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Saúde como necessidade: medicalizando a vida e os corpos.

7. CAPÍTULO V: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A IDEOLOGIA E A MEDICALIZAÇÃO DA VIDA.

6.2. Saúde como necessidade: medicalizando a vida e os corpos.

Cada vez mais – durante a elaboração desta tese transcorreram-se três anos – programas de televisão, livros, revistas, produtos (desde os de higiene pessoal aos de alimentos), serviços de beleza recebem o selo de saudável pelos especialistas19nos mais variados contextos. Os produtos de beleza ecologicamente corretos agregam valor ao preservar a natureza, contribuir para um estilo de vida mais saudável e ter em suas consultorias, profissionais qualificados para referendar cada objeto, cada bem. Assim,

19 Só para dar um exemplo, a revista Boa Forma trás em sua capa o selo do programa Emagrece Brasil, com site www.emagrecebrasil.com.br patrocinado pela Coca-Cola, com parceiros os ministérios do esporte, educação e saúde. Realizado pela referida revista, objetiva “reunir o maior número de pessoas dispostas a melhorar seus hábitos para conquistar um peso adequado e ganhar saúde e disposição por meio de uma alimentação equilibrada e da prática de atividade física.” Receitas, reportagens, matérias, vídeos e debates acontecem no referido site visando o estilo de vida “saudável”. Muitos famosos referendam o programa e geram a ideia de universalização da saúde como forma física magra e dinamismo, movimento.

estamos demarcando um aspecto importante, qual seja, o de que a análise das revistas suscita um olhar mais amplo e articulado com relação à realidade: um movimento que alimenta a medicalização da vida.

Entendemos a medicalização não o fenômeno de medicação, de prescrição de remédios, mas como fenômeno através do qual a vida cotidiana, nos seus acontecimentos mais rotineiros é apropriada pela medicina - seja por médicos ou inúmeros profissionais ligados direta ou indiretamente ao setor saúde - interfere na construção de conceitos, costumes e comportamentos sociais. Com uma tese construída no programa de Saúde Coletiva, é improvável passar ao largo da reflexão que interroga os discursos preventivistas, de promoção da saúde e de resgate dos valores amplos da vida, na critica ao modelo biomédico.

Vista como um bem positivado, a saúde tem sido propagada orientadora da totalidade da vida, da experiência humana. Camargo Jr. (2007) nos orienta que para compreender a naturalização das necessidades de saúde é preciso apreender o complexo médico-industrial, a soma de saberes, instituições, práticas, profissões envolvidas no campo da saúde.

Em torno da assistência à saúde circundam a indústria farmacêutica, de equipamentos médicos, as instituições de formação profissional, as empresas de saúde, os serviços públicos e privados, a indústria das publicações (CAMARGO JR, 2007) incluindo aí as revistas que ressaltam a imagem ideal de saúde, todos buscando legitimidade, poder e espaço, gerando mais consumidores. Quaisquer agentes do complexo médico-industrial, como as revistas sobre boa forma que vendem saúde,

podem ser agentes dessa medicalização em sentido lato, convencendo segmentos cada vez mais amplos de que um dado evento é um “problema de saúde”, que possuem uma solução para o mesmo, e ainda que sua solução, e não qualquer outra, é eficaz e segura - em outras palavras, confiável. (p. 69).

Se cuidar, manter a saúde e a boa forma através do consumo das muitas ofertas expostas nas revistas, sejam cremes de beleza ou shakes emagrecedores, seja fotodepilação ou a linha de óleo ômega-3, tudo isso gera e fortalece as necessidades de saúde, vista como naturalizadas. De acordo com Dantas (2009), “o discurso da

medicalização pretende explicar os nossos modos de estar no mundo, de modo a proporcionar soluções imediatas para todos os nossos problemas”. (p.568).

Vista como a solução para os problemas atuais, a ciência médica, com todo o aparato tecnológico à disposição, cria necessidades de saúde que ela mesma se coloca como antídoto, criando um ciclo. Pode ser tomada como um discurso mítico, pensado como artifício que atende a interesses políticos, econômicos, ideológicos. A grande diferença está no fato de que o discurso mítico comumente atende a explicações através do pensamento mágico. Hoje o pensamento é químico.

A medicina, com seu aparato tecnológico, vai aos poucos se tornando mais um bem de consumo e o vocabulário médico transborda as fronteiras da ciência e da saúde, invadindo nossa linguagem cotidiana. Vemos, na atualidade, a medicina e seus medicamentos protagonizando promessas infinitas de juventude e bem-estar. (Dantas, 2009, p. 569).

Nesse sentido, a ciência parece um conhecimento pronto e solucionador dos impasses da vida cotidiana. Ainda segundo a autora, podemos considerar que a tríade indústria farmacêutica-publicidade-médico fornecem condutas à tranquilidade social e à aceitação das coisas como tal. Ramos (2004) fala em termos de mundo administrado, onde o ponto de tensão maior entre a sociedade e o indíviduo está na dominação social do corpo. Em consequência de tal dominação e da satisfação reprimida, resta uma “feliz apatia”.

Para Ramos (2004), um dos desdobramentos do ensino de Marx está em compreendermos, a partir das colocações sobre a produção de necessidades de saúde, que a “sabedoria” do capitalismo não é nem tanto gerar os bens que deem conta das necessidades dos homens, mas de produzir as próprias necessidades.

Não são os produtos de que os sujeitos dispõem que eles mais precisam, mas a marca da necessidade do próprio consumo como um traço subjetivo. No ato de consumo, no instante mesmo da prática, é que a realização acontece. Saber os caminhos pelos quais as beldades das revistas acessam os serviços e bens para manterem a beleza é apenas o primeiro passo. É preciso acessar o prazer da aquisição. É preciso gozar, mas um gozo que transcende o objeto, fazendo função dupla de gerar prazer e dar conta da elaboração da perda. Se ganha e se perde em ato.

O que se perde no consumismo, o objeto, é desesperadamente buscado na repetição do gesto. “O consumismo é, pois, a entrega e a resistência num mesmo gesto (RAMOS, 2004, p.54) tendo em vista que o sujeito parece obter tudo quando leva para casa os produtos ofertados de felicidade e de saúde, de bem estar e de juventude, mas ao mesmo tempo, num só movimento logico, constata que não o tem.

E o corpo com tudo isso? De um tempo reconhecido como de consumo do próprio corpo, hoje a cultura do corpo se recoloca como cultura do embelezamento, mas com a marca da concepção médica e farmacêutica, na qual feiúra conduz à doença e beleza à saúde. Hoje, essa compreensão se alargou de tal modo que tais atributos têm impactos morais, já que ser belo não depende apenas e tão somente de algumas estratégias higiênicas. A incorporação da necessidade vai se dando a cada produto anunciado, de forma que “o que era suficiente em décadas passadas deixou de sê-lo, confirmando que a história do embelezamento feminino é constituída de novas exigências, tanto quanto de novas preocupações. (SANT’ANNA, 2005, p. 135).

Ter um corpo belo, convergente aos ideais contemporâneos deixou de ser virtude e passou a ser condição. De acordo com Ghiraldelli Jr (2007), há, nos nossos dias, um imperativo moral, expresso como imperativo estético e nesse sentido ou “nos colocamos como corpos, pois somos corpos, ou não temos espaço na sociedade”. (p. 13). Produzido para alimentar os olhos, tudo é animado e, portanto, ganha vida na era do “tipo”, do look. É como se a imagem reivindicasse o direito de dispensa à linguagem.

O corpo não é mais um cabide para emoldurar a roupa recém divulgada pela coleção nas estações do ano, mas, num movimento inverso, a cada lançamento de peças do vestuário, o corpo se reedita, deve ser confeccionado. Não importa o tecido da roupa mais do que o tecido da pele. É este que, bem definido, com viço, rígido, tonificado e trabalhado nas academias, com alimentos funcionais, produtos de última geração no mercado da estética, tem a função de qualificar o que veste. Moda pode ser vista como uma questão corporal, nesse sentido.

A imagem da juventude, associada ao corpo perfeito e ideal – que envolve as noções de saúde, vitalidade, dinamismo e, acima de tudo, beleza – atravessa, contemporaneamente, os diferentes gêneros, faixas etárias e classes sociais, compondo, de maneira diferenciada, diversos estilos de vida. E a fábrica de imagens (...) ao lado da imprensa escrita, tem certamente, contribuído para isso (CASTRO, 2007, p.112).

Falseados como libertárias, as práticas de embelezamento e saúde geram controle e este impõe muita disciplina e compromisso com práticas de cuidado. O corpo vivo e vívido, o corpo subjetivado como liberto e integral é um sonho sempre muito distante. A roda viva da juventude amordaça braços e pernas e coisifica todas as partes recortadas. O indíviduo autônomo não passa de um usuário do corpo máquina. “O sonho de um corpo-alguém se torna mítico e recalcado, enquanto o corpo-coisa cada vez mais é um fato.” (RAMOS, 2004, p.133), permanecendo cadáver, por mais exposto que seja.

Feitas as considerações sobre ideologia e medicalização da vida, agora é possível localizar no discurso científico, articulado à publicidade de informações e imagens – função a qual se prestam as revistas – para uma vida longeva e saudável, onde a beleza e a boa forma traduzem os efeitos.

A filosofia implícita em cada página de revista, o colorido das capas, os textos, as imagens e os valores que são norteadores das matérias, tudo passa a ser absorvido e interpretado pelos receptores. Os produtos comunicativos, diz Thompson (2000), são mais do que para serem consumidos, mas mensagens para serem entendidas. Convenções de vários tipos apoiam as leituras e as compreensões. Nossa exploração segue no sentido de desbravar as construções sobre como se articulam dispositivos para a confecção do corpo.

Assim, o corpo está imerso no contexto atual das relações de consumo através da oferta e infinitos “preenchedores” das marcas do tempo, “realizadores” da felicidade, compondo imagens nas quais o deslocamento da produção de objeto direciona-se para a produção de necessidades.

8. CAPÍTULO VI: AS QUESTÕES TEORICO-METODOLOGICAS

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