presente – teoria sobre o sujeito do presente, do hoje, das circunstâncias que o fazem possível –, nos ajuda a transmutar a ontologia clássica num deslocamento sobre a questão que é anunciada acerca do corpo. Em vez da primazia do verbo ser, que sugere uma origem – atribuída a uma biologia, ou algo a

desvelar, atribuído a uma essência -, trata-se agora de outra ontologia, a ontologia histórica de nós mesmos, que se interessa pelas condições concretas que nos constituem. Qual referência estética tem sido anunciada pelos dispositivos midiáticos e médico estético, tomando como espaço de divulgação e visibilidade as revistas? Porque a beleza esguia, longilínea, passou a ser ideal preconizado e associado à saúde e à beleza?

Os corpos são produzidos historicamente e retratados de formas distintas em diferentes momentos históricos, ou mesmo heterogeneamente no mesmo período. Rodrigues (1975) destaca que cada sociedade elege características que constroem o que o homem deve ser a partir de muitos pontos de vista, inclusive o físico. São as relações que configuram e constroem modelos de ser autorizados socialmente. Ainda segundo o mesmo autor, “reconhecemos no nosso corpo e no das pessoas que conosco se relacionam um dos diversos indicadores da nossa posição social e o manipulamos cuidadosamente em função desse atributo” (p. 45).

Não podemos afirmar uma natureza dos corpos sem considerar que esta leitura já parte da inscrição do homem no campo da cultura e é, pois, carregada de sentidos e verdades. Não podemos também concordar com apenas um referencial de belo possível em cada época. Contudo, de acordo com os modelos hegemônicos que se configuram socialmente, temos modelos de beleza predominantes a serem seguidos, amplamente difundidos e, portanto, verídicos, autênticos.

Podemos pensar que nas revistas de beleza e de cuidados corporais femininos direcionadas a um público leitor de classe média, os corpos são desejados na medida em que legitimados pelos discursos que o produzem, pois tal como as construções foucaultianas, pensamos também que o corpo está imerso num campo político. As relações de poder têm ação sobre ele, numa tecnologia política do corpo.

Segundo Foucault (1997), as práticas discursivas não são meros modos de fabricação dos discursos, mas “ganham corpo em conjuntos técnicos, instituições, em esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e difusão, em formas pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem e as mantêm”. (p.12).

As linhas de exercícios de poder se articulam tanto entre o que se diz quanto com o que se vê. É preciso dizer que não comportam uma forma comum, uma correspondência biunívoca. O saber vai do enunciável ao visível e do visível ao enunciável, mas em tensão, através de relações de forças. Há um encontro forçado onde se intercalam o que os olhos vêem e o que se pronuncia.

De uma aparente naturalização da beleza conquistada quase que sem esforços vemos se desdobrar um forte e incessante trabalho corporal. O corpo natural de hoje é, sobretudo, aquele que não cessa de incitar disciplina, controle, prática de exercícios, cirurgias, uso de tecnologias nutricionais. Assim, é entre os modos de viver a saúde, de produção de uma estética da identificação – diferente da estética da existência para os gregos – pela via do consumo que os corpos magros como ideal a ser seguido se justificam.

Os cuidados com o corpo e o discurso da saúde em nome da qualidade de vida são propagados e alardeados pela mídia, aqui a impressa, como campo de enunciação dos cuidados com o corpo.

Quando destacamos o corpo magro, não estamos aqui nos referindo aos sujeitos esqueléticos que recusam comer em nome de um ideal maior, denominados anoréxicos pelo discurso médico. Também não estamos negando sua existência. É bem verdade que a renuncia ao alimento, em alguns casos de forma tão radical, é um fato. O corpo magro aqui referido é o corpo trabalhado, que malha, que come alimentos ditos naturais, funcionais, com baixo percentual de gordura, é um “corpo light/diet” e que por isso, serve às mais diversas disciplinas médico-estéticas.

Os cuidados com o corpo e o discurso da saúde em nome da qualidade de vida são propagados e difundidos pela mídia de modo geral como campo de enunciação dos cuidados com o corpo.

A dietética grega, trabalhada por Foucault (1984) se fundamenta na permanente busca da justa medida, que é, antes, uma arte de viver. O exercício constante visava uma condução de vida em equilíbrio, adequada. Mais que modos de se alimentar, a dietética refere-se à amplitude das preocupações do homem grego para uma vida cada vez mais harmônica.

Na reinvenção contextualizada do corpo como forma de expressão, segundo Lucas e Hoff (2007), “a dietética volta a encontrar seu espaço. Não mais como uma estética da existência, mas como um processo identitário.” (p.101). Na relação estreita entre mídia e ciência, a estética da existência cede espaço para a assimilação em série dos ditames, crendo nas (falsas) propagandas de juventude eterna onde consumir é vetor mais importante para a construção de uma saúde perfeita (im)possível.

Kehl (2002), em comentário no dia 30 de junho na Folhade São Paulo, considera que o corpo hoje é, ao mesmo tempo, objeto de investimento do eu e imagem oferecida aos outros. Tornado o mais fiel objeto de verdade dos sujeitos, o corpo tem

sido submetido indefinidamente à rigorosa disciplina da forma que, estrategicamente, tem sido superposta a outra indústria, a da saúde.

A um só tempo, o corpo é escravo, posto que submetido sumariamente à incessante disciplina, e senhor, posto que é a mais absoluta fonte de sacrifício de tempo, dos prazeres, e via de investimentos afetivos e das parcas economias. Assim, os diversos discursos, seja o filosófico, o religioso, o moral: estão todos solapados pela defesa da (pretensa) saúde com a variadíssima indústria do corpo.

Cuidar do corpo implica cuidar de si a tal ponto e de tal modo que estamos diante do que Costa (2004) denomina personalidade somática: somos o nosso corpo e o que ele revela de nós. O autor não defende que estamos diante de perda dos valores na sociedade atual, pois essa idéia é falsa, para ele. O que há hoje é outra forma de apresentação dos valores tendo como pilares a mitologia cientifica e a moda.

A busca de adequação e ajustamento do corpo aos padrões impostos socialmente por práticas discursivas hegemônicas é uma forma de controle corporal. Propagar corpos enxutos, sarados, chapados, poderosos, durinhos, saudáveis, jovens é anunciar uma exaustiva lapidação da magreza – em sua tensão com a gordura, portanto – com fortes implicações para a produção de subjetividades, tendo em vista que são exatamente as construções de saber e poder que as engendram.

O corpo é visto cada vez mais como um instrumento para atingir modelos identitários que nada diferem de imposições sociais difundidas pelos mais diversos meios de convencimento: da educação à mídia. Os modelos de identidade são cada vez mais difíceis de atingir e exigem também altas quantias, além de incomensurável esforço físico-corporal e tempo. (MISKOLCI, 2006, p. 682).

Trata-se da produção de dois campos: por um lado os corpos produzidos em série, corpos padronizados e, por outro, subjetividades controladas e manipuladas. A formação das subjetividades incorpora, então, valores dominantes que acabam por aderir aos meios – meios estes liderados pelo discurso da ciência ou em nome da ciência e tendo a mídia como o mais forte assessor – que anunciam à integração a um grupo socialmente mais aceito, levando as pessoas a crerem que estão mais felizes, mais belas, mais realizadas.

O corpo esguio e desejado da atriz, com pouca gordura, tonificada – e de tantas outras celebridades que mês a mês cobrem as capas de importantes revistas de cuidados corporais e beleza feminina – revela uma configuração sutil e engenhosa do poder, pois,

tratar-se de um corpo exaustivamente trabalhado, disciplinado, cuidado, trata-se também das repercussões do poder em sua positividade, afinal, se o poder fosse só opressor não atrairia tanto interesse.

O que faz com que as pessoas, diante de tantos sacrifícios, de tantas privações, continuem desejosas de se manter na linha, adietando-se do que a ciência e a mídia engendram? Bom, ao que Foucault chama de positividade do poder. A sujeição dos corpos ao exercício diário, literalmente, não se faz sob coerção explicita de alguém ou alguma força localizável que o obriga a isso.

Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las; esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo. (FOUCAULT 1987, p.28).

Em direito de morte e poder sobre a vida, Foucault (1988) nos resgata a construção de um poder soberano que se estruturou sobre o direito de vida e morte, condicionado à defesa do soberano e à sua sobrevivência. Trata-se do direito de causar a morte ou de deixar viver. Há uma transformação importante dos referenciais e esquemas norteadores dos mecanismos de poder no Ocidente a partir da época clássica. O poder agora é muito mais destinado a fazer crescer a forças e ordená-las.

O poder se exerce e se situa, na verdade, se funda “ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população” (p. 129). Deslocado para o poder que gere vida, se exerce positivamente, possibilitando os coletivos, as populações não mais norteados por uma estratégia jurídica, mas biológica.

Os procedimentos de poder – poderíamos dizer aqui as diversas tecnologias da vida, desde os procedimentos de rejuvenescimento até a preservação dos cordões umbilicais para produção de células tronca, os adietamentos em nome da juventude – não cessam de se esquivar da morte. Os pontos de ancoragem do poder se estruturam sobre a vida, ao longo dela, em seu desenrolar. A morte é uma equação que sempre faz sobrar um resto, mas que a todo o momento produz novos modos de agenciamento, de controle e de poder.

O poder sobre a vida, de forma totalizante e produzindo individualização, está intensificado e perpetuado nos dias atuais. Não se trata de um poder imposto, mas regulando as condutas humanas de forma sorrateira e entranhada. Há que ser livre para que o poder se exerça. Com a função de assegurar e proteger a vida, o poder vai

regulando essas possíveis liberdades, que, na verdade, em nossa interpretação, geram novos aprisionamentos, como, por exemplo, trabalhar os corpos para que se tornem ágeis e resistentes, belos e admiráveis, em nome da saúde. Assim, “o campo imprevisível e flexível da ação humana torna-se, por excelência, o espaço no qual se desenvolvem as lutas em torno da subjetividade, as lutas que constituem o poder sobre a vida.” (CALIMAN, 2001, p. 10).

Desde o século XVII e XVIII existem duas formas integradas de poder sobre a vida: o adestramento dos corpos, ampliando suas capacidades, potencializando suas forças, tornando-o útil, docemente útil. Seria o que Foucault denominou de anátomo- política do corpo humano, integrando sistemas de controle eficazes e econômicos; centrado no corpo como suporte de processos biológicos, com controles reguladores e intervenções no nível da saúde de uma população, nascimento, mortalidade, duração da vida, etc. Trata-se da biopolítica da população.

Fica claro aqui que a função já não é mais a de matar, mas de investir sobre a vida, numa gestão calculista. Abre-se a era do biopoder. Paiva (2000) ressalta que “como já se percebe, esse poder sobre a vida encontrará no corpo e na sexualidade objetos e instrumentos privilegiados no seu exercício” (p.118).

O poder exercido não é uma propriedade, mas uma estratégia. São manobras, técnicas, modos de funcionamento se articulando socialmente, entre as pessoas, nas relações sociais. O dispositivo, neste sentido, é uma instância produtora de práticas discursivas.

É neste sentido que o poder não é negativo, não se trata do que diz não, mas do que diz sim, do que constituem os sujeitos. Não se trata de sufocar através de uma superestrutura, mas de produzir subjetividades que alimentam a rede de poder. Tanto a anátomo-política do corpo, quanto a biopolítica das populações mostram um poder que atua positivamente, como desencadeador de forças que não se imprimem sobre a morte, mas sobre a vida em sua gestão. Não é o soberano exercendo poder na hora da execução. A soberania está diluída na disciplina e no controle, com muito mais poder. (GHIRALDELLI, 2007).

Descobrir que tem um corpo, que ele é de grande importância, que a vida e a saúde são valores, moedas de troca. Mais que o direito, a vida é objeto de lutas políticas, mesmo que formuladas por afirmações jurídicas. O corpo é elemento que revela a dispensável noção de sujeito, pois que o homem, “uma vez corpo, é um ser construído

por causa da nova relação que vivemos entre biologia e poder” (p.104). O homem é uma construção entre o corpo sexuado com os mecanismos de poder que o atravessam. Esses mecanismos não estão se exercendo quando, revestidos de uma bela jovem na capa, “sugerem” (com a sutileza de uma sugestão, mas com a força da verdade) formas de cuidar de si, de tratar os corpos?

Consideramos que as revistas editadas para consumo do público feminino contribuem para a elaboração de imagens femininas jovens, felizes e saudáveis. Há, portanto, um domínio discursivo do que é ser mulher hoje, para o conjunto de pessoas que consomem essas revistas, numa clareza de que o feminino está definido pela superfície, ou seja, naquilo que os atributos corporais revelam.

O corpo também se estrutura e desfila como resultado de pedagogias que o ajustam no tempo e no espaço, investido por um poder regulador, impondo limites, autorizações e obrigações, evidenciando a força organizadora e estruturante do poder e do controle sobre a vida que regulamenta as ações dos indivíduos em sua relação com os outros e consigo.

Presente em todas as dimensões das relações humanas, o poder não é nem guerreiro e nem jurídico, é governo, governo de si, exercendo-se sobre o sujeito livre, num campo de possibilidades de comportamentos e condutas. Os desdobramentos do domínio geram linhas de fuga onde é possível sair para novas e continuas relações de poder, pois quanto mais liberdade, mais exercício de poder. Podemos tomar como exemplo os protestos dos grupos para resistir à lógica dos ditames da moda – criando novos modismos – ou reações de força às determinações dos modelos de beleza pautados pela magreza – as modelos mais rechonchudas que ganham visibilidade. Contudo, em nossa proposta de pensar a imagem do corpo aceito como sendo definida pelas práticas de saúde, pelas verdades da ciência estética, nesse domínio, a ideologia ou a moralidade da saúde, conforme diz Ortega (2008), prevalecem.

Mais um aspecto, para finalizar, precisa ser apontado: a diferença do que Foucault denominou práticas de si, cuidado de si na Antiguidade Clássica e nos nossos dias. Trazemos essas questões porque uma argumentação que parece pertinente poderia insistir na questão de que tanto antes quanto agora há preocupação com os cuidados de si. Pois bem, as questões morais incidem significativamente sobre o cuidado do corpo, da saúde, o casamento, o amor e as relações extraconjugais, tanto no mundo grego, quanto na atualidade. A diferença está na pressão das normas, como elas incidem sobre os sujeitos. Segundo Foucault, as razões da abstinência eram incorporadas de tal forma

que não era necessário a sanção da lei. A medicina mesma não era uma prática curativa realizada pontualmente por médicos, mas tratava-se de um modo de conduto que fazia parte do dia a dia, sem ser determinado por outro, mas próprio do modo de viver dos gregos.

4. CAPÍTULO III: O CORPO MULTIFACETADO: CONHECENDO O

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