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Merleau-Ponty e o resgate do corpo com a concepção de corporeidade

3. CAPITULO II: A EMERGÊNCIA DO CORPO E SEU ESTATUTO NO CAMPO DA SUBJETIVIDADE

3.2 Merleau-Ponty e o resgate do corpo com a concepção de corporeidade

Merleau-Ponty era filósofo e viveu na França. Quando jovem, experienciou as duas grandes guerras mundiais. É, sem dúvida, o grande nome da fenomenologia na sua aplicação ao comportamento humano. Desenvolveu relevante estudo sobre o corpo e a percepção. Segundo Penna (1997), com sua Fenomenologia da Percepção, M. Ponty torna-se um marco fundamental na questão que envolve as relações entre corpo e mente. Se Descartes fez a primeira grande formulação sobre a clássica visão cientifica do mundo ao desencarnar o homem, Merleau-Ponty elabora sua visão critica a esse modelo de ciência pura, alheia ao mundo e ao corpo. Essa visão “objetivista” toma o mundo isento de valor, de sentido, de significado, tendo em vista que o que há são quantidades a serem medidas, apenas. Para a visão cartesiana, o corpo é irrelevante para se chegar à verdade das coisas e o corpo do observador é mero objeto que também serve à observação.

Com as construções de M.Ponty, percebemos que um sólido campo de argumentações vai se construindo, desdobrando-se na demonstração de que a “descrição meramente objetiva do mundo é também, em ultima análise, insatisfatória e em importantes aspectos, enganosa: é o que chama “dogmatismo de uma ciência que se

acha capaz de conhecimento absoluto e completo.” (MATTHEWS, 2010, p.60). Fora do próprio contexto o ponto de vista científico é equivocado.

Para a dúvida metódica, que resulta na ascensão da razão e do pensamento como campos de certeza, M. Ponty contra-argumenta que duvidar de algo implica estar situado no mundo, inclusive ao mesmo tempo em que duvidando, também não duvidando de outras coisas. Assim, não há como empreender uma fuga do mundo para vê-lo de fora. A observação das coisas envolve interação com elas e sabemos que, no que se refere às ciências, mais recentemente, este fato tem sido ponto pacífico - especialmente nas ciências sociais e cada vez nas da saúde – e é porque fazemos parte do mundo, das coisas que aí estão que somos afetados e é possível interagir. E experiência é parte considerável da produção cientifica, deslocando-se da visão impessoal para a interação entre observador e o mundo.

O dualismo, que recusa e reduz o corpo a mero objeto no meio de tantos outros, tem para M. Ponty, a marca da incoerência. Se a tentativa de localizar o corpo como mais um objeto com propriedades físicoquímicas, um mero organismo biológico vivo resolve o problema de sua localização no mundo, isso não resolve a questão para ele. O mundo e o corpo não são partes isoladas, separadas e não é suficiente explicar o mundo através dos efeitos da luminosidade na retina, por exemplo. A observação é intencional e precisa do sujeito que perceba o mundo e as coisas.

A ciência, afinal de contas, depende da experiência: é uma tentativa de entender racionalmente o mundo de alguma forma à medida que temos experiência dele. Mas a experiência é sempre de alguém: cada um de nós, incluindo os cientistas, tem que experimentar o mundo do seu próprio ponto de vista. A própria noção de ciência como “empírica” implica, portanto, que os cientistas estão situados no mundo, não fora dele em uma posição distanciada, divina. (MATTHEWS, 2012, p.61-62).

Assim, tais argumentações corroboram para a ascensão do corpo no campo das vivências e verdades dos indivíduos no mundo. Ao invés de recusar ou negar seu valor, agora com M. Ponty, trata-se de dar ao corpo uma nova configuração. Ter um aparato cerebral para apreender o mundo não abraça a condição do humano, posto que o significado das coisas está no valor que é dado a elas pelos sujeitos viventes. De forma conciliatória e ampla, nosso filósofo rompe com o dualismo ao dizer que o sujeito da percepção não é uma entidade interior, mas uma abertura para o mundo; ao mesmo tempo em que rompe com o materialismo ao considerar que a percepção implica

subjetividade. A consciência reflexiva perde o posto de soberana e espaço, tempo, sexualidade, linguagem, visão, emoção, surgem no emaranhado dos acontecimentos corporais.

Temos então com M. Ponty o afastamento da tradição da filosofia da consciência, mas também uma recusa à ideia de subjetividade pura, que se constituíram pelo mesmo pensamento sem carne, excludentes do corpo. Agora não se trata mais de posicionar o corpo como mais um entre os objetos, pois ele tem um estatuto diferenciado.

Estar no mundo é ter uma presença física, material, mas também é produzir demandas mantendo ligações, já que o corpo se recusa a ser reduzido aos movimentos físicos como matéria. As demandas são endereçadas de alguém para outrem: trata-se de vivências e nessa condição, da dimensão do humano, tanto como sujeitos quanto objetos.

Somos essencialmente corporificados, incorporados e, em certo sentido, temos que ser identificados ao nosso corpo – não poderíamos ser parte do mundo se não fossemos criaturas corpóreas e, dessa forma, objetos exatamente como qualquer outro. E, como quaisquer objetos, reagimos às influencias que as coisas exercem ao redor. (MATTHEWS, 2010, p. 69).

Nas palavras de Merleau-Ponty, o corpo ocupa esse duplo lugar, bastante complexo, de ser objeto entre outros, mas não qualquer objeto, pois que é vivido, experimentado como veículo da experiência subjetiva.

O que nos permite centrar nossa existência é também o que nos impede de centrá-la absolutamente, e o anonimato de nosso corpo é inseparavelmente liberdade e servidão. Assim, para nos resumir, a ambigüidade do ser no mundo se traduz pela ambigüidade do corpo, e esta se compreende por aquela do tempo. (MERLEAU-PONTY, 1945-1994, p.125)

Do mesmo modo, os seres humanos são sujeitos incorporados. A subjetividade não é algo que se anexa aos corpos, mas é inconcebível sem um corpo. O corpo tal, como sentido, é o corpo próprio, com sua dimensão existencial, ou seja, como um corpo vivido e com o qual o indivíduo se identifica e se reconhece. O corpo é um objeto afetivo, segundo Ponty.

A experiência corporal fundamenta o distintivo do corpo como inconfundível com qualquer outro objeto, perpassado pela subjetividade só sendo possível de ser nessa imbricada configuração. Na dupla face, é verdadeiro dizer que o individuo tem um

corpo, no sentido de pertencimento, mas que também um corpo, no sentido de pertencido por ele. A experiência do mundo é dada com o corpo e pelo corpo.

Desta feita, fomos percebendo com M.Ponty o valor do corpo, seu papel na construção da subjetividade e a recolocação desse mais complexo objeto num campo além dele mesmo, mas na corporeidade, o corpo vivido e experimentado em sua dimensão existencial, afinal, como nos diz Penna (1997), somos corpo, com ele nos identificamos, nos dizemos ao mundo, não o temos como algo a ser utilizado instrumentalmente, mas como meio de estar no mundo.

Se o corpo até então fora considerado objeto despojado da condição de sujeito, na medida em que este seria condição da mente, agora ele não é mais impessoal, mas perpassado pela subjetividade, corpo percebido, sentido. Corpo e mundo se comunicam num sistema complexo de experiências. Assim, o corpo transcende a anatomia quando experimenta o mundo e elabora comportamentos, mas também quando investe de afetividade o mundo, como corpo próprio que estrutura o ser-no-mundo e sua historicidade.

O mundo percebido é significado pelo corpo e é através dele que o comportamento é exercido. M-Ponty se afasta do pensamento que considera mundo e cultura dados absolutos ou que deixa de lado o mundo sensível, trabalhado e construído. O mundo percebido não pode ser reduzido ao ato de ver, ao sentido muscular, pois a percepção é uma forma de olhar revelada pelos sentidos na experiência vivida através da corporeidade.

Interrogamo-nos com M-Pontysobre o mundo de hoje e suas configurações corporais, qual leitura é possível traçar, munidos das proposições e elaborações acima discutidas acerca do corpo. Considerando que este é composto pelo tecido da história e das experiências. As vivências do corpo na atualidade, contudo, rumam para a consolidação do paradigma cientifico do corpo máquina, desprovido de história, de afetos, de sexualidade e de linguagem.

Na contra mão da personalização, da complexidade da vida e da impossibilidade de dizer tudo ou dar a última palavra sobre as receitas de felicidade, saúde e boa forma, a ciência médica, com seus muitos instrumentos de cura e de promessas, vai gerando novas demandas para manter o corpo objeto, manipulável.

Uma sociedade que toma a forma e as imagens fabricadas como ícones, dificilmente tem condições de produzir sujeitos onde a referência corporal não passe por aí. Os corpos são extensões concretas, matéria modificada ciclicamente, em

metamorfose, prontas às novas alterações pela variedade de propostas possíveis. Desde intervenções corretivas às mais imperceptíveis técnicas de aplicação de ácidos e produtos para manter a juventude e estancar o tempo, e é devido a isso que acontece a proliferação de receitas milagrosas servidas com a bandeira da saúde. Profusão de práticas que em nome da saúde e da autoestima sub-repticiamente investem no corpo organismo, deixando de lado o corpo sujeito da história, com marcas e impressões de uma vida vivida, sentida, atravessada de significados.

3.3 A Psicanálise: demarcando algumas contribuições sobre o corpo em Freud e

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