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3. CAPITULO II: A EMERGÊNCIA DO CORPO E SEU ESTATUTO NO CAMPO DA SUBJETIVIDADE

3.1 Husserl, o corpo, a carne e a consciência da imagem

Nossa decisão em destacar as contribuições de Husserl para o estudo do corpo parte da compreensão de que este autor foi e ainda é relevante estudioso tanto no campo da Filosofia como da Psicologia e suas contribuições reverberam fortemente nos estudos sobre a subjetividade desde a fundação da fenomenologia, no inicio do século XX, inaugurando forma de pensamento radical.

Estudo descritivo dos fenômenos que se oferecem ao mundo e à experiência do sujeito, a fenomenologia se legitima na crítica radical dos preconceitos, das crenças e dos pressupostos através da suspensão do que está dado, pondo-o em parênteses, reduzindo. Por fenômeno entende-se, de forma ampla, tudo que aparece, se revela ou se manifesta. Inicialmente, segundo Zilles (2007), os gregos usaram o termo para a manifestação do ser numa íntima unidade entre o ser e o aparecer. Depois, fenômeno

passou a assumir um estatuto de aparência enganosa, como a designação por parte de Platão do mundo sensível, em contrário ao mundo das ideias. Protágoras, por sua vez, considerava que o conhecimento se dá apenas ao que aparece, o fenômeno, pois ao que se oculta, ao que está atrás dele, não há como ter acesso, na dissociação entre aparência e ser.

Kant radicaliza a separação entre o fenômeno e a coisa em si, uma realidade independente de nossa mente, ainda que não indique como a coisa em si produz o fenômeno, o ser sendo o limite da pretensão do fenômeno. Hegel novamente lança o termo na tradição filosófica em sua Fenomenologia do Espírito e reabsorve o fenômeno no conhecimento do ser, tornando uso frequente. O absoluto para este filósofo é cognoscível, possível de ser tomado e pode ser tomado com Espírito, daí que a fenomenologia o estuda e mostra como está presente nas experiências humanas, quaisquer que sejam elas.

Husserl considera que o que aparece na experiência atual é verdadeiro e que o fenômeno está no campo de imanência com relação à consciência, ou seja, propõe a

volta às coisas mesmas para que se chegue ao fenômeno puro tal como se torna presente e se mostra à consciência. Destacamos o valor de suas elaborações para o campo da Psicologia a partir do momento em que torna inseparável o sentido do ser e do fenômeno. Não é o estudo puro - seja do ser ou da representação - mas o ser tal com se apresenta, como se manifesta; isso é tudo o que podemos ter consciência. A tarefa da fenomenologia, de acordo ainda com Zilles (2007) é estudar a significação das vivências da consciência.

Tomando como empreendimento a descrição do mundo tal com se dá para a consciência e influenciado fortemente pelas ideias cartesianas, Husserl propõe renovar a dúvida pela via da suspensão, da epoché. Sua filosofia é voltada para o sujeito, demarcado e definido pela consciência, mas um sujeito singular e detentor de uma verdade absoluta situada em sua intuição interna.

O sujeito é o eu transcendental para Husserl e neste sentido poderíamos nos interrogar do que trata esse transcendental. Na fenomenologia, o eu transcendental constitui um objeto, pois até o eu está submetido à epoché, mas um objeto que lhe é dado em uma experiência ela mesma transcendental, de acordo com Depraz (2007). O eu transcendental é um individuo concreto, não uma estrutura formal apriorística.

A posição de Husserl supõe o conceito de um sujeito transcendental. O eidos revela-se num objeto particular e não vai além do sujeito. Sem a experiência da essência, nenhum significado e nenhum juízo significativo poderá ser possível. Quando eu digo que esta pedra é cinza, não aponto para uma particular condição de cinza, mas o gênero mesmo do cinzento e este gênero nos é imediatamente dado. (PENA, p. 78, 1997).

Assim, a singularidade só pode ser afirmada com o conhecimento daquilo que os objetos são, sendo as essências universais e inespaciais. Neste sentido, a fenomenologia deve ser entendida como estudo dos atos da consciência, instância produtora de sentido, o que explica a ideia de que o mundo se torna subjetivo. Para Cardin (2009), se não existisse a dimensão do fora da experiência, haveria por parte da reflexão a regressão ao infinito, não havendo nenhuma garantia para o conhecimento. Assim se apresenta o idealismo transcendental de Husserl.

Poderíamos perguntar já aqui o que o corpo tem com tudo isso. Na verdade, nossa pergunta é quase isso, pois não é o que o corpo tem com tudo isso, mas como fica a compreensão do corpo – ou melhor, o que vem a ser um corpo aqui. A tese fundamental da fenomenologia, que é a da intencionalidade da consciência, nos faz refletir sobre o que é o corpo, tomado como inseparável dos demais objetos.

Considerada uma das principais correntes filosóficas do século XX, a fenomenologia traz uma considerável contribuição para a investigação da noção de corpo. Na verdade, essa noção cresce em importância no próprio desenvolvimento do pensamento de Husserl. (CARDIN, p. 51, 2009).

Para Husserl, o corpo é um objeto assim como outros tantos objetos, considerado como corpo objetivo, físico, externo, corpo da anatomia e da fisiologia. Como todo objeto da consciência, o corpo aparece por versões, aspectos múltiplos, já que não temos acesso à observação do todo de uma só vez e é isso que legitima as descrições do fenômeno. Ora, sendo a consciência intencional, sempre relativa a alguma coisa e sendo o corpo um objeto como outro qualquer, temos que a consciência é consciência do corpo, o que implica que o corpo possui intencionalidade própria aos corpos.

Mas seria o corpo para Husserl apenas um simples objeto? Tendo em vista que o corpo possui um papel fundamental no acesso ao mundo e aos outros corpos, Cardin (2009) sugere que vejamos o outro lado da questão e investiguemos o corpo enquanto vivo, ou antes, como carne. Trata-se do corpo como o experimentamos e sentimos. O corpo vivido, pois ele nos é dado de acordo com a maneira subjetiva de sua

apresentação. E “nesse sentido, o corpo é lugar de sensações e emoções. Não se trata de considerar o corpo somente do ponto de vista da percepção externa, mas também do ponto de vista da tomada de consciência das sensações.” (p. 54).

Abrindo mão da dualidade entre a consciência e o corpo, Husserl considera que a corporeidade vem encarnar uma consciência transcendental na qual a dinâmica concreta através dos gestos, nos movimentos, os hábitos, a afetividade se encontra restituída. “Não mais se opõe uma consciência pensante a um corpo receptáculo, mas a totalidade unitária do corpo e do espírito que simplesmente se dá, em sua qualidade carnal unitária.” (Depraz, 2007, p. 16). Assim, sujeito transcendental e mundo sensível se articulam um ao outro numa relação de pertencimento carnal.

Os objetos do mundo que aparecem pela via da consciência de algo em seus perfis, aparecem sempre para um sujeito encarnado, denotando aí a tensão entre duas relevantes perspectivas: o corpo objeto no meio de outros, visado pela consciência; o corpo sujeito via de acesso aos demais objetos.

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